Malu Mader leu os sete volumes de "Em busca do tempo perdido" nos últimos três anos,
e se apaixonou pelas viagens ao passado. -
Ana Branco / Agência O Globo
Famosos ou anônimos encontram inspiração no livro ‘Em busca do tempo perdido’
Ler ou não ler: eis a questão. Quem encara os sete volumes de “Em busca do
tempo perdido”, o livro-tudo de Marcel Proust escrito entre 1908 e 1922, já vê
o enigma no título: vai dar tempo? Mais fácil buscar no Google o famoso trecho
da madeleine, o bolinho plissado banhado em chá, que detona, no protagonista, a
memória de sua infância e de toda uma vida.
Mas
o Rio é uma caixinha de surpresas... O babado é que, à boca miúda, anônimos ou
famosos, os cariocas andam molhando o bolinho (ou, conforme for, o biscoito) no
chá da Paris de Proust, em busca dos gozos da alma e das filigranas do passado.
De
artistas em comunidades pobres a damas da aristocracia local; de intelectuais
da periferia a atrizes top como Malu Mader (que leu a obra completa nos últimos
três anos), em grupos de leitura, em casa ou no tédio do trem da Central, uma
proustmania invade o salão e vence a doença do nosso tempo: a falta de tempo.
—
Proust, assim como a psicanálise, é o antídoto contra a ingestão rápida e
indiscriminada de ideias junk — avalia a psicanalista e empreendedora Anna
Victoria Lemann, mais conhecida como Toia, criadora do primeiro grupo da atual
safra.
Seu
professor, o filósofo gaúcho Marcelo Backes, que comanda três grupos de Proust,
formou, nos últimos anos, mais de cem novos leitores de “Em busca...”. Ou seria
mais exato dizer “leitoras”?
—
A estatística é clara: dos que seguem nosso programa, de 50 páginas por semana
com debates, e acabam de ler em 19 meses, 80% são mulheres. Na nossa sociedade
ainda organizada patriarcalmente, elas encontram tempo e se interessam muito
mais por ficção. Algumas leem escondidas para não amedrontar os homens com sua
capacidade e seu saber. Outras arrancam a capa para ler na praia sem afugentar
os rapazes — relata o mestre.
Cabe
contextualizar: a maioria dessas mulheres vêm de um estrato social bem elevado,
atesta o professor.
—
Da mesma forma que propicia a alguém como eu viver bem dando aulas sobre
Proust, o interesse por “Em busca...” está vinculado sociologicamente a um
certo caráter aristocrático que a sociedade carioca apresenta — diz Marcelo.
É
caso de Ecila Vidal Mutzenbecher, 67 anos, socióloga, economista e produtora,
que leu seis volumes em francês até os 20 anos. Só recentemente voltou ao livro
porque “não podia morrer’’ sem ler “O tempo reencontrado”, o sétimo, póstumo.
—
Morei numa casa grande em Santa Teresa, palaciana como a da infância de Marcel,
com uma escada de mármore e três quartos para cozinheira, lavadeira e
bordadeira. Essa escadaria é como uma madeleine, libera memórias da forma de
ser e viver que se buscava ali e de figuras míticas como a do temível Vovô
Barão.
Túnel
do tempo no Trem da Central
O professor Marcelo Backes já formou 100 novos leitores de
Proust, 80% mulheres
- Ana Branco / Agência O Globo
Mas
o Rio, a gente sabe, é uma cidade de contrastes, com memórias de múltiplas
classes... Filho de um nordestino e uma mineira, Alexandre Damascena viveu até
os 5 anos na Maré e depois se mudou para o Cesarão, conjunto habitacional em
Santa Cruz, onde mora até hoje.
—
Conheci Proust através de uma banca de livros usados na feira de Santa Cruz.
Minha mãe sempre me dava um livro de presente se eu a ajudasse a carregar as
bolsas com as compras. Escolhi o livro porque o título me lembrava uma música
da Legião Urbana, “Tempo perdido”. Não tinha a menor ideia de quem era Proust e
só fui ler, anos depois, quando estudei Teatro.
Hoje
diretor de uma escola de Drama em Santa Cruz, mestre e doutorando em Literatura
Brasileira pela UFRJ, ele deve muito de seu percurso à aventura proustiana, que
iniciou a bordo do trem.
—
Foi uma viagem longa e com muitas paradas. Mas o caminho de Santa Cruz até o
Centro, onde eu estudava, durava duas horas. O jeito de matar o tédio era ler,
ler e ler. E veio o prazer, associado ao desejo de construção do conhecimento,
tanto científico como emocional.
Ciência,
desejo, conhecimento e emoção: é neste entrelaçamento que parece estar a chave
dos encantos que levam cada vez mais pessoas a se lançarem nesse voo-livre. A
atriz Malu Mader, que ganhou o livro quando rodava a série “Anos dourados” (ver
detalhes na entrevista da página 32) mas só se dedicou à sua leitura nos
últimos anos, abriu portas.
—
A experiência literária de Proust vai além da invenção de uma linguagem, é
quase uma descoberta científica. Ele conseguiu dar forma e beleza a essa
mistura de memória e esquecimento. E desde a primeira página nos faz penetrar
no seu mundo de sonho, vivendo intensamente, como se fôssemos ele, as mesmas
experiências de amor, de ciúme e da revelação da vocação artística — escreve
Malu, num detalhado e-mail sobre o escritor e sua obra.
Acompanhado
dos prazeres evocativos de um cafezinho com cigarro, grande explicador de
qualquer tipo de entrelaçamento histórico-cultural, o compositor, escritor,
cantor, performer e eterno demiurgo Jorge Mautner faz sua exegese da importância
proustiana em todos os domínios.
—
A neurociência já descobriu que nossos neurônios são pura emoção. E a Física,
cuja inspiração anda sempre em dívida com a Arte, já demonstra, nos últimos
estudos, que a menor partícula do mundo subatômico determina a existência das
maiores… Assim como o detalhe, na memória. Neste mundo quântico, singularidades
se entrelaçam e ao mesmo tempo não se entrelaçam com outras. Não há explicação.
São as associações que importam.
CIÊNCIA
E EMOÇÃO
Jorge Mautner, explicador universal: Proust é importante
pelos entrelaçamentos da memória.
Como já se sabe, os neurônios são pura e
moçãoa
O Globo - Ana Branco / Agência O Globo
Não
por acaso, o acaso é citado pelo professor Marcelo como o grande “inspirador”
de tudo o que ocorre de importante na nossa vida. Daí a sedução provocada pelo
“modelo” da madeleine (no seu caso, o cheiro do sabonete Phebo preto, quase tão
clássico como Proust).
—
O que é planejado deixa a gente num caminho em que já estava, mais ou menos
bom. Decisivo, definitivo, mesmo, é quem, ou o quê, te arranca do caminho. O
segredo é saber jogar adequadamente com o imprevisto.
Nesse
jogo, cada um tem a sua madeleine, queira ou não. Ou, como diz Malu, “não é
preciso ler Proust para saber do que se trata”. Há quem resista a essa ideia,
por motivos que o próprio Proust apresenta em sua tese sobre a memória
involuntária. Com a palavra, Toia:
—
Quando podemos identificar a nossa madeleine, ela já deixou de ser madeleine! É
uma experiência sensorial no presente que mobiliza memórias perdidas. Ela nos
pega de surpresa... Ir atrás dela voluntariamente não vale! Marcel, no livro,
quando tenta repetir, a mágica não funciona mais.
Uma
coisa, contudo, ninguém apaga: a memória do que foi uma madeleine, e o fato de
que, quando a gente se esquece dela, ela volta, só pra contrariar. E madeleines
não faltam numa cidade como o Rio, tão rica em possibilidades para os sentidos
e de busca de sentido para o que não tem. Assim, até celebridades sem tempo
para nada, como Pedro Bial, caem na espiral numa situação bem específica.
—
É quando chove e vou à praia em Ipanema, caminhar sozinho sob o aguaceiro. Ali
é meu sertão.
Falando
em sertão, Bial, um apaixonado por outra grande obra nas duas dimensões
(extensão e qualidade), “Grande sertão veredas”, recorda de Guimarães Rosa se
gabar de não ter lido o “Ulisses” de Joyce, pois o Ulisses da “Odisseia” de
Homero já bastava. Tudo isso para confessar que nunca conseguiu embalar na
leitura de “Em busca...” até conhecer a edição em quadrinhos da Jorge Zahar:
—
Aí, sim, devorei. Há uma coisa descritiva pré-cinematográfica. Após o cinema,
fica difícil ler coisas tão longas… Há muito o que fazer e, claro, ler.
O
próprio cinema é a madeleine da alma criadora de Domingos de Oliveira:
—
Quando prestei atenção pela primeira vez no rosto da minha mãe enquanto me
tinha no colo, compreendi o que é o close-up. A primeira vez que flipei um
livro com pequenos desenhos no canto da página, compreendi que era livre para
sempre e podia estar em vários lugares ao mesmo tempo, como sempre desejei.
As
emanações de Ipanema e arredores também falam à memória da atriz Cláudia Abreu,
que, em pleno estrelato, descolou um grau em Filosofia na PUC-Rio.
—
Sentir o cheiro de maresia sentada nas pedras do Arpoador, cheias de musgos, e
a visão do Dois Irmãos me trazem um Rio que não existe mais.
Da
praia à roça é o percurso proustiano do cineasta Sérgio Rezende, que,
recentemente, leu os sete volumes “de enfiada”, por causa de um texto de
Deleuze.
—
Tenho várias madeleines. No entanto, há coisas que imediatamente me remetem a
momentos do passado. O mar do Arpoador, a adolescência e o cheiro de cavalo, a
infância. O resto são canções, filmes e fotos. Mas nada comparável às
iluminações de Proust.
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Reportagem por Arnaldo Bloch
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