sábado, 30 de dezembro de 2017

O AMOR TAMBÉM SE APRENDE

ABRÃO SLAVUTZKY

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Há frases afirmativas que pedem uma interrogação ao final, quase como uma brincadeira. Transformar uma verdade numa pergunta abre o espaço para se pensar. Foi o que fiz, já faz anos, com o título de hoje: amor também se aprende? A dúvida foi decorrente das dificuldades de mudanças e da tendência humana a repetir comportamentos, a compulsão à repetição. Além do que, é difícil entender o amor ao ser graça e desgraça, alegria e tristeza, ternura e raiva, sensualidade e desespero. O amor convive com o ódio, é ambivalente, daí as oscilações. O amor é um sentimento o qual tanto se conhece como se desconhece. As escolhas amorosas são sempre misteriosas. 

O poeta é quem melhor consegue definir o amor. Foi Camões que ensinou: "Amor é fogo que arde sem se ver". Não se vê porque é invisível, pois se fosse visível tudo ficaria mais fácil. Sendo o amor invisível, ele precisa de provas, são as provas de amor, provas de que está vivo, pulsante. Nas mais variadas relações, um demanda do outro as demonstrações de ser realmente amado. O objetivo do amor é ser reconhecido pelo outro na sua essência singular. Sentir-se único, insubstituível, necessário, algo como se imaginar o melhor do mundo para o outro. O amor não nos protege dos azares da vida, mas ele é que gera os melhores dias da existência. O amor não é a perfeição, às vezes é o inferno, mas só ele nos reconcilia com o paraíso perdido. Concluí, com o tempo, que o amor também se aprende, quando ocorrem transformações narcisistas. Isso porque o amor aos progenitores, à primeira família, com o tempo, deve ceder espaço aos novos amores. Essas transformações psíquicas ocorrem ao longo de toda uma vida. O amor deve conquistar parte dos territórios dominados pelos amores infantis. Com o tempo e o vento a favor, o ser amado passa a ser o grande amor, ao crescer a coragem de abrir realmente o coração. Então se pode conhecer a plenitude amorosa. 

Há uma tendência a se dizer que o tempo vai matando o erotismo. Aí depende da capacidade de imaginação dos amantes de inventar, renovar o entusiasmo do casal. Desafio difícil, mas não impossível. E se a parceria amorosa estável não acontece, são possíveis os amores temporários. Também há os que se dedicam aos demais, seja no trabalho ou nas indispensáveis amizades. Aprecio escutar os que terminam inventando vidas criativas com amor às artes, aos animais, à natureza. O amor é uma ponte que permite sair de dentro de si para se abrir ao outro, ao mundo. 

Em psicanálise, se sabe que todas as histórias terminam falando de amor. O tratamento transcorre na relação transferencial. A transferência é uma história de amor, assim como no amor sempre ocorrem transferências. Transferimos protótipos infantis nos amores sem perceber, pois são inconscientes. Também ao escrever transfiro vivências, pensamentos através de palavras. Tenho buscado as palavras, mas nem sempre encontro. Desejo a todos nós mais amor neste novo ano, pois o amor também se aprende. Um dos aprendizados é que o amor não nos habita sem queimar. Por isso, os franceses dizem: o amor é uma loteria... não, não, pois na loteria se pode ganhar!
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 * Psicanalista
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=45e386443077da53fcfe55cc64300f01
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Novo ano novo

Lya Luft*

Véspera De Ano Novo, 2018, Virada Do Ano

Primeiro, eu entendia que ano novo era mano novo, e ficava feliz com mais um bebê em casa, eu desde sempre louca por crianças e bebês. Até hoje, seguidamente, sonho que tenho um ou vários no colo. Depois, fui entendendo que não era mano, e sim ano, e também compreendi, vagamente, essa questão dos números com que demarcamos nossa vida - em geral, para nos atormentarmos um pouco mais. 

O ano novo espia na esquina como um garoto arteiro, cheio de novidades malucas para nos surpreender. 

O ano novo espreita nos espelhos como uma velha bruxa de longas unhas roxas para nos arranhar enquanto dá suas risadinhas sinistras. 

O ano novo espera na porta da frente para a gente abrir, abraçar, aceitar e achar que vai ser feliz todos os trezentos e tantos dias - e algumas vezes, em muitos dias, e semanas, ou meses, a gente é feliz mesmo. 

O ano novo é uma estrelinha que nos contempla lá do céu, como diziam, em tempos tão antigos: meu irmãozinho morto antes de eu nascer tinha virado estrelinha e cuidava de mim. (Me inquietava um pouco que também visse meus pecadinhos, que eram palavras feias, mentiras e botar a língua para os adultos pelas costas deles.) 

O ano novo é uma esquisitice, mas vale porque, apesar de tudo, a gente celebra. Quase uma continuação do Natal, só que geralmente com mais festa, e dança, e espumante, promessas para os seres amados, e promessas para nós mesmos - mais cobrança do que promessa, aquela lista velha e chata como o mundo: fazer exercício, não beber, não comer, não ir demais às baladas, não fumar, não se matar com nenhuma droga, aliás, ser melhor filho, irmão, pai, mãe, colega, amigo, chefe, qualquer coisa dessas em que tantas vezes agimos como feitores de escravos ou carrascos. 

E assim, dia a dia, o novo ano nos espera, e nós esperamos por ele. 

Que Deus ou os deuses nos deem um aninho manso, colorido, bondosinho, gentil, não só para nós pobres humanos sempre tentando escapar dos males, mas para este mundo tão bagunçado, violento, chato, porque já nem as notícias de mortandades, desgraças, tufões, inundações, corrupções e bondades com os corruptos, e crueldades com os miseráveis pobres engaiolados como animais (não!, os direitos dos animais não permitiriam!), nos impressionam muito. Estamos calejados. 

Enfim, que seja um aninho bem suportável para a maioria. Para alguns - os escolhidos -, que seja glorioso: a maioria do pessoal merece. Sobretudo os amados da minha família, os amigos, os leitores, e os homens justos que ainda sobrevivem nesta terra. 

Um bom ano a todos nós.
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* Escritora
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=b6d0d3c61122345690a19bb8af632db4
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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sentido da vida

Maria Ribeiro*

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Finalmente fui arrebatada por uma enorme paz de espírito

Eu sei, a culpa é minha também. Sempre é. Depois dos 40 a gente precisa se responsabilizar pelas coisas. Mas é que esse negócio de férias de fim de ano, vou te contar, é pior do que sentido da vida, uma coisa que não tem como dar certo. Você ser obrigado a não pensar em nada só porque “ficou combinado” é de uma violência que eu só vivi quando era pequena e era forçada a comer berinjela. Pra um ser humano como eu, que tem problemas sérios com infinito e vastidão desde que se entende por gente, não existe isso de “ficar off” só porque todo mundo fica (mas, também, vamos combinar que tanto o infinito quanto a vastidão são duas coisas totalmente inúteis e desagradáveis). Free ano novo, meu Brasil!

Porque acontece o seguinte. Esses problemas metafísicos, que já me dão a maior dor de cabeça — só que no peito — o ano todo, ainda fazem a gentileza de piorar muitíssimo quando chega dezembro. Meu HD não consegue se acostumar com esse reset obrigatório que vai do Natal ao Ano Novo de jeito nenhum, e, o que é pior, ainda tem a capacidade de se concentrar em tudo o que eu não dei continuidade no ano que chega ao fim, como se eu só me ativesse ao lado B da história.

O violão, por exemplo. Eu comecei a tocar pra fazer uma peça de teatro, mas parei com as aulas assim que a temporada acabou. Eu gostava de brincar de Nara Leão, eu fechava os olhos nos agudos, eu me vestia anos 60, eu me exibia no Instagram, era uma coisa que me fazia bem, mas cadê que eu continuei? Não continuei. E por quê? Porque não tinha mais um objetivo claro e determinado que justificasse tal esporte, olha que tristeza. O objetivo é o túmulo do samba.

O samba (e aqui vou perder 59 amigos do peito): minha grande questão com a folia de fevereiro é justamente o encerrar-se em si mesma. Eu sei que o legal é isso, mas, desculpa a sinceridade, só se você nasceu com esse superpoder. Tipo de fábrica. Quando eu era garota, até encontrava algum sentido em me fantasiar. Ia aos bailes do Clube Campestre, em Petrópolis, me vestia de colombina ou de Mulher-Maravilha, e tinha enorme prazer em deixar de ser eu, mas depois que fiz disso minha profissão... juro, não sou mais capaz. Atores são pierrôs profissionais (embora ser amador sempre me soe mais bonito). Resumindo: em 2017 me prometi ir ao Suvaco do Cristo e ao Bangalafumenga, mas quando eu vi já tinha sido, e eu não tinha ido.

Natal. Claro que, depois dos rebentos, a festa melhora muito, mas o meio do caminho, quando não se é mais criança mas também não se é mãe, olha, acho mais difícil que cuidar de Bonsai. Eu sei que muita gente não quer ter filho, e acho essa decisão admirável e corajosa, mas fico pensando em como seria atravessar esse Mar Vermelho com a água no pescoço sem ter aquela linha de chegada que é fazer os pequenos felizes. Filho é sentido garantido, e às vezes me pergunto se a maternidade e a paternidade não são mais um gesto de egoísmo do que de generosidade, já que muitos progenitores ainda cobram dos filhos o amor que lhes foi dado na infância ou na juventude, como se só o sentido recebido com a existência deles já não tivesse sido uma troca justa.

Todas essas palavras errantes pra dizer que apesar de viver atormentada 24 horas por dia com as perguntas “por que existe tudo e não o nada?” e “de onde viemos e pra onde vamos, e por quê?”, e de tudo isso ser elevado ao cubo em dezembro, eu finalmente fui arrebatada por uma enorme paz de espírito que certamente superará o sentido — ou a falta dele — do ano novo quando tomei a sábia decisão de viajar de carro pra Bahia. À la Guimarães Rosa, vou me entregar às benesses da travessia com toda a farofa a que tenho direito: três livros, Spotify premium, cinco sacolas gênias de supermercado, três barras de chocolate meio amargo com flor de sal e uma caixa de ansiolítico só pra saber que qualquer coisa ela tá ali.

Por que o fim do ano não é composto por dez domingos seguidos? E por que nesta época todo mundo tem que ficar num mood de vestir branco e fazer metas? Sim, porque de 24 a 2 ninguém toma nenhuma decisão importante — quer dizer, pode ser que o Gilmar Mendes queira liberar o Sérgio Cabral no dia 31 pra passar o ano novo em casa, mas fora isso, só os adventos da mãe-natureza, como chuvas ou tsunamis, desprezam o calendário vigente. Não há casamentos, nem separações, nem admissões, nem demissões, nem grandes cadernos nos jornais. Tem um pessoal que nasce e outro pessoal que morre, mas também é mais raro. De modo que, em nada disso ocorrendo, e você querendo chegar logo e sem dor ao dia primeiro do ano que vem, o segredo é escolher uma praia no litoral baiano e pegar a BR 116.

Parece que a estrada é péssima, mas que a vista é linda; que tem algum trânsito na saída do Rio mas que Vitória do Espírito Santo é uma beleza e vale o pernoite; que o tempo vai demorando mais a passar conforme a viagem avança, mas que as relações na estrada se estreitam de forma comovente, e que, a tudo isso se soma o calor típico do nosso verão, tornando a viagem uma aventura tão grande que certamente o réveillon se tornará menos importante no departamento “sentido da vida” e “pensar sobre o ano”.

Eu sei que a culpa também é minha. Que se eu fizesse esportes pensaria menos. Que se eu tomasse sol dormiria mais. Que de alguma forma me apeguei a essa necessidade de entendimento insuportável, um olhar de fora que me leva na coleira desde pequena, como se eu nunca tivesse sido menina, como se eu nunca pudesse apertar o stop. Mas quer saber? Sou feliz assim. Minhas comemorações são independentes e muitas vezes silenciosas, e todos os dias acordo querendo fazer tudo diferente. O ano que passou foi lindo, e continuará sendo por mais quatro dias inteiros. A eles e aos próximos, minha gratidão.
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 * Atriz. Colunista da Globo
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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

A indústria do espírito

Jordi Soler*
 
 A indústria do espírito

Burguesia ocidental é o objetivo de uma operação mercantil que se fundamenta em um novo narcisismo


O filósofo Daniel Dennett propõe uma fórmula para alcançar a felicidade: “Procure algo mais importante que você e dedique sua vida a isso”.
Essa fórmula vai na contracorrente do que propõe a indústria do espírito no século XXI, que nos diz que não há felicidade maior do que essa que sai de dentro de si mesmo, o que pode ser verdade no caso de um monge tibetano, mas não para quem é o objeto da indústria do espírito, o atribulado cidadão comum do Ocidente que costuma encontrar a felicidade do lado de fora, em outra pessoa, no seu entorno familiar e social, em seu trabalho, em um passatempo, etc.

De acordo com a fórmula de Dennett a chave está do lado de fora, no outro extremo, na atenção que dedicamos a coisas mais importantes do que nós, objetivo, certamente, nada difícil de se conseguir pois, a rigor, tudo é mais interessante do que nós mesmos. 
 
A indústria do espírito, uma das operações mercantis mais bem-sucedidas de nosso tempo, cresceu exponencialmente nos últimos anos, é só ver a quantidade de instrutores e pupilos de mindfulness e de ioga que existem ao nosso redor. Mindfulness e ioga em sua versão pop para o Ocidente, não precisamente as antigas disciplinas praticadas pelos mestres orientais, mas um produto prático e de rápida aprendizagem que conserva sua estética, seu merchandising e suas toxinas culturais.

Há poucos anos a ioga e o mindfulness eram atividades marginais, praticadas por pouca gente e hoje se transformaram, em pouco tempo, em uma indústria multimilionária. Não vamos despreciar os benefícios físicos e mentais da ioga, e não se pode negar que na introspecção do mindfulness pode-se eventualmente enxergar alguma luz, mas também é verdade que o sucesso súbito e meteórico dessas duas indústrias dá o que pensar.

A questão atual é cultivar a espiritualidade, olhar para dentro de si, com um ar oriental, como veículo para se conquistar a felicidade. Como se a felicidade realmente fosse uma parcela conquistável, e não esse estado de ânimo aleatório, espontâneo e efêmero de, digamos, alegria integral, que chega de vez e quando e em rompantes. O que podemos mesmo experimentar são momentos de felicidade, a graça é justamente essa; se a felicidade fosse um estado permanente viveríamos em um mundo de idiotas com um sorriso bobo.

Frente ao argumento de que a humanidade, finalmente, tomou consciência de sua vida interior, por que demoramos tanto em alcançar esse degrau evolutivo?, proporia que, mais exatamente, a burguesia ocidental é o objetivo de uma grande operação mercantil que tem mais a ver com a economia do que com o espírito, a saúde e a felicidade da espécie humana.

Em seu ensaio America the Anxious (St. Martin’s Press, 2016)), a jornalista inglesa Ruth Whippman revela alguns dados reunidos pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos: mais de vinte milhões de pessoas, mais ou menos a metade dos habitantes da Espanha, praticam a meditação naquele país, e o gasto anual em custos de mindfulness, e os produtos derivados do ensino e da prática posterior, é de 4 bilhões de dólares (13 bilhões de reais). Os números da ioga são ainda mais importantes: os novos iogues investem 10 bilhões de dólares (33 bilhões de reais) por ano em aulas de ioga e acessórios como o tapetinho, as calças leggins, a garrafinha iogue de aço inoxidável para a água. Das indústrias que mais crescem, e mais rapidamente, nos Estados Unidos, a ioga ocupa o quarto lugar.

Em nossa época os idosos já não querem ser sábios, 
preferem estar robustos e musculosos
 
Isso ocorre em um país que em sua declaração de independência consagra por escrito a busca da felicidade (the pursuit of happines) como um dos direitos inalienáveis da população. Essa busca, como tudo o que acontece naquele país, se estendeu pelos países do Ocidente e chegou em outros lugares do mundo, como a Espanha e o Brasil, aplicada à indústria do espírito, com um sucesso, e uma militância entre seus praticantes, dos quais a maioria dos cultos não goza.

A indústria do espírito é um produto das sociedades industrializadas onde as pessoas já têm muito bem resolvidas as necessidades básicas, da moradia à comida até o Netflix e o Spotify. Uma vez instalada no angustiante vazio produzido pelas necessidades resolvidas, a pessoa se movimenta para participar de um grupo que lhe procure outra necessidade.

Esse crescente coletivo de pessoas que cavam em si mesmas buscando a felicidade, já conseguiu instalar um novo narcisismo, um egocentrismo new age, um egoísmo raivosamente autorreferencial que, pelo caminho, veio alterar o famoso equilíbrio latino de mens sana in corpore sano, desviando-o descaradamente para o corpo. O guru do século XXI convida seus pupilos a consentir-se a si mesmos, a tratar-se estupendamente enquanto encontram a porta da felicidade, os anima a descobrir os mistérios do mundo em seus próprios umbigos.

Esse inovador egocentrismo new age encaixa divinamente nessa compulsão contemporânea de cultivar o físico, não importa a idade, de se antepor o corpore à mens. Ao longo da história da humanidade o objetivo havia sido tornar-se mais inteligente à medida que se envelhecia; os idosos eram sábios, esse era seu valor, mas agora vemos sua claudicação: os idosos já não querem ser sábios, preferem estar robustos e musculosos, e deixam a sabedoria nas mãos do primeiro iluminado que se preste a dar cursos.

Mais de vinte milhões de pessoas nos Estados Unidos
 praticam a meditação

Walter Benjamin resgata o conselho de um velho sábio cabalista que vem ao caso; para conseguir uma mudança importante na vida não é preciso realizar grandes movimentos, e cursos de nenhuma espécie, eu acrescentaria: “Basta levantar um pouco essa xícara, ou esse arbusto ou essa pedra; e assim com todas as coisas”, recomendava o velho cabalista.

Se a indústria do espírito tem realmente os efeitos que sua clientela propagandeia, por que não vivemos rodeados de gente feliz e satisfeita?

Parece que o requisito para se salvar no século XXI é inscrever-se em um curso, pagar a alguém que nos diga o que fazer com nós mesmos e os passos que se deve seguir para viver cada instante com plena consciência. Seria saudável não perder de vista que o objetivo principal dessas sessões pagas não é tanto salvar a si mesmo, mas manter estável a economia do espírito que, sem seus milhões de subscritores, regressaria ao nível que tinha no século XX, aquela época dourada do hedonismo suicida, em que o mindfulness era patrimônio dos monges, a ioga era praticada por quatro gatos pingados e o espírito era cultivado lendo livros em gratificante solidão.
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* Jordi Soler é escritor.
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Fonte:  https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/26/opinion/1506452714_976157.html

Armadilha para cair em Nietzsche

Sheila Leirner*
Em discussão sobre o Papa, cristianismo, Cristo e migrantes, acabei falando de Nietzsche, não porque eu seja conhecedora de sua obra (não sou) mas pela simples vontade de inventar um diálogo entre o Papa Francisco e este filósofo que era fascinado por Jesus porém questionou duramente o cristianismo fundado na interpretação que São Paulo fez do Evangelho.
Aquela discussão sobre a mensagem natalina de alento aos migrantes – na qual o Papa Francisco não foi politicamente correto e sim mais uma vez humanamente perfeito! – me deu vontade de contar um segredo: talvez eu nunca tivesse lido Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), não fosse a armadilha em que caí na adolescência.

Naquela época, eu costumava fuçar os livros na biblioteca de minha mãe, menos por interesse literário do que para achar os volumes proibidos para a minha idade, sendo que o máximo que pude encontrar foi O Amante de Lady Chatterley, a novela escrita por D. H. Lawrence em 1928, e alguns livros do americano Henry Miller (1891- 1980) como Sexus, Plexus, Nexus e Trópico de Câncer, em inglês, que imediatamente ela colocou fora do meu alcance.

Desse modo, um dia, antes de sair de casa, a minha mãe recomendou:

– Há certos livros que não são apropriados para jovens. Um deles chama-se Assim falava Zaratustra, de um autor que você está proibida de ler e que, por esta razão, encontra-se na parte mais alta da biblioteca. Faça o favor de se contentar apenas com os títulos que deixei nas prateleiras de baixo. E se me desobedecer, já sabe… uma semana sem TV!

Para pensar bem é preciso: a fuga da universidade, a filologia próxima dos grandes textos e o olhar médico.

É claro que li “Zaratustra” às escondidas, procurando, sem achar, as partes quentes, sem entender porque era proibido e sem entendê-lo em geral. Só bem mais tarde descobri que há quase um século e meio Nietzsche, o seu autor, já fazia todas as perguntas sobre o mesmo niilismo, a miséria intelectual e a própria miséria, que continuam constatáveis em toda parte, e a cada instante, até hoje. “O deserto cresce” afirmava ele. É o que estamos presenciando, não?

Fora que o gênio dizia que, para bem pensar e reconhecer as pessoas com quem lidamos, são necessárias três qualidades das quais jamais esqueci. Primeira: estar fora da universidade. O que, convenhamos, nem teria sido necessário o filósofo dizer. Todos sabemos o quanto pesa o “clero” dessa instituição nas mentes das pessoas em todos os lugares, com a sua “república de professores”. Ninguém tem o direito de pensar fora da Faculdade. Considerado “franc-tireur” (independente), Jean Baudrillard costumava dizer, sempre rindo, que ele mesmo, entre outros, também não tinha esse direito…

A segunda qualidade exigida por Nietzsche: ser um bom filólogo. Se interessar de perto pelos textos, pela língua e pelo estilo. A terceira é o “olho médico” para fazer o diagnóstico do seu tempo. Sem esses três atributos, não se pensa muito longe, “continua-se um asno”, como ele dizia, alguém que carrega o peso das idéias recebidas…

Genial! Mas ele não foi o único. Outro médico da alma também fez sensação na mesma época: um certo Freud que falaria de um certo “mal estar na civilização”. Aliás, os dois tinham uma amiga comum: Lou von Salomé, que também me foi apresentada mais tarde pelo simples fato de que a minha mãe proibiu de ler quem estava apaixonado por ela.

Esse “olhar medical” que percebia (e hoje também me faz perceber) os homens que negam a vida, detestam a felicidade e morrem de medo do trágico, traz até agora uma luz cruel sobre o nosso tempo. Assim como quando aponta certos valores da moral cristã (mas também do islamismo radical) que “comprometem o progresso” uma vez que são fundados no ódio e fanatismo.

Que sorte a minha este filólogo, filósofo e poeta alemão (talvez o mais francês de todos eles) ter sido colocado na parte mais alta da biblioteca pela minha mãe. Agradeço o estratagema dela e o recomendo a todos os pais. Talvez seja a única maneira de fazer um adolescente ler filosofia e, mesmo sem ser um estudioso ou especialista, continuar a leitura por puro prazer na vida adulta.

Aí está! Hoje eu disse tudo. Até a próxima, quando direi um pouco mais!
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 * Sheila Leirner é uma curadora, jornalista e crítica de arte brasileira. Vive e trabalha em Paris desde 1991. Estudou cinema, sociologia da arte e urbanismo na França e, em 1975, tornou-se crítica de arte no jornal O Estado de S. Paulo.
 Fonte: http://www.estadao.com.br/26/12/2017
Foto:Edward Munch (1863-1944) Retrato do filósofo Friedrich Nietzsche, Óleo sobre tela (1906). Galeria Thielska, Estocolmo.

Luciano Floridi: “Eu não acredito em deus. Espero é que ele exista”


Rui Gaudencio
Um filósofo não crente que se dedica a discutir a possibilidade da existência de deus e a ideia de esperança, tendo como pano de fundo as revoluções tecnológicas que a humanidade 
enfrenta e as suas implicações

Juntar filosofia, fé, tecnologia e racionalidade na mesma conversa não é óbvio. Mas é o caminho que está a ser tentado por Luciano Floridi, um pensador italiano que trabalha no campo da ética da informação e que explora as mudanças que a tecnologia tem imposto na sociedade. É professor de Filosofia e director do Laboratório de Ética Digital na Universidade de Oxford, em Inglaterra. O seu trabalho mais recente tem-se dedicado às consequências sociopolíticas das mudanças tecnológicas. O seu último livro, intitulado The Fourth Revolution – How the Infosphere Is Reshaping Human Reality (“A Quarta Revolução - Como a Infoesfera está a reformatar a realidade humana”, ainda não editado em Portugal), trata do impacto das tecnologias da comunicação e informação na forma como olhamos para nós mesmos enquanto espécie e enquanto indivíduos.

O autor veio a uma conferência sobre inteligência artificial, organizada pelo núcleo de Filosofia da Universidade do Porto, abordar algo que normalmente está longe das conversas sobre tecnologia: o divino. A sua ideia é que devemos valorizar a esperança na possibilidade da existência de deus e que isso é compatível com a racionalidade. Pelo meio critica a forma como a tecnologia se quer tornar omnipotente e dominante, incluindo no controlo da ideia e do ideal da esperança. O modo como Floridi cruza a expectativa do divino com a crítica à fé desmesurada na tecnologia como resolução para todos os problemas da humanidade foi o mote para esta conversa.

Na sua apresentação mencionou que o valor mais alto da esperança deve ser a existência do divino, que isso deve ser algo a que o ser humano deve aspirar. Em contraponto, a utopia tecnológica quer propagar um valor ainda mais elevado do que esse, porque afirma que no futuro a evolução do ser humano vai fazer com que sejamos nós mesmos o divino. Deixamos de precisar de deus, porque nos tornamos deus.
Sim, é exactamente isso que nos vendem, que nos tornaremos melhores e mais poderosos. Num certo sentido é como na publicidade, que me quer vender aquele carro e me diz que se eu o comprar fico mais interessante e mais atraente. Mas é um disparate, eu ainda sou eu e serei com ou sem carro. É um truque. Faz parecer que sim, que podemos ser deus e o valor mais alto que existe no Universo.
Mas depois temos de olhar para a História: já tanta vez nos pusemos no centro do Universo e fomos sempre arredados desse papel. Copérnico, Darwin, Freud, Turing, todos eles foram pensadores que nos fizeram o favor de se afastar do centro do Universo. Nós não somos o valor supremo do Universo, há sempre pensadores que são suficientemente inteligentes para perceber isso. Ou há algo mais – e eu não estou a dizer que há, atenção –, ou então o cenário fica incompleto. E essa é a deriva histórica que se verifica sempre que o homem se coloca no centro do Universo.

Estamos num processo em que a religião das novas gerações poderá ser a tecnologia. Yuval Noah Harari defende, no Homo Deus, que pode ocorrer um movimento religioso face à tecnologia, tornando como inevitável uma fé dominante nela... Isso não o preocupa?
Não há propriamente um problema quanto a uma tecno-igreja. Mas seria uma oportunidade perdida, creio. Se não percebermos quão extraordinários e simultaneamente limitados nós somos, estamos a desperdiçar o nosso capital de análise. Noutro contexto, gosto de me referir à humanidade como um erro lindo: e podemos olhar para a beleza do erro ou para a dimensão errada da beleza. Somos ao mesmo tempo capazes das coisas mais horríveis e das mais belas, o Holocausto e a mão de David na Capela Sistina foram feitos pela mesma espécie... Parece-me, nesse sentido, que é altamente limitador resignarmo-nos a almejar aquilo que somos e que temos, mas gosto de acreditar que o Universo contém mais do que isso.

O maior problema dessa tecno-fé ou tecno-religião é que coloca um limite na esperança. Vê o indivíduo como o fim de tudo e limita o alcance da esperança, que é uma forma de a matar. Tem tudo que ver com a perspectiva: se eu for um pequeno pássaro numa jaula enorme, eu posso não perceber que a jaula está lá – mas não é por eu não ter a percepção da jaula que ela deixa de existir. Acredito que essa limitação da esperança é um empobrecimento da humanidade. E há outro problema: essa forma de pensar é também frustrante em termos de ambições. Algumas das maiores realizações da humanidade ocorreram porque sempre tivemos esperança em algo mais e melhor e nunca nos contentamos com o que há.

O consumismo trata sempre de reduzir o espectro da esperança ao objecto ou produto que está em frente aos nossos olhos. Se é comprável, então está no limite da esperança – se não é comprável, então não tem valor. Assim, o que é economicamente adquirível é o que deve estar dentro do meu limite de esperança e nada mais – acho que é uma tristeza pensar assim. Outra expressão desse pensamento é a afirmação de que toda a política é económica. Não é! Há tantas coisas mais: as finanças de um país são um meio para um fim, não são um objectivo em si mesmas. Mas o horizonte de quem pensa assim é reduzido.

A sua conclusão sugere que a humanidade deve caminhar para uma teologia da esperança, certo?
Ter esperança implica acreditar em algo que não podemos provar nem testar. Implica um salto de fé, implica simplesmente acreditar sem ter demonstrações que ajudem nessa crença. Seria bom poder injectar alguma dose de racionalismo nessa interacção que fazemos com a ideia de algo transcendente. Nesse sentido a minha proposta é a de que não se abdique da racionalidade, antes pelo contrário, que use mais racionalidade e se faça mais reflexão. Em primeiro lugar, ter esperança que deus exista é muito diferente de acreditar que ele existe. Aliás, se eu acreditar, quero ter a certeza daquilo em que estou a acreditar. Mas não preciso de chegar aí; preciso só de aceitar a hipótese de que existe um valor transcendente no Universo – algo mais do que aquilo que é fisicamente palpável.
Isto tem muito mais que ver com esperança do que com crença. E é aqui que a esperança se torna uma suspensão da crença. Eu não posso acreditar e decidir sim ou não pela existência do divino, porque não tenho provas para o fazer. O que eu posso é desejar que sim, que exista, até porque o mundo faria muito mais sentido. E seria muito bom para a sociedade, porque nos permitiria ser ainda mais ambiciosos nos nossos objectivos – indo muito para além da sociedade consumista em que estamos.

E é por isso, por essa superação do ser humano, que um homem que não acredita em deus se preocupa com a existência desse mesmo deus?
Sim. Mas note, não é uma preocupação. Eu não acredito em deus – eu espero é que ele exista.
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Reportagem por

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Dedico minhas preces de Natal aos mentirosos e a suas pobres vítimas

Luiz Felipe Pondé





Dedico minhas preces de Natal aos mentirosos e suas vítimas. A natureza humana tem uma vocação irresistível para a mentira e para a hipocrisia. Principalmente os que se dizem ao lado do "bem" e os que gostam de mentir para que fiquemos mais felizes. E, acima de tudo, cuidado com os que querem fazer um mundo melhor. 

Estranho o parágrafo acima, não? Mas, tenha calma, hoje é Natal. 

Façamos um recuo histórico e logo voltaremos ao tema do estranho parágrafo acima. 

Sempre me perguntam, afinal, quais são as fontes em minha formação. São muitas. A filosofia é um diálogo contínuo com os mortos. 

Entre elas, hoje, apontaria o filósofo, teólogo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), e o jansenismo, movimento do qual ele fez parte. 

Jansenismo é um movimento dentro do catolicismo francês que teve no século 17 seu ápice em termos de controvérsias. 

O termo vem do nome do padre holandês Cornelius Jansenius (1585-1638), que escreveu uma obra sobre a teologia da graça de santo Agostinho (354-430), cujo título mais conhecido é "Augustinus" (1640). 

Resumidamente, sua "síntese" da teologia agostiniana da graça é que, sem a graça de Deus, não saímos do pecado. Logo, a natureza humana "caída" não é capaz de sair do atoleiro sem "a vigilante piedade de Deus", termo de um jansenista contemporâneo, Georges Bernanos (1888-1948). 

Para um jansenista, uma das piores lutas é contra o orgulho e a vaidade que alimentam nosso cotidiano. Ambos, além de contaminarem a vida moral, contaminam a vida cognitiva, isto é, vemos o mundo e a nós mesmo através da lente do orgulho e da vaidade: logo, nos achamos bons, corajosos e honestos. 

O "efeito jansenista" é estar constantemente em combate contra essa contaminação moral e cognitiva causada pelo amor ao orgulho e à vaidade. 

Não é à toa que os "senhores de Port-Royal", como ficaram conhecido os jansenistas no século 17 francês (Port-Royal é o nome de um convento de freiras diretamente associado ao movimento em questão), eram vistos como pessoas um tanto melancólicas e dadas à busca atormentada da verdade sobre a natureza humana. 

O jansenismo alimentou muito, ao longo do século 17 francês, o subterrâneo intelectual de autores que refletiram sobre a natureza humana. Esses autores ficaram conhecidos como "les moralistes", sendo Pascal o maior entre eles. 

Voltemos ao tema do parágrafo inicial. Uma das apresentações desse "efeito jansenista" é reconhecer o quão insuportável é a verdade. 

A marca jansenista é a análise fina da natureza humana e de suas agonias com a verdade. 

Temos entre nós um exemplo de filósofo muito próximo da tradição jansenista, o jovem Andrei Venturini Martins. Vou te dar um presente de Natal: a indicação de um livro, "A Verdade É Insuportável", da editora Garimpo (R$ 30, 144 págs.). 

O livro de Andrei é exemplo elegante e didático do olhar jansenista, em sua profundida e dureza. Mas a obra não se limita à tradição jansenista enquanto tal. As referências vão de Mário Quintana a Marilena Chaui. De Michel Onfray a Arthur Schopenhauer. De Platão a Freud. 

O fio condutor é o tema da dificuldade de olhar o mundo naquilo que ele tem de mais sofrido. 

O método é a generosidade com o leitor. Por isso trata-se de uma obra muito útil para quem quer se aventurar de forma introdutória e sólida na tradição filosófica que descortina a hipocrisia do mundo. 

Outro traço é o "contemporâneo" relendo a tradição. 

Qual seria o efeito do "pessimismo antropológico" jansenista hoje? 

Vejamos alguns exemplos do próprio autor. 

Se, por um lado, dizem que o homem é o único animal que busca alguém a quem amar e por isso sofrerá das armadilhas "do outro" em sua vida, por outro lado, para aqueles que defendem o "ficarei só", a solidão o espera, antes que ele imagine. 

Nunca se fez tanta propagando do sexo, quando, na verdade, nunca fomos tão broxas, porque a "máquina biológica é precária". 

"Boa parte dos homens trabalharão toda a vida como bois num curral" e, ao final, morrerão de tédio. 

Jesus disse que a verdade nos libertará. 

Quem paga esse preço? 
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.
Imagem:  Ricardo Cammarota/Folhapress
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/12/1945746-dedico-minhas-preces-de-natal-aos-mentirosos-e-a-suas-pobres-vitimas.shtml

domingo, 24 de dezembro de 2017

Os africanos que propuseram ideias iluministas antes de Locke e Kant






RESUMO Os ideais mais elevados de Locke, Hume e Kant foram propostos mais de um século antes deles por Zera Yacob, um etíope que viveu numa caverna. O ganês Anton Amo usou noção da filosofia alemã antes de ela ser registrada oficialmente. Autor defende que ambos tenham lugar de destaque em meio aos pensadores iluministas.


Os ideais do Iluminismo são a base de nossas democracias e universidades no século 21: a crença na razão, na ciência, no ceticismo, no secularismo e na igualdade. De fato, nenhuma outro período se compara à era do Iluminismo. 

A Antiguidade é inspiradora, mas está a um mundo de distância das sociedades modernas. A Idade Média é mais razoável do que sua reputação sugere, mas ainda assim é medieval. A Renascença foi gloriosa, mas em grande medida graças ao seu resultado: o Iluminismo. O romantismo veio como reação à era da razão, mas os ideais dos Estados modernos não se expressam em termos de romantismo e emoção. 

Segundo a história mais contada, o Iluminismo tem origem no "Discurso do Método" (1637), de René Descartes, continuou por cerca de um século e meio com John Locke, Isaac Newton, David Hume, Voltaire e Kant e terminou com a Revolução Francesa, em 1789 —talvez com o período do terror, em 1793. 

Mas e se a história estiver errada? E se o Iluminismo puder ser associado a lugares e pensadores que costumamos ignorar? Tais perguntas me assombram desde que topei com o trabalho de um filósofo etíope do século 17: Zera Yacob (1599-1692), também grafado Zära Yaqob. 

Yacob nasceu numa família pobre numa propriedade agrícola perto de Axum, a lendária antiga capital do norte da Etiópia. Como estudante, ele impressionou seus professores e foi enviado a uma nova escola para estudar retórica ("siwasiw" em ge'ez, a língua local), poesia e pensamento crítico ("qiné") por quatro anos. 

Em seguida, estudou a Bíblia por dez anos em outra escola, recebendo ensinamentos dos católicos e dos coptas, bem como da tradição cristã ortodoxa, majoritária no país. 

Na década de 1620, um jesuíta português convenceu o rei Susenyos a converter-se ao catolicismo, que não tardou a virar religião oficial da Etiópia. Seguiu-se uma perseguição aos livres-pensadores, mais intensa a partir de 1630. Yacob, que nessa época lecionava na região de Axum, havia declarado que nenhuma religião tem mais razão que outra —e seus inimigos o denunciaram para o rei. 

Yacob fugiu, levando apenas um pouco de ouro e os Salmos de Davi. Viajou para o sul, para a região de Shewa, onde se deparou com o rio Tekezé. 

Ali encontrou uma área desabitada com uma "bela caverna" no início de um vale. Construiu um muro de pedra e viveu nesse local isolado para "encarar apenas os fatos essenciais da vida", como Henry David Thoreau descreveria uma vida também solitária, dois séculos mais tarde, em "Walden" (1854).
Por dois anos, até a morte do rei, em setembro de 1632, Yacob permaneceu na caverna como ermitão, saindo apenas para buscar alimentos no mercado mais próximo. Na caverna, ele alinhavou sua nova filosofia racionalista. 

Ele acreditava na primazia da razão e afirmava que todos os seres humanos, homens e mulheres, são criados iguais. Yacob argumentou contra a escravidão, criticou todas as religiões e doutrinas reconhecidas e combinou essas opiniões com sua crença pessoal em um criador divino, asseverando que a existência de uma ordem no mundo faz dessa a opção mais racional. 

Em suma: muitos dos ideais mais elevados do Iluminismo foram concebidos e resumidos por um homem que trabalhou sozinho em uma caverna etíope de 1630 a 1632. 

LIVROS
 
A filosofia de Yacob, baseada na razão, é apresentada em sua obra principal, "Hatäta" (investigação). O livro foi escrito em 1667 por insistência de seu discípulo, Walda Heywat, que escreveu ele próprio uma "Hatäta" de orientação mais prática. 

Hoje, 350 anos mais tarde, é difícil encontrar um exemplar do trabalho de Yacob. A única tradução ao inglês foi feita em 1976 pelo professor universitário e padre canadense Claude Sumner. Ele a publicou como parte de uma obra em cinco volumes sobre a filosofia etíope, que foi lançada pela nada comercial editora Commercial Printing Press, de Adis Abeba. 

O livro foi traduzido ao alemão e, no ano passado, ao norueguês, mas ainda é basicamente impossível ter acesso a uma versão em inglês. 

A filosofia não era novidade na Etiópia antes de Yacob. Por volta de 1510, "The Book of the Wise Philosophers" (o livro dos filósofos sábios) foi traduzido e adaptado ao etíope pelo egípcio Abba Mikael. Trata-se de uma coletânea de ditados de filósofos gregos pré-socráticos, Platão e Aristóteles por meio dos diálogos neoplatônicos, e também foi influenciado pela filosofia arábica e as discussões etíopes. 

Em sua "Hatäta", Yacob critica seus contemporâneos por não pensarem de modo independente e aceitarem as palavras de astrólogos e videntes só porque seus predecessores o faziam. Em contraste, ele recomenda uma investigação baseada na razão e na racionalidade científica, considerando que todo ser humano nasce dotado de inteligência e possui igual valor. 

Longe dele, mas enfrentando questões semelhantes, estava o francês Descartes (1596-1650). Uma diferença filosófica importante entre eles é que o católico Descartes criticou explicitamente os infiéis e ateus em sua obra "Meditações Metafísicas" (1641). 

Essa perspectiva encontra eco na "Carta sobre a Tolerância" (1689), de Locke, para quem os ateus não devem ser tolerados

As "Meditações" de Descartes foram dedicadas "ao reitor e aos doutores da sagrada Faculdade de Teologia em Paris", e sua premissa era "aceitar por meio da fé o fato de que a alma humana não morre com o corpo e de que Deus existe". 

Yacob, pelo contrário, propõe um método muito mais agnóstico, secular e inquisitivo —o que também reflete uma abertura ao pensamento ateu. O quarto capítulo da "Hatäta" começa com uma pergunta radical: "Tudo que está escrito nas Sagradas Escrituras é verdade?" Ele prossegue pontuando que todas as diferentes religiões alegam que sua fé é a verdadeira: 

"De fato, cada uma delas diz: 'Minha fé é a certa, e aqueles que creem em outra fé creem na falsidade e são inimigos de Deus'. (...) Assim como minha fé me parece verdadeira, outro considera verdadeira sua própria fé; mas a verdade é uma só". 

Assim, ele deslancha um discurso iluminista sobre a subjetividade da religião, mas continua a crer em algum tipo de criador universal. Sua discussão sobre a existência de Deus é mais aberta que a de Descartes e talvez mais acessível aos leitores de hoje, como quando incorpora perspectivas existencialistas: 

"Quem foi que me deu um ouvido com o qual ouvir, quem me criou como ser reacional e como cheguei a este mundo? De onde venho? Tivesse eu vivido antes do criador do mundo, teria conhecido o início de minha vida e da consciência de mim mesmo. Quem me criou?". 

IDEIAS AVANÇADAS
 
No capítulo cinco, Yacob aplica a investigação racional a leis religiosas diferentes. Critica igualmente o cristianismo, o islã, o judaísmo e as religiões indianas. 

Ele aponta, por exemplo, que o criador, em sua sabedoria, fez o sangue fluir mensalmente do útero das mulheres, para que elas possam gestar filhos. Assim, conclui que a lei de Moisés, segundo a qual as mulheres são impuras quando menstruam, contraria a natureza e o criador, já que "constitui um obstáculo ao casamento e a toda a vida da mulher, prejudica a lei da ajuda mútua, interdita a criação dos filhos e destrói o amor". 

Desse modo, inclui em seu argumento filosófico a perspectiva da solidariedade, da mulher e do afeto. E ele próprio viveu segundo esses ideais. 


Fabio Zimbres
Ilustração de capa da Ilustríssima, por Fabio Zimbres  

Depois de sair da caverna, pediu em casamento uma moça pobre chamada Hirut, criada de uma família rica. O patrão dela dizia que uma empregada não estava em pé de igualdade com um homem erudito, mas a visão de Yacob prevaleceu. Consumada a união, ele declarou que ela não deveria mais ser serva, mas seu par, porque "marido e mulher estão em pé de igualdade no casamento". 

Contrastando com essas posições, Kant (1724-1804) escreveu um século mais tarde em "Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime" (1764): "Uma mulher pouco se constrange com o fato de não possuir determinados entendimentos". 

E, nos ensaios de ética do alemão, lemos que "o desejo de um homem por uma mulher não se dirige a ela como ser humano, pelo contrário, a humanidade da mulher não lhe interessa; o único objeto de seu desejo é o sexo dela". 

Yacob enxergava a mulher sob ótica completamente diferente: como par intelectual do filósofo. 

Ele também foi mais iluminista que seus pares do Iluminismo no tocante à escravidão. No capítulo cinco, Yacob combate a ideia de que "possamos sair e comprar um homem como se fosse um animal". Assim, ele propõe um argumento universal contra a discriminação: 

"Todos os homens são iguais na presença de Deus; e todos são inteligentes, pois são suas criaturas; ele não destinou um povo à vida, outro à morte, um à misericórdia e outro ao julgamento. Nossa razão nos ensina que esse tipo de discriminação não pode existir". 

As palavras "todos os homens são iguais" foram escritas décadas antes de Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, ter empunhado sua pena. 

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E a teoria do contrato social de Locke não se aplicava a todos na prática: ele foi secretário durante a redação das "Constituições Fundamentais da Carolina" (1669), que concederam aos homens brancos poder absoluto sobre seus escravos africanos. O próprio inglês investiu no comércio negreiro transatlântico. 

Comparada à de seus pares filosóficos, portanto, a filosofia de Yacob frequentemente parece o epítome dos ideais que em geral atribuímos ao Iluminismo. 

ANTON AMO
 
Alguns meses depois de ler a obra de Yacob, enfim tive acesso a outro livro raro: uma tradução dos escritos reunidos do filósofo Anton Amo (c. 1703-55), que nasceu e morreu em Gana. 

Amo estudou e lecionou por duas décadas nas maiores universidades da Alemanha (como Halle e Jena), escrevendo em latim. Hoje, segundo o World Library Catalogue, só um punhado de exemplares de seu "Antonius Guilielmus Amo Afer of Axim in Ghana" está disponível em bibliotecas mundo afora. 

O ganês nasceu um século após Yacob. Consta que ele foi sequestrado do povo akan e da cidade litorânea de Axim quando era pequeno, possivelmente para ser vendido como escravo, sendo levado a Amsterdã, para a corte do duque Anton Ulrich de Braunschweig-Wolfenbüttel —visitada com frequência pelo polímata G. W. Leibniz (1646-1716). 

Batizado em 1707, Amo recebeu educação de alto nível, aprendendo hebraico, grego, latim, francês e alemão —e provavelmente sabia algo de sua língua materna, o nzema. 

Tornou-se figura respeitada nos círculos acadêmicos. No livro de Carl Günther Ludovici sobre o iluminista Christian Wolff (1679-1754) —seguidor de Leibniz e fundador de várias disciplinas acadêmicas na Alemanha—, Amo é descrito como um dos wolffianos mais proeminentes. 

No prefácio a "Sobre a Impassividade da Mente Humana" (1734), de Amo, o reitor da Universidade de Wittenberg, Johannes Gottfried Kraus, saúda o vasto conhecimento do autor, situa sua contribuição ao iluminismo alemão em um contexto histórico e sublinha o legado africano da Renascença europeia: 

"Quando os mouros vindos da África atravessaram a Espanha, trouxeram com eles o conhecimento dos pensadores da Antiguidade e deram muita assistência ao desenvolvimento das letras que pouco a pouco emergiam das trevas". 

O fato de essas palavras terem saído do coração da Alemanha na primavera de 1733 ajuda a lembrar que Amo não foi o único africano a alcançar o sucesso na Europa do século 18. 

Na mesma época, Abram Petrovich Gannibal (1696-1781), também sequestrado e levado da África subsaariana, tornava-se general do czar Pedro, o Grande, da Rússia. O bisneto de Gannibal se tornaria o poeta nacional da Rússia, Alexander Pushkin. E o escritor francês Alexandre Dumas (1802-70) foi neto de uma africana escravizada e filho de um general aristocrata negro nascido no Haiti. 

Amo tampouco foi o único a levar diversidade e cosmopolitismo a Halle nas décadas de 1720 e 1730. Vários alunos judeus de grande talento estudaram na universidade. O professor árabe Salomon Negri, de Damasco, e o indiano Soltan Gün Achmet, de Ahmedabad, também passaram por lá. 

CONTRA A ESCRAVIDÃO
 
Em sua tese, Amo escreveu explicitamente que havia outras teologias além da cristã, incluindo entre elas a dos turcos e a dos "pagãos". 

Ele discutiu essas questões na dissertação "Os Direitos dos Mouros na Europa", em 1729. O trabalho não pode ser encontrado hoje, mas, no jornal semanal de Halle de novembro de 1729, há um artigo curto sobre o debate público de Amo. Segundo esse texto, o ganês apresentou argumentos contra a escravidão, aludindo ao direito romano, à tradição e à razão. 

Será que Amo promoveu a primeira disputa legal da Europa contra a escravidão? Podemos pelo menos enxergar um argumento iluminista em favor do sufrágio universal, como o que Yacob propusera cem anos antes. Mas essas visões não discriminatórias parecem ter passado despercebidas dos pensadores principais do iluminismo no século 18. 

David Hume (1711-76), por exemplo, escreveu: "Tendo a suspeitar que os negros, e todas as outras espécies de homem em geral (pois existem quatro ou cinco tipos diferentes), sejam naturalmente inferiores aos brancos". E acrescentou: "Nunca houve nação civilizada de qualquer outra compleição senão a branca, nem indivíduo eminente em ação ou especulação". 

Kant levou adiante o argumento de Hume e enfatizou que a diferença fundamental entre negros e brancos "parece ser tão grande em capacidade mental quanto na cor", antes de concluir, no texto do curso de geografia física: "A humanidade alcançou sua maior perfeição na raça dos brancos". 

Na França, o mais célebre pensador iluminista, Voltaire (1694-1778), não só descreveu os judeus em termos antissemitas, como quando escreveu que "todos eles nascem com fanatismo desvairado em seus corações"; em seu ensaio sobre a história universal (1756), ele afirmou que, se a inteligência dos africanos "não é de outra espécie que a nossa, é muito inferior". 

Como Locke, Voltaire investiu dinheiro no comércio de escravos. 

CORPO E MENTE
 
A filosofia de Amo é mais teórica que a de Yacob, mas as duas compartilham uma visão iluminista da razão, tratando todos os humanos como iguais. 

Seu trabalho é profundamente engajado com as questões da época, como se vê em seu livro mais conhecido, "Sobre a Impassividade da Mente Humana", construído com um método de dedução lógica utilizando argumentos rígidos, aparentemente seguindo a linha de sua dissertação jurídica anterior. Aqui ele trata do dualismo cartesiano, a ideia de que existe uma diferença absoluta de substância entre a mente e o corpo. 

Em alguns momentos Amo parece se opor a Descartes, como observa o filósofo contemporâneo Kwasi Wiredu. Ele argumenta que Amo se opôs ao dualismo cartesiano entre mente e corpo, favorecendo, em vez disso, a metafísica dos akan e o idioma nzema de sua primeira infância, segundo os quais sentimos a dor com nossa carne ("honem"), e não com a mente ("adwene"). 

Ao mesmo tempo, Amo diz que vai tanto defender quanto atacar a visão de Descartes de que a alma (a mente) é capaz de agir e sofrer junto com o corpo. Ele escreve: "Em resposta a essas palavras, pedimos cautela e discordamos: admitimos que a mente atua junto com o corpo graças à mediação de uma união natural. Mas negamos que ela sofra junto com o corpo". 

Amo argumenta que as afirmações de Descartes sobre essas questões contrariam a visão do próprio filósofo francês. Ele conclui sua tese dizendo que devemos evitar confundir as coisas que fazem parte do corpo e da mente. Pois aquilo que opera na mente deve ser atribuído apenas à mente. 

Talvez a verdade seja o que o filósofo Justin E. H. Smith, da Universidade de Paris, aponta em "Nature, Human Nature and Human Difference" (natureza, natureza humana e diferença humana, 2015): "Longe de rejeitar o dualismo cartesiano, pelo contrário, Amo propõe uma versão radicalizada dele". 

Mas será possível que tanto Wiredu quanto Smith tenham razão? Por exemplo, será que a filosofia akan tradicional e a língua nzema continham uma distinção cartesiana entre corpo e mente mais precisa que a de Descartes, um modo de pensar que Amo então levou para a filosofia europeia? 

Talvez seja cedo demais para sabermos, já que uma edição crítica das obras de Amo ainda aguarda ser publicada, possivelmente pela Oxford University Press. 

COISA EM SI
 
No trabalho mais profundo de Amo, "Treatise on the Art of Philosophising Soberly and Accurately" (tratado sobre a arte de filosofar com sobriedade e precisão, 1738), ele parece antecipar Kant. O livro trata das intenções de nossa mente e das ações humanas como sendo naturais, racionais ou de acordo com uma norma. 

No primeiro capítulo, escrevendo em latim, Amo argumenta que "tudo é passível de ser conhecido como objeto em si mesmo, ou como uma sensação, ou como uma operação da mente". 

Ele desenvolve em seguida, dizendo que "a cognição ocorre com a coisa em si" e afirmando: "O aprendizado real é a cognição das coisas em si. E assim tem sua base na certeza da coisa conhecida".
Seu texto original diz "omne cognoscibile aut res ipsa", usando a noção latina "res ipsa" como "coisa em si". 

Hoje Kant é conhecido por seu conceito da "coisa em si" ("das Ding an sich") em "Crítica da Razão Pura" (1787) —e seu argumento de que não podemos conhecer a coisa além de nossa representação mental dela. 

Mas é fato sabido que essa não foi a primeira utilização do termo na filosofia iluminista. Como diz o dicionário Merriam-Webster no verbete "coisa em si": "Primeira utilização conhecida: 1739". Mesmo assim, isso foi dois anos depois de Amo ter entregue seu trabalho principal em Wittenberg, em 1737.
À luz dos exemplos desses dois filósofos iluministas, Zera Yacob e Anton Amo, talvez seja preciso repensarmos a Idade da Razão nas disciplinas da filosofia e da história das ideias. 

Na disciplina da história, novos estudos comprovaram que a revolução mais bem-sucedida a ter nascido das ideias de liberdade, igualdade e fraternidade se deu no Haiti, não na França. A Revolução Haitiana (1791-1804) e as ideias de Toussaint L'Ouverture (1743""1803) abriram o caminho para a independência do país, sua nova Constituição e a abolição da escravidão. 

Em "Les Vengeurs du Nouveau Monde" (os vingadores do novo mundo, 2004), Laurent Dubois conclui que os acontecimentos no Haiti foram "a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, eram de fato universais".
Nessa linha, podemos indagar se Yacob e Amo algum dia serão elevados à posição que merecem entre os filósofos da Era das Luzes. 

*
Este texto foi publicado originalmente no site Aeon.
DAG HERBJORNSRUD, 46, é historiador de ideias e fundador do SGOKI (Centro de História Global e Comparativa de Ideias), em Oslo.
CLARA ALLAIN é tradutora.
FABIO ZIMBRES, 57, é quadrinista, designer e artista visual. 
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Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/12/1945398-os-africanos-que-propuseram-ideias-do-iluminismo-antes-de-locke-e-kant.shtml

sábado, 23 de dezembro de 2017

Pra quem acredita, Natal existe

Lya Luft* 
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Pois esta coluna vai aparecer exatamente na véspera de Natal. Ou nas vésperas, porque já sai no sábado. Muitos hão de pensar, ué, essa senhora, com tudo o que já viveu, experimentou, passou, leu, aprendeu, curtiu ou sofreu, ainda acredita nisso? 

Pois esta senhora acredita em fadas e duendes que de noite cochicham entre as árvores do meu jardim no Bosque de Gramado, acredita em anjos da guarda, acredita em Deus, seja lá como o quiserem definir: força suprema, mistério que envolve o mundo, enigma que criou e observa o universo com ar de pai meio divertido, meio compadecido... não importa. Em deuses, desses bonitos e humanos, deuses da alegria e do consolo, da água doce, do mar, da floresta, dos tesouros, dos ventos. 

Acreditei em Papai Noel e Cegonha até uma idade vergonhosa na minha infância. O Coelho da Páscoa se foi mais cedo, pois ninguém me explicava como esse bicho, mesmo grandão, botava ou fabricava tanto ovo. 

Seja como for, acreditar é bom, se for em coisas boas. Também acredito que, apesar de todo o mal que vejo no mundo - mais aquele de que não quero nem ouvir falar -, existe bondade, amor, solidariedade, compaixão. Também existe amigo, e família, e em horas difíceis, ah como é bom que existam. Não só pra curtir férias, churrascos, festas, praia, não-fazer-nada, como pra segurar a mão, dizer alguma coisa boa ou nem dizer nada, quando a dor aperta. 

Então, como eu não acreditaria em Natal? Não sei se nasceu mesmo aquele menino lindo, de mãe virgem, me dava uma certa peninha de José não ser o pai, mas essas coisas a gente respeita e crença alheia pra mim é sagrada. 

Mas acredito sobretudo no Natal como dia, noite, hora, em que se reúnem família e amigos, ou amigos e amigos, ou dois amantes, ou colegas, ou vizinhos, ou até desconhecidos, e trocam abraços, e se desejam um bom Natal, muitas vezes já incluindo um bom novo ano. Melhor do que este que está acabando, porque este quase acabou com a gente. 

Mais honesto, mais confiável, mais leve, machucando menos, enganando menos, explorando menos, mutilando menos - ajudando mais, empurrando um pouquinho mais pra cima e pra frente os que estão no desalento. Sim, eu acredito que o novo ano deve ser abraçado nas pessoas queridas, que Natal é possível: pra quem deseja, gosta, acredita em solidariedade, alegria, convívio bom, e tudo que é jeito de amor. 

Que este Natal seja manso.
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* Escritora.
Fonte:http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=15afc188f8076174422928d12c1831ad 23/12/2017
Imagem da Internet

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Marcos Lisboa: Melhora da economia é fruto da retomada de reformas.

Fotos de Marcos Lisboa, economista, presidente do Insper
Marcos Lisboa, presidente do Insper: principais problemas do país já existiam em 2014, 
mas foram ignorados na campanha (Roberto Setton/VEJA/VEJA)

Presidente do Insper afirma que a agenda reformista precisa ser compreendida pela sociedade e políticos como sendo de interesse do país, e não só do governo

“Será que desta vez aprendemos a lição e percebemos que a melhora da economia tem a ver com a retomada da agenda de reformas?”. A pergunta é do economista Marcos Lisboa, presidente do Insper. Ele diz que a sociedade e os políticos precisam entender que muitas das medidas propostas pelo governo atual, do presidente Michel Temer, são de interesse do país e, portanto, precisam ser mantidas para que a recuperação em curso não seja interrompida. Lisboa diz que essa compreensão será colocada na campanha eleitoral de 2018. “Quais serão as estratégias de cada candidato? As escolhas das opções duras têm que se tornar um debate necessário. Ou vamos, como no passado, fingir que os problemas não existem?” Leia a entrevista com Lisboa, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda de 2003 a 2005.

Quais foram os pontos positivos da política econômica em 2017 que deveriam ser levados para 2018?
Em primeiro lugar, é uma agenda que vai muito além deste ou daquele governo. Envolve o parlamento e a sociedade. Nós assistimos neste último um ano e meio a um parlamento que responde à sociedade. Reformas importantes foram ampliadas e levadas a cabo, com forte apoio na hora em que a sociedade apoiou e se organizou por elas. Os avanços são as principais reformas aprovadas: a PEC do Teto (aprovada no fim de 2016), a trabalhista, que saiu bem mais ampla e sofisticada do que a versão que o governo enviou ao Congresso, a mudança no marco regulatório da Petrobras e da Eletrobrás e agora a mudança da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) para a Taxa de Longo Prazo (TLP). E no fim do ano voltou a discussão sobre a reforma da Previdência (cuja votação ficou para o início de 2018). O debate está acontecendo.

Veja tambémE quais foram os principais retrocessos na agenda econômica do governo?
O governo começou o ano mal com a questão do reajuste dos servidores (que foi mantido), que agravou ainda mais a situação dos estados. Tampouco conseguiu enfrentar essa situação dos estados de forma satisfatória. A renegociação da dívida foi complicada e várias oportunidades foram perdidas, como dar transparência às contas com pessoal. Essa conta, a da folha de pagamento e aposentadorias dos servidores, vai ficar pior em 2018 e mais ainda em 2019. Tem havido retrocessos na área de comércio exterior com essa agenda protecionista, que é oportunista. São medidas que já fracassaram, com consequências ruins para o país no futuro. Estão discutindo o Rota 2030 (novo regime para a indústria automotiva, que pode oferecer vantagens tributárias para quem investir no país), uma tarifa para importar etanol, reservas de mercado para a borracha nacional… O setor do agronegócio vai pagar o preço dessa agenda no futuro. Porque vai haver retaliação.

Quais serão os principais desafios para a economia brasileira no próximo ano?
Infelizmente, nos últimos dez anos, foram cometidos tamanhos equívocos que as contas públicas estão completamente desorganizadas. Aliás, o governo não avançou no ajuste fiscal de curto prazo. E isso terá consequências para 2018, 2019. O país está com despesas obrigatórias que chegam ao equivalente a 102%, 104% da receita. Como o país vai enfrentar isso? Ou nós vamos fazer mais reformas ou, em 2019, haverá problemas gravíssimos para pagar obrigações públicas essenciais. O Brasil corre o risco de virar o estado do Rio de Janeiro, que não tem dinheiro para pagar despesas comezinhas. Ou teremos a volta da inflação. Nenhum dos dois cenários é agradável. É um alerta importante de que as reformas têm que andar.

O senhor acredita que a necessidade de reformas vai entrar no discurso dos candidatos em 2018?
Nenhum dos principais problemas do país é novo, todos já estavam presentes em 2014. Até antes, em 2012. Ninguém pode dizer que está surpreso com a crise da Previdência. Ninguém pode dizer que está surpreso com o fracasso das políticas nacional-desenvolvimentistas adotadas nos últimos oito a dez anos. Ou com a crise financeira dos estados. Mas optou-se por não discutir os problemas na campanha de 2014. Não deu certo. Será que, desta vez, vamos discutir de fato os problemas? Quais serão as estratégias de cada candidato? Essa é a dúvida. As escolhas das opções duras têm que se tornar um debate necessário. Ou vamos, como no passado, fingir que os problemas não existem?

O governo atual vai ter força para avançar a agenda de reformas em um ano eleitoral?
Avançar a agenda de reformas não é uma questão do governo atual, é da sociedade. Estamos colhendo agora o benefício da agenda de reformas que andou no último ano, um ano e meio. Foi a reversão da política econômica, junto com o cenário externo favorável, que permitiu que o país saísse da grave recessão e tivesse um momento de alívio, uma janela de oportunidades. O desemprego está caindo, a economia está melhorando, a renda está voltando a crescer… Isso foi mérito de o país ter iniciado a agenda de reformas. Será que desta vez aprendemos a lição e vimos que essas grandes reformas ajudam o país a ficar melhor e que, portanto, é necessário que essa agenda tenha continuidade?
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Fonte:  https://veja.abril.com.br/economia/melhora-da-economia-e-fruto-da-retomada-de-reformas-diz-lisboa/ 22/12/2017