Martha Medeiros*
Era um restaurante popular e estava com
todas as mesas lotadas, a maioria delas ocupadas por dois casais,
algumas com um casal e dois filhos. A mesa em que eu estava era maior:
cinco adultos e três adolescentes. Nem 15 minutos de conversa e eu já
não entendia o que fazia ali. Estava alheia aos assuntos e não achava
graça das piadas. Até que um dos adultos disse algo detestável, e eu
pensei: Não pertenço a este lugar. Lembrei a minha casa, o meu quarto, a
minha cama, onde eu preferiria estar. Preciso ir embora. Preciso chamar
um táxi. A comida está vindo, o garçom já colocou o prato servido à
minha frente, é agora, levanta e vai. Mas não levantei.
Não foi,
nem de longe, a pior noite da minha vida. Já estive em vários outros
lugares a que eu não pertencia. Uma missa rezada por um pastor
mal-intencionado. Um escritório com gente estressada trabalhando até
tarde. Uma entrevista que dei para um jornalista que induzia as minhas
respostas. Uma festa num clube sofisticado onde as pessoas só falavam em
dinheiro. Um quarto úmido de hotel, com as paredes descascadas e luz
branca no teto. Um carro de madrugada lotado de garotos bêbados.
Quando pude, saí mais cedo, saí antes do fim, mas nunca fui embora
durante o apogeu de um acontecimento, como uma noiva que abandona o
altar. Nunca fiz da minha retirada um gesto político, audacioso e
inesperado. Sempre fui daquelas mulheres que, uma vez dito sim, mantinha
meu sim até o limite da educação - mesmo quando o meu sim já tinha
virado, dentro de mim, um não.
Pra ser gentil, me senti estrangeira várias vezes sem estar viajando.
Pode ser suportável, mas nem sempre. Cortesia demais nos desintegra. Se
alguém te oferece um baseado, é só dizer "não, obrigado", caso não seja
chegado. Se alguém te tira pra dançar, é só dizer "não, obrigada", caso
esteja cansada. Alguém ao teu lado diz que buzinar é coisa de preto,
discorde e denuncie o racismo, em vez de ficar num silêncio conivente. E
toque a vida pra frente, elegantemente.
Como elegantemente fez
o ator Pedro Cardoso quando se levantou de um programa de TV
transmitido ao vivo e se retirou, em duplo protesto: ele foi solidário
com os trabalhadores em greve da TV Brasil, que é pública, e o fez
também em repúdio a um comentário inapropriado que o presidente da
emissora teria feito contra Taís Araújo. Pedro é um homem inteligente,
politizado e, como se viu, um lorde. Não agiu feito um moleque. Foi até o
programa para divulgar um livro que havia lançado, mas diante das
informações que recebeu ao chegar lá, sobre a greve e sobre a injúria,
não se sentiu confortável em dar audiência a um canal que não estava
sintonizado com suas convicções. Pediu desculpas a todos, explicou-se e,
com toda a calma, deixou o estúdio, não sem antes abraçar a
apresentadora.
"Eu não pertenço a este lugar." A cada vez que
essa frase grudar em seu pensamento a ponto de gerar desconforto,
levante, se despeça e agradeça por você ter coragem para decidir, pernas
para sair e sua dignidade aguardando lá fora.
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* Escritora.
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=ffa8c1fb530dc6d00fd481666ec3310e 02/12/2017
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