Aqui a ordem inverte-se: muitos se chamam ensaio, mas não são mais do
que uma encenação. Monos académicos completíssimos, chamados ensaios
como salvaguarda cobarde contra um esquecimento qualquer; colunas
mal-arquitectadas de jornais promovidas a ensaio, como que a insinuarem
que há no autor muito mais conhecimento do que aquele que esparge pelo
povo; o ensaio é um tubo largo para qualquer experiência filosófica,
qualquer recolha antropológica ou qualquer veneta política. Tudo se pode
ensaiar e de todas as maneiras. No entanto, o puro, o verdadeiro, o
original ensaio tem uma tradição específica que é provavelmente um dos
maiores encantos da leitura.
O abastardamento do género é
facilmente verificado: basta, por exemplo, entrar numa livraria e
procurar a secção de ensaio. Nalguns casos, a secção vem mesmo acoplada
às ciências sociais, ensaio/ciências sociais, separada apenas por uma
barra que na verdade não barra coisa alguma. O autêntico ensaio, o
ensaio que, à boa maneira religiosa, tem Montaigne como princípio e fim,
causa e modelo, não se confunde com nenhum tipo de obra. Não é um
estudo à maneira científica, como resultado de uma investigação, mas um
estudo à maneira da pintura, concentrado nos traços gerais e nas
particularidades mais curiosas.
O ensaio, no seu sentido primordial, é a antítese do trabalho
académico. Quando Maguel escreveu sobre Chesterton, um dos príncipes do
género, essa foi uma das características que considerou mais
importantes: “A sua prosa é o oposto da prosa académica, é rejubilante”,
disse. E, de facto, ao contrário do estilo académico, em que cada
opinião é defendida por um exército de estudiosos, no ensaio o autor só
responde perante o seu gosto e a sua cabeça; ao contrário do estilo
académico, em que o estudo aturado dessora as emoções em prol de uma
objectividade académica, do ensaio recende de cada linha a impressão do
autor.
Esta é uma das características que torna mais difícil a
existência de um bom ensaio. Por um lado, é a forma em que a
inteligência está mais exposta: não se escuda em senadores filosóficos,
não troca a argúcia da análise pela exegese minuciosa, é um trabalho de
génio e não de persistência. Por outro, se não se tratar de um ensaio
filosófico ou ideológico, exige um extraordinário poder evocativo. O
ensaio de Thackeray sobre Swift não tem os malabarismos lógicos dos
ensaios de Chesterton; contudo, é a mais cabal prova do seu brilhantismo
como escritor. A intercadência de factos e apartes literários é tão
viva, tão ritmada, que o leitor quase cora de se ver imerso na vida
íntima de Swift; Thackeray não biografa propriamente Swift: escolhe uma
centelha da sua vida e alarga-a com a imensidão do seu génio.
Os
grandes ensaios precisam de uma grande inteligência ou de uma grande
capacidade evocativa precisamente porque estão voluntariamente postos
num lugar mais baixo da hierarquia intelectual. Na tradição de
Montaigne, os ensaios poucas vezes são sobre a essência das coisas. Não
se perdem em análises de definições ou em fórmulas novas, são mais
ilustrativos do que dogmáticos. Montaigne prefere dar exemplos da
lealdade de La Boétie para ilustrar a amizade a perder-se em manobras
escolásticas de definição.
A arte do ensaio passa muito por este
método. O leitor despreocupado não nota as cadências lógicas. A
movimentação de uma ideia para as suas consequências é lenta e
imperceptível, através de histórias e historietas, de tal forma que cada
episódio vale por si mas também como elo numa invisível cadeia lógica. A
leitura de um bom ensaio é descansada porque as teses, o abstracto,
mais do que provadas, são mostradas.
Quem lê os ensaios de George
Steiner consegue perceber bem a mestria deste movimento: há uma volúpia
cultural que é saciada no vaivém de cafés e círculos intelectuais da
europa, e que ameniza a discussão dura sobre os problemas da essência da
linguagem ou da tradução.
Há no bom ensaio um estilo impressivo
próprio do grande escritor, uma cópia de informação própria do sábio e
uma clareza na formulação de problemas própria do Homem inteligente. Um
bom ensaísta é a potência de todas as faculdades do Homem de letras, sem
que nenhuma esteja absolutamente trabalhada. Não é um vate, nem um
erudito, nem um filósofo, ou pelo menos não deixa que nenhum destes
aspectos subjugue os outros.
Como o próprio Canetti admite, é
difícil recensear um livro cuja unidade está apenas na mesma capa a
envolver todos os ensaios. É possível, de facto, olhar para os ensaios
um a um. As linhas sobre Karl Kraus são das que melhor explicam o
atractivo e o método do martelo da burguesia austríaca, o ensaio sobre
Broch faz dele a síntese de uma figura que merecia ser mais explorada – a
figura do “escritor nacional” – e o longo ensaio sobre as relações
entre Kafka e a sua noiva, além de humanizar o escritor checo, prova um
conhecimento assinalável da sua obra e espírito.
O que se pode
dizer deste livro, no seu todo, é aquilo que se pode dizer do bom
ensaísta. Cada um dos ensaios não merecia apenas uma resenha, merecia
tornar-se um livro independente. Nisto não é como Orwell, que estende os
ensaios à medida do problema: com Elias Canetti pode haver casos mais
ou menos curiosos, mas há sempre um fundo importante, nunca uma bagatela
ou um simples entretém. Canetti tem uma invejável capacidade de
expressar aquilo que na leitura é vago ou confuso. É, de facto, mais
fácil perceber o que nos fascina em Broch ou em Karl Kraus depois de ler
Canetti do que depois de ler Kraus ou Broch. Aquilo que é mais
interessante em Canetti não são os seus pensamentos originais – é a
forma como desvenda o modo humano de olhar para as coisas. Mais do que
olho de poeta, tem olho de médico, que do sintoma extrai o cerne da
doença.
De resto, o seu modelo ensaístico é realmente aquele que
dá o maior prazer do ensaio. É cosmopolita e profundo, sente-se-lhe a
Europa debaixo dos pés, eleva o leitor ao diálogo constante e íntimo com
a cultura Europeia. Terá, talvez, como tantos apaixonados pela cultura,
o problema da tolerância: de tanto admirar tantos e tão contraditórios
mestres, não pode amar nenhum com o fervor de apóstolo. É, talvez, a
única paixão humana que lhe parece estar vedada; é também a única,
porém, em que não parece estar interessado.
Título: “A Consciência das Palavras”
Autor: Elias Canetti
Editora: Cavalo-de-ferro
Autor: Elias Canetti
Editora: Cavalo-de-ferro
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Fonte: http://observador.pt/2017/12/17/elias-canetti-e-o-prazer-do-ensaio/
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