Luiz Felipe Pondé
Dedico minhas preces de Natal aos mentirosos e suas vítimas. A natureza
humana tem uma vocação irresistível para a mentira e para a hipocrisia.
Principalmente os que se dizem ao lado do "bem" e os que gostam de
mentir para que fiquemos mais felizes. E, acima de tudo, cuidado com os
que querem fazer um mundo melhor.
Estranho o parágrafo acima, não? Mas, tenha calma, hoje é Natal.
Façamos um recuo histórico e logo voltaremos ao tema do estranho parágrafo acima.
Sempre me perguntam, afinal, quais são as fontes em minha formação. São muitas. A filosofia é um diálogo contínuo com os mortos.
Entre elas, hoje, apontaria o filósofo, teólogo e matemático francês
Blaise Pascal (1623-1662), e o jansenismo, movimento do qual ele fez
parte.
Jansenismo é um movimento dentro do catolicismo francês que teve no século 17 seu ápice em termos de controvérsias.
O termo vem do nome do padre holandês Cornelius Jansenius (1585-1638),
que escreveu uma obra sobre a teologia da graça de santo Agostinho
(354-430), cujo título mais conhecido é "Augustinus" (1640).
Resumidamente, sua "síntese" da teologia agostiniana da graça é que, sem
a graça de Deus, não saímos do pecado. Logo, a natureza humana "caída"
não é capaz de sair do atoleiro sem "a vigilante piedade de Deus", termo
de um jansenista contemporâneo, Georges Bernanos (1888-1948).
Para um jansenista, uma das piores lutas é contra o orgulho e a vaidade
que alimentam nosso cotidiano. Ambos, além de contaminarem a vida moral,
contaminam a vida cognitiva, isto é, vemos o mundo e a nós mesmo
através da lente do orgulho e da vaidade: logo, nos achamos bons,
corajosos e honestos.
O "efeito jansenista" é estar constantemente em combate contra essa
contaminação moral e cognitiva causada pelo amor ao orgulho e à vaidade.
Não é à toa que os "senhores de Port-Royal", como ficaram conhecido os
jansenistas no século 17 francês (Port-Royal é o nome de um convento de
freiras diretamente associado ao movimento em questão), eram vistos como
pessoas um tanto melancólicas e dadas à busca atormentada da verdade
sobre a natureza humana.
O jansenismo alimentou muito, ao longo do século 17 francês, o
subterrâneo intelectual de autores que refletiram sobre a natureza
humana. Esses autores ficaram conhecidos como "les moralistes", sendo
Pascal o maior entre eles.
Voltemos ao tema do parágrafo inicial. Uma das apresentações desse
"efeito jansenista" é reconhecer o quão insuportável é a verdade.
A marca jansenista é a análise fina da natureza humana e de suas agonias com a verdade.
Temos entre nós um exemplo de filósofo muito próximo da tradição
jansenista, o jovem Andrei Venturini Martins. Vou te dar um presente de
Natal: a indicação de um livro, "A Verdade É Insuportável", da editora
Garimpo (R$ 30, 144 págs.).
O livro de Andrei é exemplo elegante e didático do olhar jansenista, em
sua profundida e dureza. Mas a obra não se limita à tradição jansenista
enquanto tal. As referências vão de Mário Quintana a Marilena Chaui. De
Michel Onfray a Arthur Schopenhauer. De Platão a Freud.
O fio condutor é o tema da dificuldade de olhar o mundo naquilo que ele tem de mais sofrido.
O método é a generosidade com o leitor. Por isso trata-se de uma obra
muito útil para quem quer se aventurar de forma introdutória e sólida na
tradição filosófica que descortina a hipocrisia do mundo.
Outro traço é o "contemporâneo" relendo a tradição.
Qual seria o efeito do "pessimismo antropológico" jansenista hoje?
Vejamos alguns exemplos do próprio autor.
Se, por um lado, dizem que o homem é o único animal que busca alguém a
quem amar e por isso sofrerá das armadilhas "do outro" em sua vida, por
outro lado, para aqueles que defendem o "ficarei só", a solidão o
espera, antes que ele imagine.
Nunca se fez tanta propagando do sexo, quando, na verdade, nunca fomos tão broxas, porque a "máquina biológica é precária".
"Boa parte dos homens trabalharão toda a vida como bois num curral" e, ao final, morrerão de tédio.
Jesus disse que a verdade nos libertará.
Quem paga esse preço?
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
Imagem: Ricardo Cammarota/Folhapress
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/12/1945746-dedico-minhas-preces-de-natal-aos-mentirosos-e-a-suas-pobres-vitimas.shtml
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