O Observador faz a pré-publicação do novo livro de Jaime Nogueira
Pinto, "Bárbaros e Iluminados: populismo
e utopia no século XXI", sobre
os líderes e
os regimes que ambicionam tudo.
“Populismo e utopia no século XXI” é o subtítulo do novo livro
do historiador Jaime Nogueira Pinto: um perfil dos regimes e líderes
que na atualidade são os exemplos maiores de filosofias populistas, as
respetivas origens, causas e objetivos. O livro, que foi escrito em
colaboração com Inês Pinto Basto, chega às livrarias no dia 5. O
Observador faz a pré-publicação de um excerto em que é feito paralelismo
entre a realidade política e as obras literárias de autores como
Shakespeare, Aldous Huxley ou Yuval Noah Harari.
Sereis iguais a deuses
“Homo Deus: Breve História do Amanhã é um ensaio
político-filosófico sobre a Humanidade e o que a espera no século XXI,
escrito em 2015 (um ano depois de um outro best-seller, Sapiens: Breve História da Humanidade) por Yuval Noah Harari, o investigador e historiador futurologista, que vive num kibutz e lecciona na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Homo Deus é ambicioso no propósito: o próximo grande
projecto da Humanidade será conquistar os poderes divinos de criação e
recriação que farão com que o Homo Sapiens dê lugar ao Homo Deus. Diz
Harari que, para os magnatas de Silicon Valley, «a igualdade está fora
de moda e a imortalidade é que está a dar» e que o desenvolvimento da
engenharia genética, da medicina regenerativa e da nanotecnologia tem
vindo a alimentar «profecias cada vez mais optimistas». Assim, há
peritos que dizem que a humanidade vai vencer a morte em 2200, outros
que será em 2100, e outros ainda que «em 2050, uma pessoa saudável e com
uma conta bancária igualmente de boa saúde terá sérias possibilidades
de conquistar a imortalidade, ludibriando a morte, década a década».
Conclui
o historiador israelita que, embora pouco se conheça sobre a
consciência e a sensibilidade, com o desenvolvimento da inteligência
artificial e com a gradual separação da inteligência da sua base
biológica «a História da Humanidade chegará ao fim e um processo
completamente novo irá começar». Não será, portanto, já só o fim da
História mas também o fim da Humanidade, tal como a conhecemos.
Para
Harari, a atribulada vida do Homo Sapiens, do Paleolítico até ao século
XXI, é inseparável da sua capacidade de associação ampla, remota e
flexível, assente numa peculiar aptidão para criar ficções agregadoras –
religiões, mitos, narrativas identitárias, leis, direitos, reinos,
nações, impérios, sistemas políticos, dinheiro, crédito, companhias,
bancos, marcas, todas as realidades virtuais que nos fazem cooperar em
larga escala. Foram estas realidades paralelas não tangíveis, estas
«mentiras úteis» disseminadas e consentidas até que, pela sua
operacionalidade, se tornassem «verdades», que conduziram o Homo Sapiens
até hoje através de sucessivas revoluções – a agrícola, a científica, a
industrial, a tecnológica e a última, a biotecnológica, patrocinada
pelo capitalismo dominante e globalizante.
Jennifer Senior começava assim a sua recensão desta História Breve do Futuro, para o New York Times: «Em retrospectiva, alguns livros parecem feitos à medida dos thought leaders do complexo industrial. Sapiens, A Brief History of Humankind,
de Yuval Noah Harari, que saiu nos Estados Unidos há dois anos, foi
claramente um desses livros». Jennifer lembrava que o livro promovera
Harari a conferencista da Ted Global e a coqueluche da classe dominante,
com o alto patrocínio de Barack Obama, Bill Gates, Mark Zuckerberg e de
quase todos os poderosos líderes e gurus deste mundo. Agora, no novo
livro, Harari revelava aos leitores que uma nova raça, uma nova espécie,
podia estar nas calhas do futuro; e que enquanto nós e os Neandertais
éramos, pelo menos, humanos, «os nossos herdeiros haviam de ser iguais a
deuses».
«Sereis como deuses!», assim já rezava a tentadora
promessa da serpente aos pobres e ingénuos Neandertais, Adão e Eva,
encorajando-os a tornarem-se Sapiens, numa das «grandes narrativas» do
princípio de todas as aventuras e desventuras da Humanidade. Agora era
diferente, agora que, segundo Harari, se morria mais de obesidade do que
de fome, de velhice do que de doença contagiosa; agora que o suicídio
matava mais do que a guerra, o terrorismo e a criminalidade; vencidos
que estavam assim três dos quatro cavaleiros do Apocalipse – a Fome, a
Peste e a Guerra –, podíamos finalmente ser como deuses, destruindo o
quarto cavaleiro, a Morte, e conquistando a felicidade aqui na Terra,
até porque para Harari, materialista militante e capitalista
simpatizante, não havia nada que se visse para além dela.
Era o caminho para um Admirável Mundo Novo; porém, como no livro que Huxley baptizou a partir de A Tempestade, de Shakespeare, nesse Admirável Mundo, também pleno de goodly creatures,
a bonança seria só para alguns «Prósperos». Harari também não deixava
de nos alertar para a possibilidade de uma distopia, para o perigo de
uma «disrupção tecnológica» e para eventuais desequilíbrios
irreversíveis que as incursões na ecologia interior do homem (que,
admitia, continuava a ser território desconhecido) pudessem causar. Para
os evitar, sugeria uma espécie de governo global, para acautelar
perigos comuns e para que a «narrativa política» acompanhasse uma
realidade económica e tecnológica já mundializada. As velhas narrativas
tinham falido e o globalismo, como todas as revoluções, fizera muitas
vítimas; alguns reagiam, querendo regressar a um passado mítico, a um
antes de tudo ter começado a correr mal, para tentar começar de novo,
arrepiando caminho (numa entrevista recente, Harari dava o exemplo do
slogan de Trump «make America great again»). Mas para o futurologista
israelita, esta luta dos nacionais contra os globais, dos bárbaros
contra os iluminados, perdia-se na impossibilidade de voltar a erguer
antigas barreiras e fronteiras e de regressar a comunidades fechadas.
O
mundo que Harari deixava antever no seu ensaio, que ao contrário do de
Huxley não era ficção satírica mas um ensaio prospectivo com pergaminhos
filosófico-científicos sobre os cenários possíveis e prováveis para o
futuro próximo, era sobretudo o retrato de uma possibilidade de a
evolução do mundo e da sociedade se cumprirem ou seguirem algumas das
tendências políticas, económicas e sociais dominantes.
Na utopia de Huxley, passada algures no século XXVI, a
ciência e a técnica permitiam que todos vivessem felizes num Estado
totalitário. Como na profecia de Harari, mas mais definitivamente, a
pobreza, a doença, a dor e a guerra tinham sido abolidas. Deus também. E
assim os homens podiam gozar a vida num novo Jardim das Delícias da
sua forja.
Harari é admirador de Huxley e Admirável Mundo Novo é o seu livro de eleição, porque enquanto o Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de Orwell lhe parecia «claramente distópico e por isso pouco sofisticado», em Admirável Mundo Novo
«não se sabia se era de uma utopia ou de uma distopia que se tratava».
Tinha-se a sensação de que havia «qualquer coisa de terrivelmente errado
naquele mundo, mas não se conseguia bem dizer o que era, porque toda a
gente estava sempre feliz e satisfeita».
Da Tempestade ao Admirável Mundo Novo
Na Tempestade de Shakespeare é um bruxo-cientista quem
desencadeia o temporal que causa o naufrágio e atrai para a ilha, como
náufragos, os usurpadores do seu ducado de Milão. Caliban, o escravo
deformado, e a mãe, rainha da ilha que Próspero usurpa como palco para
reaver o seu ducado usurpado, são os bárbaros que manipulam a «magia
negra» que enfrenta a «magia branca» de Próspero e do seu espírito
diáfano, Ariel. É em A Tempestade que a filha de Próspero, Miranda, fala das «many goodly creatures» deste «brave new world» (Oh, wonder! How many goodly creatures are there here! How beauteous mankind is! O brave new world, That has such people in’t!).
Na Cena I do II Acto de A Tempestade,
Gonzalo imagina-se por um momento rei da ilha. Na utopia por ele
sonhada, e pelos outros parodiada, não haveria pobres nem ricos, todo o
trabalho e todo o estudo seriam escusados e a própria soberania
desnecessária, já que a natureza produziria por si mesma o necessário
para alimentar um povo feliz, ingénuo e ocioso. Talvez venha desta
utopia parodiada por Shakespeare e das novas criaturas que espantam
Miranda a escolha de Huxley do título para o seu Admirável Mundo Novo.
Na utopia de Huxley, passada algures no século XXVI, a ciência e a
técnica permitiam que todos vivessem felizes num Estado totalitário.
Como na profecia de Harari, mas mais definitivamente, a pobreza, a
doença, a dor e a guerra tinham sido abolidas. Deus também. E assim os
homens podiam gozar a vida num novo Jardim das Delícias da sua forja.
Para
isso, os Dez Controladores, encarregados do governo do novo Estado
Mundial, criavam humanos em laboratórios-fábricas, através do estado da
arte da biotecnologia. A sociedade estava dividida em cinco classes, dos
Alphas, que constituíam a elite governamental e geriam os laboratórios-
-fábricas dos novos seres, aos Epsilons, que se dedicavam aos trabalhos
mais braçais, que requeriam pouca cabeça.
É sobretudo através de um «selvagem», de um bárbaro, que, em Admirável Mundo Novo,
subsiste e sobrevive, ambígua e discretamente, uma interrogação antiga:
é preferível ser-se feliz e inconsciente, sem liberdade, sem sequer a
noção do que é estar preso, ou sofrer, sofrer tudo – a paixão, a dor
física, a repressão, a prisão, a tortura, a morte até – e poder escolher
o próprio destino?
Quando Admirável Mundo Novo saiu, em
1932, a União Soviética estava a entrar no estalinismo e a Alemanha
esperava Hitler. Huxley, com a intuição das tempestades e catástrofes
que anunciavam abater-se sobre a Europa, mas com o distanciamento
céptico e cínico de um escritor da upper-class inglesa, achou mais adequado optar pela ficção científica, por uma utopia negativa, ao modo das do seu compatriota H. G. Wells.
Ao tempo, Admirável Mundo Novo foi lido como uma distopia,
um modelo de Estado futuro em que os homens e mulheres eram mantidos na
redoma de uma infância feliz. Concretizava-se num Estado Único e pouco
democrático a célebre profecia de Alexis de Tocqueville sobre os
«vindouros tempos democráticos», e repetia-se o conflito exposto por
Dostoievsky em Os Irmãos Karamazov, com a lenda do Grande
Inquisidor: estávamos dispostos a trocar a liberdade pela segurança, e a
possibilidade da dor e do prazer por uma morna felicidade inconsciente?
Em Antic Hay (1923) e After Many a Summer
(1939) Huxley recriava personagens inspiradas no Marquês de Sade, que
considerava o modelo de uma das piores vertentes do racionalismo
iluminista. Sade, dizia Huxley, era o único revolucionário completamente
consistente e consequente da História. Estava também atento aos riscos
do iluminismo racionalista radical e à sedução da Ciência e da Técnica
para os homens que queriam viver para sempre e reencarnar numa nova
humanidade (como o milionário Jo Stoyle). Via nas segundas linhas dos
Estados totalitários os tecnocratas de tudo, dos vindouros
interrogatórios nas caves da Lubianka aos futuros exercícios de eugenia
nos laboratórios das multinacionais. Tinha também consciência do perigo
dos totalitarismos soviético e nazi, que se avizinhavam. No fim dos anos
40, numa carta a Orwell (a quem tinha ensinado francês em Eton, em
1917) escrevia:
As primeiras pistas da filosofia da revolução
definitiva – a revolução que está para além da política e da economia e
que visa a total subversão da psicologia e da filosofia individuais –
encontram-se no Marquês de Sade, que se via como o continuador e o
consumador de Robespierre e de Babeuf. A filosofia da minoria dominante
em 1984 é um sadismo levado à sua conclusão lógica, indo para além do
sexo e negando-o. É minha convicção de que a oligarquia governante vai
descobrir meios menos duros e dilapidadores para governar e satisfazer o
seu desejo de poder, e que estes meios se parecerão mais com os que
descrevi em Brave New World […] Em parte por causa do
materialismo, em parte por causa da respeitabilidade dominante, os
filósofos e os cientistas do século XIX não quiseram investigar a
psicologia dos homens práticos – políticos, soldados, polícias – e
aplicá-la no campo do governo. Graças à ignorância voluntária dos nossos
pais, o advento da revolução definitiva foi adiado por cinco ou seis
gerações […] Estou convencido de que, na próxima geração, os governantes
do mundo vão descobrir que o condicionamento desde a infância e a
narco-hipnose são bem mais eficazes como instrumento de domínio do que
os bastões e as prisões da polícia, e que o desejo de poder pode
cumprir-se convencendo as pessoas a gostarem da servidão, tão bem ou
melhor do que açoitando-as e forçando-as à obediência. O pesadelo de
1984 está destinado a evoluir para o pesadelo de um mundo que terá mais
semelhanças com aquele que imaginei em Brave New World. E a
mudança vai chegar com a necessidade de uma eficácia cada vez maior e
resultar dela. Entretanto, é claro, pode haver uma guerra biológica ou
nuclear em grande escala – e aí podemos ter pesadelos de outra e
inimaginável natureza.
Os césares contra o dinheiro
Nas últimas páginas de A Decadência do Ocidente, Oswald
Spengler escrevia, no seu estilo histórico-profético de pregador de
grandes e últimas verdades, que se o dinheiro fosse tangível a sua
existência seria eterna, mas como era «uma forma abstracta», havia de
extinguir-se depressa: «o advento do cesarismo vai quebrar a ditadura do
Dinheiro e da sua arma política, a Democracia», concluía. A ditadura do
dinheiro tinha usado a democracia como arma política e Spengler via, no
final da Primeira Grande Guerra, o fim do reinado do dinheiro e uma
vontade de submissão voluntária à lei e à ordem de soluções políticas
autoritárias que combatessem a plutocracia financeira.
Spengler
tinha razão, mas teve-a por pouco tempo: o século XX ia ver o triunfo
político das utopias totalitárias com as suas respostas populistas e
respectivos césares; mas ia também ver, depois, o colapso sucessivo de
todos eles, para voltar à casa da partida, ao domínio do dinheiro vivo e
virtual. Obcecado pelas derrotas do Império Germânico e pelo cerco que
os povos periféricos impunham à «civilização», Spengler temia então pela
sobrevivência das «raças brancas». Em O Grande Gatsby (1925),
Scott Fitzgerald, poria na boca do seu vilão, Tom Buchanan, os receios
de Spengler. Por uma vez deprimido por um livro, Tom perguntava a Nick
Carraway se tinha lido The Rise of the Colored Empires: era um
excelente livro que todos deviam ler; a raça branca ia ser suplantada se
não se fizesse nada contra isso; era «tudo científico, estava tudo
provado».
No rescaldo da vitória, o Império Britânico chegava ao
fim e a hegemonia passava para os Americanos, um povo curioso,
repartindo entre Deus e o Bezerro de Ouro a sua escrupulosa devoção.
Os cesarismos e os césares tinham começado a aparecer – em Itália, na
Rússia, na Alemanha e um pouco por todo o lado – para travarem a
decadência, a ascensão de outras raças e, sobretudo, a roda livre do
dinheiro, através da concentração do poder. Na União Soviética, onde o
processo fora mais definitivo, o resultado seria uma das piores tiranias
da História – um modelo concentracionário que se perpetuaria até quase
ao fim do século XX. Na China, 30 anos depois, o César seria um camponês
maquiavélico, impondo uma ditadura delirante que se iria moderando
depois da sua morte; em Itália e na Alemanha, os césares, que
governariam com as classes médias e populares, acabariam vencidos em
guerras mal conduzidas.
Mas o dinheiro, refugiado na anglo-esfera,
sobrevivera, graças à vitória militar dos povos anglo-saxónicos, à sua
indústria e à tenacidade das suas oligarquias. No rescaldo da vitória, o
Império Britânico chegava ao fim e a hegemonia passava para os
Americanos, um povo curioso, repartindo entre Deus e o Bezerro de Ouro a
sua escrupulosa devoção.
A vitória de 1945, dividida com os
Soviéticos e a utopia socialista, levara a um novo e longo conflito de
meio século que terminaria com nova vitória do Ocidente constitucional,
liberal e capitalista. Nesse tempo de Guerra Fria, desfizeram-se os
impérios europeus e multiplicaram-se os Estados, unificou-se a economia e
surgiram novos projectos utópicos, como a União Europeia, que também
para se bater com os Estados Unidos pretendeu acabar com as nações
europeias e agregá-las numa federação ou confederação, num Super-Estado
que professava em nova versão uma fé inabalável no discurso das Luzes.
Com
o fim das utopias socialistas, o modelo do internacionalismo liberal
vencedor, usando uma filosofia de Fim da História, tentava proclamar o
modelo único e definitivo de um mundo sem limites para os mercados, um
«Admirável Mundo Novo» de paz e comércio, sem deuses, sem fronteiras,
sem identidades.
Mas vieram as dificuldades: vastas áreas do
globo, marcadas por culturas e civilizações estranhas à tradição
judaico-cristã, viram nascer, não só a recusa do modelo euro-americano
de globalização democrática e liberal, mas a repulsa activa desse
modelo, que o ataque da Al-Qaeda à América e a persistência de modelos
híbridos, como o nacional-capitalismo (ou socialismo) chinês,
simbolizavam.
A rejeição não era apenas do modelo político mas
também de uma civilização racional laica, mercantilista, sem valores de
orientação permanente, que procurava, mesmo inconscientemente, doutrinar
ou «colonizar» ideológica e culturalmente os seus próprios povos e
todos os outros.
Depois, sucessivamente, foram aparecendo as resistências e os
movimentos identitários que, dessas periferias bárbaras, iam chegando ao
centro iluminado: a Alemanha unificava-se apesar dessa opção nacional
custar muito dinheiro aos alemães ocidentais; depois era a Rússia, com
Putin, que se unificava sob os escombros da União Soviética,
reconstruindo forças armadas capazes de lhe devolverem o poderio
político-militar na Eurásia; a República Popular da China, com Deng
Xiaoping, lançava-se numa política nacional de desenvolvimento, criando
um modelo autoritário de economia mista; no Japão, que nunca deixara de
ser um Estado nacional, um Estado nacional sem imigrantes, as tradições
sobreviviam também ao milagre económico. E em Istambul, Erdoğan queria
voltar a construir a Turquia Otomana, neutralizando opositores militares
e civis.
À lista destes novos césares, que pareciam capazes de
domesticar ou mesmo de controlar o poder do dinheiro, enfrentando a
globalização, mesmo à custa da Democracia, acrescentavam-se outros um
pouco por toda a parte – até na América.
Nacional versus Global
As reacções nacionalistas e populistas, ou nacionais e populares,
lutam contra vários inimigos, identificados com os pilares da ordem
estabelecida – o discurso do Progresso, do individualismo e do
naturalismo radicais, a hegemonia dos mercados sobre as nações, a
globalização, a roda livre das novas tecnologias. A resistência à
globalização, a essa espécie de One World (o Estado Mundial das utopias
de Wells), tem sido, sobretudo, uma resistência nacional e identitária.
Escreve Yuval Harari em Homo Deus
que, com «a transição da autoridade dos humanos para os algoritmos» que
está a acontecer à nossa volta, e que não se deve «a qualquer decisão
dramática de um governo, mas a uma série de escolhas banais», ainda
podemos acabar num estado policial «à maneira de Orwell», um Estado que
«vigia constantemente e controla não apenas as nossas acções, mas até
mesmo tudo o que acontece nos nossos corpos e o que está dentro das
nossas cabeças». Harari teme o fim do liberalismo e o que poderão fazer
desse poder os novos césares: «Basta pensar no que Estaline faria com
sensores biométricos omnipresentes – e naquilo que Putin ainda poderá
fazer». Mas como o próprio admite, os defensores da «singularidade
humana» que temem os pesadelos do século XX, não vão ter pela frente os
mesmos césares, os mesmos inimigos orwellianos:
A maior ameaça
à singularidade humana vem do lado contrário. No século xxi, é mais
provável que os indivíduos se desintegrem suavemente a partir do
interior do que serem brutalmente esmagados por um Big Brother exterior.
Não estamos já nem em 1933 nem em 1973, quando «a
tecnologia facilmente centralizada tornava possível o governo
totalitário». Tudo isso mudou com a revolução informática, quando
milhões e milhões de informações e notícias passaram a circular
permanentemente, sobrepondo-se, digladiando-se, desmentindo-se, semeando
suspeitas ou calúnias cruzadas.
O que resulta da afirmação de Harari é que a nova grande ameaça, o
novo Big Brother, não são os novos césares mas a globalização anónima,
tentacular e aparentemente espontânea, que mina por dentro a
«singularidade humana», levando a humanidade à suave desintegração
individual e colectiva, mediante uma submissão semiconsciente,
manipulada pela mão invisível dos mercados, às maravilhas da técnica, à
eficácia, à escolha fácil e banal alheada da ética, à roda livre de
tudo.
Os movimentos fragmentados, mais de rejeição do que de
afirmação, e até os novos césares, os bárbaros, os Putin os Trump, que
se opõem aos iluminados, lutam contra as forças deste One World, que
também os contaminam e que contaminam tudo e todos: dos bilionários da
High Tech aos jornais de referência, da União Europeia às Nações Unidas,
da esquerda libertária à direita conservadora.
Como escreve Niall Ferguson:
Podem
rir-se bem alto, se se atreverem. A globalização está em crise. O
populismo está em marcha. Os Estados autoritários estão a crescer. […]
Na procura de respostas, muitos comentadores recorrem a respostas
básicas. Para uns, Trump é Hitler, prestes a proclamar a ditadura na
América. Para outros, é Nixon, nas vésperas de ser impeached.
Mas,
continua Ferguson, não estamos já nem em 1933 nem em 1973, quando «a
tecnologia facilmente centralizada tornava possível o governo
totalitário». Tudo isso mudou com a revolução informática, quando
milhões e milhões de informações e notícias passaram a circular
permanentemente, sobrepondo-se, digladiando-se, desmentindo-se, semeando
suspeitas ou calúnias cruzadas, retratando Donald Trump como um
machista despudorado ou Hillary Clinton como uma megera corrupta e
farisaica.
Na disputa eleitoral americana, a tecnologia global e
liberalizada, a High Tech que atirou os seus inventores e gestores para o
topo das fortunas da Forbes, serviu a ambos os contendores: foi também
através dela que Trump e a sua equipa derrotaram os misteriosos global special interests
que, segundo o conselheiro estratégico de Trump, Steve Bannon,
suportavam e manipulavam um «establishment falhado e corrupto»,
personificado por Hillary Clinton.
Os maus da fita
A «revolução americana» que fez do hoteleiro, do agente imobiliário, do businessman, do showman, do playboy maduro Donald Trump o homem mais poderoso do mundo, deve muito a Steve Bannon.
Bannon é um polimetis,
um homem de mil ofícios, católico, académico, oficial de Marinha,
banqueiro, cineasta, grande leitor e grande cinéfilo; foi ele o mago e o
estratega que, com profundo conhecimento da América e dos Americanos,
pôs ordem na caravana Trump para que se arremessasse contra os poderes
do grande Dinheiro e da grande Imprensa.
Sabendo que, nas guerras duras e sem quartel em que se tinham
transformado as campanhas eleitorais, valia tudo; e que para os
eleitores cépticos e descrentes da oferta, mais que os méritos da
própria causa, contavam os deméritos do adversário, Bannon partia com
Trump para o ataque. Hillary seria dali por diante a «crooked Hillary»,
com Clinton Cash, de Peter Schweizer, o best-seller que expunha a trama
financeira do casal e da Fundação Clinton, como principal arma de
arremesso e prova de acusação.
A ideia do livro viera do próprio
Bannon que, com Schweizer, pusera uma equipa de jornalistas e de
investigadores a desenterrar factos chocantes sobre o financiamento da
Fundação, no tempo em que Hillary ainda era secretária de Estado. Bannon
e Schweizer concentraram-se nas «centenas de milhões de dólares» doados
à Fundação. O estudo fora depois devidamente executado pelo GAI –
Government Accountability Institute –, uma instituição privada de
pesquisa com sede em Tallahasee, Flórida.
Clinton Cash
fora a bomba que dinamitara a reputação da candidata, ao enumerar a
longa lista de doadores da Funda- ção Clinton, como o canadiano Frank
Giustra, o patrão da Uranium One, com interesses no Cazaquistão, que
comprara jazigos de urânio nos Estados Unidos.
Como o urânio é um
mineral estratégico, a compra teria de ser aprovada por uma comissão em
que Hillary, como secretária de Estado, participava – e Giustra dera 31
milhões à Fundação. Embora a lei obrigasse a Clinton Foundation a
declarar a origem dos donativos, os da Uranium One não constavam nos
relatórios.
Comentando o resultado das eleições na manhã de 9, o estratega de Trump tentava explicá-la:
Trump
é o chefe de uma revolta populista… O que Trump representa é uma
restauração – uma restauração do verdadeiro capitalismo americano e uma
revolução contra o socialismo financiado pelo Estado. As elites
guardaram o melhor do bolo e deixaram o pior para os americanos da
classe média trabalhadora. […] Trump percebeu-o e o povo americano
também.
E na euforia da vitória, à sugestão de um jornalista de
que a história da campanha e do desfecho da campanha «tinham todos os
ingredientes de um filme de Hollywood», Bannon respondera, ao estilo de
Gregory Peck em Twelve O’Clock High: «Brother, Hollywood doesn’t make
movies where the bad guys win!»"
E se do livro Clinton Cash se fizera também um filme e uma série
televisiva, para que os Americanos vissem os Clinton, em todo o seu
deslumbramento, ambição e corrupção, a «guardarem o melhor do bolo», era
porque Bannon sabia que, se não fossem eles a fazê-lo, ninguém o faria.
É que para os iluminados do novo moralismo hollywoodesco, os maus da
fita, os selvagens, os deploráveis, eram Trump e todos os que se opunham
ao progresso do mundo global – a última utopia que subtilmente e
tentacularmente esmagava tudo e todos a partir do interior, rumo a uma
qualquer humanidade nova.
E na euforia da vitória, à sugestão de
um jornalista de que a história da campanha e do desfecho da campanha
«tinham todos os ingredientes de um filme de Hollywood», Bannon
respondera, ao estilo de Gregory Peck em Twelve O’Clock High: «Brother, Hollywood doesn’t make movies where the bad guys win!»”
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Fonte: http://observador.pt/especiais/populismos-do-homo-sapiens-a-trump-querem-os-homens-ser-iguais-a-deuses/ 02/12/107
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