José de Souza Martins*
A
facilidade com que se fala em racismo no Brasil revela muita coisa e muita
coisa esconde. Melhor seria falar em preconceitos, dos quais o preconceito de
cor é apenas uma variante. Preconceito de cor, e não de raça, pois o
preconceito de raça envolve muito mais que a cor. Envolve também marcas de
origem, intuídas, mas não compreendidas.
Num cenário culturalmente difuso, a mesma palavra pode significar coisas opostas.
Num cenário culturalmente difuso, a mesma palavra pode significar coisas opostas.
"Negão"
é um apelido e tratamento comum entre amigos da mesma cor ou de cor diferente.
Ressalta a diferença, mas o tom da palavra expressa afeto e amizade. Essa
palavra, usada por pessoa desconhecida ou hostil, diz o oposto e,
provavelmente, pode caracterizar intuito ou disposição racista. O mesmo se dá
com o "Branquelo", que pardos e pretos às vezes usam para designar um
branco. Conforme a circunstância, evidencia afeto na ironia ou insulto racista,
o que só pode ser decodificado por aquilo que não foi dito: o olhar, a
expressão do rosto, gestos.
Há alguns
dias o IBGE divulgou os dados da PNAD Contínua sobre composição racial da
população brasileira: pardos, 46,7%; brancos, 44,2%; pretos, 8,2%. Em relação a
anos anteriores, o número de pardos e o de pretos aumentou; o número de brancos
diminuiu. Dados baseados em autoidentificação, é possível que o brasileiro
esteja se tornando mais consciente da questão da cor e mais cuidadoso na
identificação da cor de sua pele. Os dados, porém, mostram que os pardos não se
reconhecem no grupo dos negros, uma confusão frequente nas disputas ideológicas
sobre raças no Brasil.
Este é um
país de mestiços. Durante os 388 anos que durou a escravidão negra e durante os
257 anos que durou a escravidão indígena, houve acentuada mestiçagem de etnias
negras, as de origem africana, entre si, e de etnias indígenas entre si, as dos
pardos. Como houve, também, no cativeiro, mestiçagem de índios e negras,
mestiçagem de escravas e índios administrados. Era uma forma de ampliar a
escravidão: índios, ao procriarem com uma negra escrava, geravam filhos
escravos. Isso valia, também, para os brancos que engravidavam negras escravas.
O ventre cativo da mulher negra era a fonte jurídica da escravidão, o que não acontecia com a mulher indígena, de condição diferente da do negro mercadoria. Gerava filhos escravos de índios em cativeiro que não eram, porém, mercadoria e coisa: não podiam ser vendidos nem comprados. E, mestiçagem de brancos e índias, pais dos mamelucos que foram a cara do brasileiro desde o início da conquista.
O ventre cativo da mulher negra era a fonte jurídica da escravidão, o que não acontecia com a mulher indígena, de condição diferente da do negro mercadoria. Gerava filhos escravos de índios em cativeiro que não eram, porém, mercadoria e coisa: não podiam ser vendidos nem comprados. E, mestiçagem de brancos e índias, pais dos mamelucos que foram a cara do brasileiro desde o início da conquista.
As duas
categorias sociais que fundamentaram a cultura brasileira da discriminação pela
cor, a dos pardos, para os índios, e a dos negros, para os africanos, foram, na
verdade, inventadas por brancos. Nem negros nem índios se identificavam como
tais ao longo de toda a longa história do escravismo brasileiro. Os nossos
pardos, brancos e pretos de hoje frequentemente são mestiços, ainda que no
interior da mesma categoria de cor.
Pero Vaz
de Caminha, em sua carta ao rei de Portugal, diz que os primeiros seres humanos
da nova terra foram vistos no dia 23 de abril de 1500, quinta-feira, de manhã.
"Eram pardos", explicou ele, que assim acabara de fazer o batismo
racial dos índios, provavelmente pataxó. "Pardo" indicava um critério
branco para definir a diferença entre os brancos que chegavam e os nativos que
já ali estavam.
Os índios brasileiros nunca se identificaram como pardos. Só tardiamente, já destribalizados, passaram a assumir essa identificação para diferenciar-se também dos negros. Em 2014, no julgamento da questão das cotas raciais na Universidade de Brasília, compareceu ao STF e pediu a palavra para falar na condição de "amici curiae" um movimento organizado do Norte do Brasil, autoidentificado como de pardos, para questionar a inclusão demográfica dos pardos na categoria dos negros, o que alargaria as cotas destes últimos em prejuízo dos primeiros.
Os
próprios pretos viveram, durante séculos, o drama da usurpação de identidade
pelo fato de serem como tais definidos pelos brancos. Do lado dos senhores de escravos, havia nítida
consciência de que a categoria preto escamoteava o que era etnicamente próprio
das populações escravizadas. Na hora de definir preços, aí, então, com
facilidade traficantes e fazendeiros identificavam o traço étnico original do
cativo. É que no mercado uns valiam mais e outros valiam menos, em função do
que na cultura de origem os tornava mais dóceis e mais adaptáveis ao trabalho
do feitor.
Na diversidade dos tons de preto, os senhores de escravos viam outra coisa: a maior competência para o trabalho em condições adversas. A escravidão se foi, e a cor ficou como rótulo da subalternização da pessoa.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da
Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira A
Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).Na diversidade dos tons de preto, os senhores de escravos viam outra coisa: a maior competência para o trabalho em condições adversas. A escravidão se foi, e a cor ficou como rótulo da subalternização da pessoa.
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Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5213825/cor-e-preconceito
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