sábado, 2 de dezembro de 2017

Isabel Allende: “Não preciso de investigar o golpe ou a ditadura, conheço esses momentos de cor”

Isabel Allende recebeu em 2014 a medalha presidencial da liberdade pelas mãos de Barack Obama.

Em entrevista ao Observador, Isabel Allende falou do novo romance, "Para Lá do Inverno", criticou Donald Trump e os "sentimentos negativos" que já existiam nos Estados Unidos antes dele.

AutorManuel Pestana Machado
Com 75 anos, Isabel Allende continua a não pensar na reforma. Em entrevista ao Observador, feita por email, garantiu que, apesar de procurar a atenção de “potenciais leitores”, não escreve “livros para vender”. A sobrinha do antigo Presidente chileno Salvador Allende que, em 1973, teve de abandonar o país depois do golpe de Estado de Augusto Pinochet que depôs o tio, voltou a escrever sobre esse período que lhe mudou a vida. No seu novo romance, Para Lá do Inverno, em que fala dos flagelos da imigração ilegal e dos refugiados, quis pôr os leitores a pensar em como é possível encontrar alegria no meio da tristeza.

Com um inquestionável sucesso internacional, a escritora chileno-americana lançou, a 2 de novembro, em Portugal Para Lá do Inverno, o seu 23.º livro. O romance, que parte de uma frase de Albert Camus (“No meio do inverno, aprendi por fim que havia em mim um verão invencível”), conta a história de amor entre um homem e uma mulher com mais de 70 anos que se cruzam com uma imigrante ilegal guatemalteca nos Estados Unidos da América.

A autora d’A casa dos Espíritos — o primeiro (e o mais conhecido) livro de Allende, lançado em 1982 –, em resposta às nossas perguntas, criticou Trump, falou do novo namorado e de deixar tudo para trás e abandonar um país. Apesar de se ter baseado em personagens reais, assumiu que é necessário atenuar a realidade para escrever ficção e para fazê-la parecer credível.

A edição portuguesa de Para Lá do Inverno foi publicada no início de novembro, pela Porto Editora

No seu novo livro, Para lá do Inverno, fala de temas muito atuais, como a imigração e os refugiados. Quando começou a escrever o livro sabia que queria criticar estas situações e como a sociedade está a lidar com elas? Ou foi algo que surgiu depois de começar a criar as personagens principais, Lucia e Richard?
Tenho uma fundação e há vários anos estamos a trabalhar para ajudar refugiados e imigrantes, principalmente nos Estados Unidos, mas também noutras partes do mundo. A situação difícil de pessoas que se sentem deslocadas é-me próxima. Fui uma refugiada política e imigrante, mas não sofri como a maior parte das pessoas sofrem nestas situações. No entanto, consigo perceber o que significa deixar tudo para trás: a família, a casa, os amigos, o país, até a própria língua, para ir para outro lugar onde se é recebido com hostilidade. Só se faz uma coisa dessas quando se está desesperado, quando se quer escapar da violência, da guerra, da pobreza extrema ou por perseguição política. Infelizmente, não tive de inventar a personagem da Evelyn Ortega [outras das personagens principais do livro], a imigrante guatemalteca nos Estados Unidos. Tenho conhecido casos como o dela através da minha fundação.
Consigo perceber o que significa deixar tudo para trás: a família, a casa, os amigos, o país, até a própria língua para ir para outro lugar onde se é recebido com hostilidade”.
Como é que criou as personagens de Richard e Lucia? Foram baseadas em pessoas reais?
A Lucia foi inspirada numa amiga minha do Chile, que morreu há alguns anos. Ela tinha uma personalidade parecida com a Lucia: também vivia no exílio, também era uma jornalista e uma escritora. Ela publicou dois livros sobre a ditadura no Chile. A Lucia tem também coisas baseadas em mim: é mandona, vaidosa, romântica e impulsiva. O Richard foi baseado num amigo próximo, que tem uma personalidade pessimista (mas é charmoso), e no meu irmão Juan, que é um académico, vegan, tem quatro gatos e tem a mesma vida estável e aborrecida que Richard.

E a Evelyn? Como criou a personagem e as situações todas porque passa?
Como disse, conheço pessoas como a Evelyn Ortega. O caso real é bem pior que o que escrevo no livro. Tive de atenuar a história ou os leitores não iam gostar. A ficção tem de ser credível, enquanto a realidade por vezes não é. Pesquisei sobre gangues na América Central e no México e sobre a situação política, económica e social na Guatemala que obriga pessoas a fugir. Também fiz pesquisa sobre o tráfico humano e a jornada horrenda pelo México até à fronteira dos Estado Unidos.
Tive de atenuar a história ou os leitores não iam gostar. A ficção tem de ser credível, enquanto a realidade por vezes não é.”
Neste novo livro descreve o golpe de Estado chileno de 1973, um momento histórico que mudou a sua vida. Foi difícil para si?
Não, não é difícil para mim escrever sobre esses tempos. Já escrevi sobre eles em vários dos meus livros. Não preciso de investigar o golpe ou a ditadura, conheço esses momentos de cor.

Outro dos temas que explora é o amor na terceira idade. Foi casada durante muitos anos e, recentemente, após se ter separado, voltou a namorar. É uma das razões porque decidiu escrever sobre este tema? Inspirou-se na sua própria vida?
O romance começa com uma frase de Albert Camus: “No meio do inverno, aprendi por fim que havia dentro de mim um verão invencível”. Quando comecei a escrever o livro, não conhecia ainda o Roger [o atual namorado] e não tinha uma vida amorosa. Estava num desses longos invernos emocionais que às vezes acontecem na vida. Passei por invernos semelhantes, como o exílio, a morte da minha filha e dois divórcios e sei que os invernos não duram para sempre: há sempre a possibilidade de um verão. Escolhi escrever sobre três personagens traumatizadas que estão presas num inverno emocional, como eu estava. Tive sorte porque, a meio do livro, conheci o Roger Cukras. Ele trouxe um amor inesperado e um verão luminoso para a minha vida.
Passei por invernos semelhantes, como o exílio, a morte da minha filha e dois divórcios e sei que os invernos não duram para sempre: há sempre a possibilidade de um verão. “
A imigração ilegal e os refugiados, temas sobre os quais também escreve, têm sido discutidos amplamente nos Estados Unidos. Como vê a situação atual? Acha que a xenofobia se tornou num problema maior desde que Donald Trump foi eleito Presidente?
Trump recebeu uma plataforma e um megafone para falar sobre os aspetos mais baixos da sociedade norte-americana: racismo, xenofobia, misoginia, violência, bullying, nacionalismo e um sentimento de superioridade que vem da ignorância do mundo. Ele não representa a maioria do norte-americanos. A democracia norte-americana e os seus valores fundamentais estão a ser ameaçados pela administração Trump. Os danos que este homem pode causar podem demorar décadas a ser reparados. Quando comecei a escrever Para lá do Inverno, Trump ainda não era sequer candidato, e quando terminei ele ainda não era Presidente. No entanto, os sentimentos negativos que ele propagou já estavam lá.
Trump recebeu uma plataforma e um megafone para falar sobre os aspetos mais baixos da sociedade norte-americana: racismo, xenofobia, misoginia, violência, bullying, nacionalismo e um sentimento de superioridade que vem da ignorância do mundo. Ele não representa a maioria do norte-americanos. “
Passou grande parte da sua vida nos Estados Unidos da América. Ainda escreve em espanhol ou começou a escrever em inglês?
Escrevo ficção apenas em espanhol, mas consigo escrever não-ficção em inglês.

De todos os romances que já escreveu, qual foi o mais difícil para si?
Provavelmente o romance mais difícil que escrevi foi A Ilha Debaixo do Mar. É sobre a revolta dos escravos no Haiti, em 1791-1804. Precisei de quatro anos só para a investigação, alguma dela feita em francês. Foi um tempo histórica e politicamente complicado na Europa e nas Américas. A parte pior da investigação passou por ter de aprender sobre os horrores da escravatura. As atrocidades que as pessoas podem fazer umas contra as outras quando têm poder e impunidade, deixaram-me doente. Tive sérios problemas de estômago que nenhum remédio pôde aliviar. Os sintomas desapareceram quando terminei o livro.

É uma escritora bastante conhecida. Pensa nas expectativas dos leitores quando escreve?
Não. Escrevo sobre as coisas que são importantes para mim. Só quero contar uma história e quero ter a atenção dos meus potenciais leitores, mas não me censuro e não escrevo com propósitos comerciais.
Eu escrevo sobre as coisas que são importantes para mim. Eu só quero contar uma história e quero ter a atenção dos meus potenciais leitores, mas não me censuro e não escrevo com propósitos comerciais.”
Disse no passado que os seus livros preferidos são As Mil e Uma Noites e Cem anos de Solidão. Porque são?
Esses livros influenciaram-me. Li As Mil e Uma Noites quando era adolescente — quando as minhas hormonas estavam a acordar — com uma lanterna, escondida no armário do meu padrasto, no Líbano. Aqueles quatro volumes criaram-me uma fascinação para toda a vida pela fantasia, pela sensualidade, pela aventura e por contar histórias. O Cem Anos de Solidão é um livro fundamental para qualquer escritor latino-americano da minha geração. Quando o li, achei que o autor estava a descrever a minha família louca.

Dois dos seus livros foram adaptados para cinema e houve rumores de que um terceiro também o seria. Podemos esperar para um futuro próximo uma adaptação para o cinema de mais uma das suas obras?
Tive várias propostas para filmes, mas não não fui capaz de assinar nenhum contrato. Atualmente, a indústria cinematográfica trabalha com contratos draconianos. Querem os direitos sem nenhuma data limite para cessar o contrato e para fazerem o que bem entendem da história — não estou a brincar — com a tecnologia que existe e com a que ainda vai ser inventada. Também querem os direitos de autor das personagens. Os contratos para televisão são muito mais realistas. No Chile, estão a filmar uma série de televisão sobre o [o meu romance] Inês da Minha Alma.
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Fonte:  http://observador.pt/2017/12/01/isabel-allende-os-danos-que-trump-pode-causar-poderao-demorar-decadas-a-reparar/

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