Marcia Tiburi*
(Arte: Andreia Freire)
Toda
ideologia é movida por afetos. Assim como há afetos positivos, há
afetos negativos. Do mesmo modo, além de afetos políticos, existem
afetos econômicos. O capitalismo, sob cujo signo vivemos, é regido pelo
afeto da avareza.
Do retorno do Brasil ao mapa da fome
(do qual, a propósito, havia saído em 2014) às medidas de austeridade
adotadas em diversos países, da recente ameaça de diminuição do salário
mínimo ao cancelamento de direitos que ocorre diariamente, estamos
diante da lógica da avareza. O capitalista é um pão-duro que calcula
quanto custam seus filhos, funcionários ou cidadãos; um pão-duro que
vive do controle de corpos e de desejos e que, para isso, precisa
apertar o cinto ou o pescoço conforme a potência e a consequente
periculosidade dos agentes que não aderem à sua lógica.
A avareza é causa e efeito do
capitalismo. Sem avareza não existe o capitalismo. Jesus de Nazaré
pregava o amor, um afeto contrário à avareza, profundamente ligado à
generosidade e em tudo anticapitalista. Da paz hinduísta ao sexo livre
dos hippies, vemos surgir o contrário da avareza, o esbanjamento. Quando
se trata de afetos, só é possível pregar. Não é possível argumentar.
Hoje a avareza fala por si e traduz todos os discursos da indústria e do
mercado.
Guy Debord dizia que o espetáculo é a
relação social mediada por imagens. Podemos dizer que o capitalismo é a
relação social mediada pela avareza. A avareza é um tipo de afeto que
regula o todo das relações enquanto relações sociais, sejam elas
institucionais, sejam relações interpessoais.
O princípio de morte do capitalismo,
sua capacidade de destruição relaciona-se com a lógica da avareza. Ela é
a micrológica que rege a vida cotidiana na qual vemos medir-se centavo
por centavo, célula por célula e cabeça por cabeça. O incômodo da classe
média com as políticas sociais define a heresia de governos que não
sustentaram a avareza capitalista até as últimas consequências, a morte
dos pobres.
A micrológica da medida reduz todas
as coisas à forma mercadoria. O roubo se torna a grande heresia contra a
propriedade privada que representa a força de lei da avareza. No
entanto, se a própria propriedade privada se ergue sobre o roubo, nada
acontece, pois a avareza é a confirmação da dominação de classe.
A sacralização dos centavos ou a lógica da picuinha
Na esfera pública, a avareza impera
como economia contra a política, enquanto, na esfera da vida privada,
ela se dá como sacralização dos centavos. Qualquer gesto de generosidade
nos deixa surpresos, porque, na lógica da avareza, ninguém tem coragem
de tratar o dinheiro como se fosse algo menos importante. Nessa lógica, é
preciso dar aos mendigos um mínimo, para que não esbanjem e, nem por um
segundo, pensem que são mais do que parecem ser.
A “picuinha” é o princípio lógico.
Junto à lógica da opressão, do estupro, da lógica binária do bem e do
mal, dos reducionismos em geral, do ciúme e da inveja, a picuinha tem
uma validade absoluta. Reduzido a resquício, o outro – corpo e linguagem
– é medido milimetricamente para não ultrapassar limites aos quais está
condenado. A estética burguesa dos shoppings centers, a mania obsessiva
dos consumidores, a ração do prefeito de São Paulo são medidas contra
qualquer excesso. A exuberância é controlada por quem pode pagar por
ela. Faz parte da lógica da picuinha reservar a exuberância que todos
desejam para uns poucos enquanto ela é deturpada em ostentação.
As condições ideológicas e
psicossociais para que o capitalismo se mantenha sustentam-se sobre a
avareza. O “pobre de direita” é a vítima da avareza que torna ele mesmo
um avarento. A avareza informa sobre a satisfação possível, produz a
sensação de um superego forte, capaz de sobreviver com pouco.
É a compensação pela miséria do espírito que acoberta a miséria concreta da vida em sociedade.
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* Artista plástica, filósofa, professora de Filosofia e escritora.
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-avareza-causa-e-efeito-do-capitalismo/06/12/2017
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