Juremir Machado da Silva*
Linhas tortuosas
Escrever é muito perigoso. Não tem matemática.
O escritor, mesmo quando não erra, é errante. Há do outro lado da
escrita um ser enigmático chamado leitor. Existem três tipos de leitor: o
que aborda tudo literalmente, o que busca sempre algo nas entrelinhas e
o que espera uma moral da história. O leitor literal é implacável: se
se escreve sobre o enigma universal do tempo, ele comenta: “Preocupado
com a velhice, hein!?” Por absoluto respeito jamais se deve chamá-lo de
mala. O leitor sempre tem razão, especialmente quando está errado.
O leitor das entrelinhas é o melhor. Descobre até o que não foi
escrito. Preenche os espaços vazios com generosidade. Por vezes,
extrapola e entra na teoria da conspiração. Vê denúncias onde só há
perplexidade ou pausa para respirar. O leitor que espera uma moral da
história compra os livros de Mario Sérgio Cortella e Leandro Karnal.
Gosta de autoajuda. Uma autoajuda que tente não se apresentar como tal.
Todo livro que fala sobre felicidade, mesmo citando os gregos, ou
principalmente, é de autoajuda. Qual o problema de gostar de autoajuda? É
só assumir. A revista Veja já coloca Cortela e Karnal na lista de
autoajuda e esotéricos. Entre autoajuda e esotéricos, prefiro os
últimos. Gosto do mistério que tentam inventar. Liberta da verdade.
Se há três tipos de leitor, há três tipos de comprador de livros: o
que gosta de celebridades, o que compra quem pensa como ele e o que dá
uma força para os amigos. O leitor de celebridades segue o termômetro da
mídia. Se tem muita mídia, tem lista dos mais vendidos e fila. O leitor
de sintonias tem uma referência forte: ele mesmo. O leitor de amigos
deixa de ir ao cinema para ser fiel. Não tenho muitos amigos, mas os que
tenho sempre me tiram do aperto em lançamentos. Nós, os escritores
menores, temos uma dívida impagável com os amigos. Existem amigos que
mal conhecemos, mas que nos adotam e protegem. Pressentido o fiasco eles
enfrentam chuva e frio para nos salvar.
Tenho um amigo que deixou de almoçar para comprar um livro meu. O
plano era bom. Comprava o livro, fazia figuração e fila, ajudava o amigo
escritor menor e depois revendia o livro para almoçar. Não conseguiu
comprador. Por sorte, encontrei-o tentando fazer negócio. Paguei-lhe o
almoço. Quando nos despedimos ele ainda me consolou:
– Ainda vais chegar lá.
– Com certeza. Não esquece o livro.
– Como?
– Estás esquecendo teu livro autografado aqui na cadeira.
Outro dia, encontrei um leitor que me saiu com esta:
– Eu te leio sempre que não estás tenebroso.
Evitei perguntar o que entendia por tenebroso. A resposta poderia
comprometer o futuro da literatura. O escritor menor precisa resistir,
perseverar e ironizar a si mesmo. Ele sabe que só a posteridade lhe dará
o reconhecimento que está certo de merecer. Não tem pressa. Acredita na
vida depois morte do autor. O difícil é receber os pêsames ainda em
vida. Uma vantagem ele tem. Nas entrevistas de estudantes, os únicos que
se interessam por sua obra, pode responder com ironia, sabendo que não
será entendido, à pergunta:
– Por que escreve?
– Para a posteridade.
Escrever é para os fortes, os que ousam se autoironizar, os que se atrevem a andar sós.
Escrever é para quem não tem ídolos nem cede à pressão de “conselheiros”.
Escrever é para quem sabe que sabe e carrega nas costas o peso da sua sabedoria.
Escrever é para os insanos.
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* Jornalista. Escritor. Sociólogo. Prof. Universitário da PUCRS.
Fonte:http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/12/10443/escrever-e-perigoso/
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