Em discussão sobre o Papa, cristianismo, Cristo e migrantes, acabei falando de Nietzsche, não porque eu seja conhecedora de sua obra (não sou) mas pela simples vontade de inventar um diálogo entre o Papa Francisco e este filósofo que era fascinado por Jesus porém questionou duramente o cristianismo fundado na interpretação que São Paulo fez do Evangelho.
Aquela discussão sobre a mensagem natalina de alento aos
migrantes – na qual o Papa Francisco não foi politicamente correto e sim
mais uma vez humanamente perfeito! – me deu vontade de contar um
segredo: talvez eu nunca tivesse lido Friedrich Nietzsche (1844 – 1900),
não fosse a armadilha em que caí na adolescência.
Naquela época, eu costumava fuçar os livros na biblioteca de
minha mãe, menos por interesse literário do que para achar os volumes
proibidos para a minha idade, sendo que o máximo que pude encontrar foi O Amante de Lady Chatterley, a novela escrita por D. H. Lawrence em 1928, e alguns livros do americano Henry Miller (1891- 1980) como Sexus, Plexus, Nexus e Trópico de Câncer, em inglês, que imediatamente ela colocou fora do meu alcance.
Desse modo, um dia, antes de sair de casa, a minha mãe recomendou:
– Há certos livros que não são apropriados para jovens. Um deles chama-se Assim falava Zaratustra,
de um autor que você está proibida de ler e que, por esta razão,
encontra-se na parte mais alta da biblioteca. Faça o favor de se
contentar apenas com os títulos que deixei nas prateleiras de baixo. E
se me desobedecer, já sabe… uma semana sem TV!
Para pensar bem é preciso: a fuga da universidade, a filologia próxima dos grandes textos e o olhar médico.
É claro que li “Zaratustra” às escondidas, procurando, sem
achar, as partes quentes, sem entender porque era proibido e sem
entendê-lo em geral. Só bem mais tarde descobri que há quase um século e
meio Nietzsche, o seu autor, já fazia todas as perguntas sobre o mesmo
niilismo, a miséria intelectual e a própria miséria, que continuam
constatáveis em toda parte, e a cada instante, até hoje. “O deserto
cresce” afirmava ele. É o que estamos presenciando, não?
Fora que o gênio dizia que, para bem pensar e reconhecer as
pessoas com quem lidamos, são necessárias três qualidades das quais
jamais esqueci. Primeira: estar fora da universidade. O que,
convenhamos, nem teria sido necessário o filósofo dizer. Todos sabemos o
quanto pesa o “clero” dessa instituição nas mentes das pessoas em todos
os lugares, com a sua “república de professores”. Ninguém tem o direito
de pensar fora da Faculdade. Considerado “franc-tireur” (independente),
Jean Baudrillard costumava dizer, sempre rindo, que ele mesmo, entre
outros, também não tinha esse direito…
A segunda qualidade exigida por Nietzsche: ser um bom
filólogo. Se interessar de perto pelos textos, pela língua e pelo
estilo. A terceira é o “olho médico” para fazer o diagnóstico do seu
tempo. Sem esses três atributos, não se pensa muito longe, “continua-se
um asno”, como ele dizia, alguém que carrega o peso das idéias
recebidas…
Genial! Mas ele não foi o único. Outro médico da alma também
fez sensação na mesma época: um certo Freud que falaria de um certo
“mal estar na civilização”. Aliás, os dois tinham uma amiga comum: Lou
von Salomé, que também me foi apresentada mais tarde pelo simples fato
de que a minha mãe proibiu de ler quem estava apaixonado por ela.
Esse “olhar medical” que percebia (e hoje também me faz
perceber) os homens que negam a vida, detestam a felicidade e morrem de
medo do trágico, traz até agora uma luz cruel sobre o nosso tempo. Assim
como quando aponta certos valores da moral cristã (mas também do
islamismo radical) que “comprometem o progresso” uma vez que são
fundados no ódio e fanatismo.
Que sorte a minha este filólogo, filósofo e poeta alemão
(talvez o mais francês de todos eles) ter sido colocado na parte mais
alta da biblioteca pela minha mãe. Agradeço o estratagema dela e o
recomendo a todos os pais. Talvez seja a única maneira de fazer um
adolescente ler filosofia e, mesmo sem ser um estudioso ou especialista,
continuar a leitura por puro prazer na vida adulta.
Aí está! Hoje eu disse tudo. Até a próxima, quando direi um pouco mais!
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* Sheila Leirner é uma curadora, jornalista e crítica de arte
brasileira.
Vive e trabalha em Paris desde 1991. Estudou cinema, sociologia da arte e
urbanismo na França e, em 1975, tornou-se crítica de arte no jornal O
Estado de S. Paulo.
Fonte: http://www.estadao.com.br/26/12/2017
Foto:Edward Munch (1863-1944) Retrato do filósofo Friedrich Nietzsche, Óleo sobre tela (1906). Galeria Thielska, Estocolmo.
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