Professor Benjamin Lessing diz que Estado e autoridades policiais deveriam deixar claro que certo nível de narcotráfico pode ser tolerado, mas sem violência
O americano Benjamin Lessing,
professor de ciência política na Universidade de Chicago, viveu no Rio
de Janeiro entre 2000 e 2005, quando estudou o tráfico de drogas e a
criminalidade na cidade. O resultado desse trabalho está em um livro
recém-lançado nos Estados Unidos, Making Peace in Drug Wars: Crackdowns and Cartels in Latin America (Construindo a Paz na
Guerra do Tráfico: Repressão e Cartéis na América Latina). Nele,
Lessing analisa o que levou o tráfico no Brasil, no México e na Colômbia
a se voltar contra o Estado. Falando em bom português, com sotaque
carioca, Lessing defende alguma permissividade com o tráfico, mas não vê
a legalização das drogas como solução. “É melhor reduzir a violência e
aceitar certo nível de tráfico, desde que não seja violento. Uma guerra
militarizada no meio da cidade é intolerável”, diz. Atualmente, Lessing
está estudando a expansão das facções criminosas por todo o Brasil. Ele
falou a VEJA por telefone, de Chicago.
A legalização da maconha poderia reduzir a criminalidade no Brasil?
Resolveria o problema para o consumidor de Cannabis, para o indivíduo
de classe média que de vez em quando é pego numa dura, mas não
solucionaria o problema do tráfico. O Brasil já está entre os maiores
consumidores de cocaína do mundo, e essa demanda continuará. Os
traficantes ganham dinheiro com cocaína, crack e maconha, mas lucram
sobretudo com os dois primeiros. Se, em uma situação hipotética, o
governo legalizasse o consumo e a venda dessas drogas, equiparando essas
atividades ao comércio de cigarro, aí sim o tráfico como o conhecemos
deixaria de existir e os narcotraficantes teriam de buscar outra fonte
de renda. O exército de jovens que o tráfico emprega não teria mais
emprego. Provavelmente, contudo, haveria uma explosão de outras formas
de crime. Isso já está acontecendo no Rio de Janeiro, com a ascensão do
roubo de carga. Apesar da diversificação da atividade criminal, haveria
ao menos a esperança de que as outras formas de criminalidade fossem
mais fáceis de combater do que o tráfico.
Mas ninguém está falando em legalizar a cocaína ou o crack, certo?
Descriminalizar totalmente o tráfico da cocaína é uma impossibilidade
política. Não vai acontecer. A discussão que existe é para, no máximo,
legalizar a maconha. Sobre essa medida, eu seria a favor, não acho que
faria mal.
Qual seria a melhor solução? A ideia é
planejar a intensidade da repressão para, assim, condicionar o
comportamento do traficante. Se ele for pego vendendo drogas, recebe uma
punição mais branda do que se for flagrado comercializando-as com um
fuzil ou pistola na mão. Quando a polícia seguiu essa regra, os
criminosos entenderam que o melhor era andar desarmado. Foi essa a chave
inicial da pacificação no Rio de Janeiro, com as Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs). Ao entrar nas favelas, autoridades policiais
deixaram claro que a missão não era acabar com o tráfico de drogas. José
Mariano Beltrame, que foi secretário de Segurança Pública do Rio entre
2007 e 2016, passava sempre a mensagem de que vender drogas não era tão
ruim quanto fazê-lo usando armas. A prioridade era restabelecer a
presença do Estado.
Essa atitude não equivale a uma legalização branca das drogas?
No início, as UPPs foram criticadas porque teriam feito um pacto com o
tráfico. Esse é um tema politicamente tóxico também em outros países.
Quando era presidente da Colômbia, Álvaro Uribe foi contra negociar com
as Forças Armadas Revolucionárias (Farc). Depois, quando o seu sucessor,
Juan Manuel Santos, fechou um acordo de paz com as Farc, Uribe, na
oposição, continuou batendo nessa tecla. Hoje, o maior grupo que resta é
o dos gaitanistas, um cartel de drogas que se vende como grupo político
para poder negociar com o governo. A verdade é que negociar com grupos
traficantes violentos não significa compactuar com eles. Os brasileiros
precisam se perguntar que tipo de traficantes querem: os que são
empreendedores e homens de negócio ou os que são guerreiros, que não se
importam em matar policiais e andam com fuzis pesados?
Por que a violência voltou com tanta força no Rio de Janeiro?
A situação em que o estado se encontra hoje não se compara com a do
início dos anos 2000, mas está chegando ao mesmo patamar. Em 2007, a
guerra estava no auge e Beltrame fracassou em entrar na favela do
Alemão. A pacificação reverteu o jogo. As UPPs reduziram a violência
entre 2008 e 2013. O número de autos de resistência caiu 66%. O Comando
Vermelho perdeu território. Agora, eles estão reconquistando muito do
que tinham antes.
Por que o jogo virou? Não há como comparar
o quadro econômico que existia entre 2008 e 2012 com o atual. É o
oposto. Naquela época, o Brasil estava bem economicamente. Havia uma
confluência de fatores. O empresário Eike Batista até doou 20 milhões de
reais às UPPs. O problema começou quando o projeto passou a crescer
demais. Acredito que as UPPs foram vítimas do próprio sucesso. No
início, elas não eram muito custosas. Dois ou três anos depois, já
tinham se expandido de forma descontrolada. Como tinham funcionado bem,
foram colocadas em vários lugares. Mas esse é um programa caro, que
consome muita mão de obra policial e especializada. Para funcionar, a
UPP precisa de recrutas novos. Não pode contar com aquele policial
militar que está há muitos anos na corporação e já foi contaminado pela
corrupção. As novas favelas que foram pacificadas eram enormes, como a
do Alemão, a da Maré. Eram muito maiores que as da Zona Sul, como a Dona
Marta. Os custos se expandiram enormemente. Quando veio a crise
econômica no Brasil inteiro, o orçamento estourou.
Países como o Brasil, o México e a Colômbia nunca conseguirão acabar com o tráfico?
Na área de segurança, existem três objetivos que não podem ser atacados
com total intensidade ao mesmo tempo: o tráfico de drogas, a corrupção
policial e a violência. Eles são como uma trindade profana. Não dá para
combater as três coisas ao mesmo tempo. É preciso decidir antes qual é a
mais importante e investir nela. Ao fazer isso, contudo, é possível que
outra acabe aumentando. Das três, a mais importante, na minha opinião, é
a violência. Não sei como isso não é óbvio para todo mundo. O fato de
alguém comprar e consumir maconha e cocaína não se compara com um
tiroteio, com o risco de as crianças não conseguirem ir à escola — todo
esse caos que há no Rio. Em toda a história, não existiu até hoje uma
sociedade que tenha acabado totalmente com o consumo de drogas. Talvez o
Talibã, no Afeganistão, tenha conseguido isso durante um tempo, com as
medidas mais repressoras que se possam imaginar. Para mim, a violência é
o pior mal de todos. É melhor minimizar a violência e aceitar certo
nível de tráfico, desde que esse não seja violento. Uma guerra
militarizada no meio da cidade maravilhosa é intolerável.
A guerra de facções que existe no Brasil tem paralelo com outros países?
Passei uns seis meses no Brasil em 2017 visitando vários estados para
estudar a expansão do PCC, do Comando Vermelho e de facções locais. Fui
para o Amazonas, o Ceará, o Rio Grande do Norte e Santa Catarina. O país
inteiro está sendo atingido por isso. É um fenômeno brasileiro. Existem
gangues prisionais nos Estados Unidos que, em certos aspectos, se
parecem com as facções brasileiras. Também há os Maras, em El Salvador.
Mas não há nesses países uma organização como o PCC, tão grande, bem
estruturada e capilarizada, com tanta capacidade de se expandir.
O que atraiu a sua atenção na forma como as facções brasileiras funcionam?
A capacidade que elas têm de controlar a criminalidade na rua a partir
das prisões. Isso, a expansão das facções, acontece, entre outras
razões, porque há um encarceramento massivo no Brasil. Existem muitas
prisões em vários lugares do país.
Como assim? Como há muitos presídios e
muitos homens encarcerados, o crime organizado pode recrutar muita
gente. Na megarrebelião de 2006, o PCC tomou conta de cerca de noventa
cadeias em São Paulo. Uma organização só pode controlar noventa cadeias
quando existem noventa cadeias à disposição em algum lugar. Se o sistema
carcerário fosse menor, essa capacidade de recrutamento seria menor.
Além disso, muitos jovens pobres vivem com a expectativa de que um dia
serão presos. Se eles forem negros ou pardos e viverem na periferia,
essa possibilidade é ainda mais alta. O encarceramento massivo dá a eles
todo o incentivo do mundo para que queiram chegar à prisão já
conhecidos. Para não ter problemas na cadeia no futuro, eles acatam as
ordens e as regras das facções antes mesmo de serem pegos pela polícia e
julgados.
O senhor dá aulas na Universidade de Chicago, que fica muito perto do perigoso bairro de South Side. Como é a criminalidade ali?
A Zona Sul de Chicago é muito associada à população negra. Na cidade, a
violência tem escalado nos últimos anos, seja porque há brigas entre
gangues, seja por causa de problemas com os agentes de segurança. Há
várias denúncias de violência policial. Um oficial foi gravado matando
um cidadão com dezessete tiros. Alguns dizem que a polícia também está
usando a tortura. A violência entre gangues está associada ao tráfico de
drogas e a enfrentamentos com a polícia. É uma coisa paradoxal. O
câmpus da Universidade de Chicago é lindo. Parece Oxford. Se alguém
caminhar quatro ou cinco quadras ao sul, no entanto, verá casas
malcuidadas ou abandonadas, que às vezes são usadas para vender drogas.
Qual abordagem tem funcionado melhor em Chicago?
Nos Estados Unidos, a repressão também é feita de forma a tentar
condicionar o comportamento dos criminosos. Por aqui, é extremamente
raro que eles atirem contra um policial ou que matem um policial. A
razão para isso é que, quando acontece algo assim, toda a corporação vai
atrás do autor. Qualquer traficante, de qualquer esquina, sabe que, se
investir contra a polícia, a vida dele acabou. Outra medida é tentar
coibir as disputas entre as gangues. Já foram propostos alguns acordos
de cessar-fogo em Boston e em Chicago. A lógica é a mesma: os
traficantes que atuavam em determinadas zonas estavam sujeitos à
repressão normal, mas, se houvesse mortes em alguns bairros, os
policiais iam com tudo. E isso funcionou.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560 - Folhas Amarelas.
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Foto por - Nima Taradji/POLARIS//
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/adeus-as-armas/08/12/2017
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