Vladimir Safatle*
(Arte: Andreia Freire)
Conferência
pronunciada no seminário “Os fins da democracia” enquanto manifestantes
gritavam pelo cancelamento do evento e defendiam valores da tradição,
da família e da propriedade:
O que significa trazer esta discussão
sobre “Os fins da democracia: estratégias populistas, ceticismo em
relação à democracia e a procura pela soberania popular” para o Brasil
do final de 2017? Não seria possível começar este simpósio sem colocar,
de forma explícita, tal questão. A sua maneira, ela ressoa outra
questão, a saber, o que pode ainda a universidade? O quanto ela ainda é
capaz de mobilizar e levar a sociedade a ver o que muitos gostariam de
não ver. Pois é fato que poucos foram os simpósios feitos em nosso país
que tenham sido alvo de tanta ameaça e pressão por cancelamento quanto o
nosso. E se um simpósio acadêmico, quando associado a uma instituição
de grande alcance público, como o Sesc, pode provocar tantas reações,
então há de se perguntar se o lugar social da universidade é tão
extemporâneo quanto alguns gostariam de nos fazer acreditar. Pois, por
trás do diagnóstico contemporâneo da obsolescência da universidade, há
também o desejo de que assim seja, de que a universidade reconheça sua
pretensa irrelevância e, como se diz, adapte-se.
No entanto, no horizonte do Brasil do
final de 2017, um horizonte que não diz respeito apenas a nosso país,
já que vários de seus traços são partilhados por outros países, setores
importantes da vida universitária têm usado sua força para ressoar o
fato de que nossa redemocratização sempre incompleta, nossa transição
infinita ruim em direção a uma democracia nunca vista produziu, ao
final, um regime de cinismo e de guerra civil implícita. Assim, se
estamos atualmente a discutir os fins da democracia em seu duplo sentido
é porque poucos foram os países como o Brasil que se debateram de forma
tão explícita contra sua impotência em dar forma institucional a uma
soberania popular substantiva. Desde o final da ditadura, com sua
campanha de Diretas Já, o Brasil se mostra como um país, como dizia
Florestan Fernandes, da contrarrevolução permanente, da capacidade em
gestar acordos de elite que afastem a possibilidade de verdadeiras
incorporações políticas populares.
Mas isto não poderia ser feito sem as
múltiplas estratégias de silêncio, que vão das mais discretas às mais
violentas. E uma das mais violentas dessas estratégias foi usada agora,
quando grupos organizados, com apoio de estruturas internacionais (haja
vista o site que circulou uma petição de cancelamento da palestra de
Judith Butler ser sediado na Espanha e financiado por fontes não
identificadas), se voltaram contra uma atividade de debate como a nossa.
Não se tratava de protesto contra certas ideias, mas de pressão visando
ao simples cancelamento.
Esses que lutaram para nos impedir de
falar não temeram em dizer que falavam em nome da “maioria esmagadora
do povo brasileiro”. Ou seja, a lógica é afirmar que eles são o “povo”,
com seus pretensos valores saudáveis, seus hábitos trabalhadores,
enquanto nós, especialmente intelectuais e artistas, seríamos a
verdadeira elite ociosa que vive de dinheiro público, de benesses de
fundações privadas internacionais, propagando comportamentos viciosos e
doentios. Enquanto eles ficam calados diante do sistema neoliberal de
blindagem das elites financeiras que drenam as riquezas do país e
tomaram de assalto o poder político, procurando chantagear a soberania
popular através da ameaça da “desconfiança dos mercados”, eles querem
fazer acreditar que artistas e intelectuais seriam os verdadeiros
sanguessugas da riqueza nacional, em uma clássica reedição dos ataques
nazistas contra o “bolchevismo cultural”.
Como se vê, a estratégia gira em
torno de quem é capaz de constituir o “povo” como ator político e, com
isso, designar quem está fora do “povo” como enunciador. Nesse sentido,
nada mais adequado para um seminário que visa, entre outras coisas,
discutir exatamente as estratégias populistas e sua hegemonia atual. Por
isso, talvez seja o caso inverter suas acusações e lembrar que há, sim,
momentos em que as estratégias populistas são necessárias, mesmo que
provisoriamente necessárias. Uma lembrança que pode nos levar a dizer
àqueles que procuram simplesmente nos calar, dizer em alto e bom som:
“Não, vocês não são o Brasil”.
Vocês habitam um outro país, um país
inominável e infame que não se incomoda em ser defendido por Sergio
Fleury, por oligarcas que passam seus cargos públicos de pai para filho,
por Filinto Müller, por militares com sanha golpista inconfessa. Um
país que sonha em acalmar seus medos apelando à violência de Estado, que
delira com o comunismo saindo por todos os poros. Não é a primeira vez
na história brasileira que vocês procuram nos calar, nem que seja
apelando à violência, à tortura, ao desaparecimento. Basta perguntar
quantos destes que hoje estão protestando não sonham com um golpe
militar que pudesse nos apagar de vez e nos expulsar mais uma vez deste
território. Vocês já atiraram em nós mais de uma vez. Qualquer pessoa
sensata não duvidaria que isto pode ser feito uma segunda vez.
Esse país sem nome que procurou nos
calar não se deixa afetar com as verdadeiras violências sexuais contra
mulheres, travestis, homossexuais e crianças; é completamente
indiferente à espoliação da classe trabalhadora através de aparatos
legais desenvolvidos para retirar toda capacidade de organização e luta
de quem recebe salários miseráveis e humilhações cotidianas. Um país que
nunca se afetou por seus próprios genocídios indígenas e por seu
racismo que, como se diz aqui, não existe já que louvamos a
miscigenação. Esse país, no entanto, nunca foi o Brasil.
Contra este país há um outro, sempre
existiu um outro que se chama Brasil e que sempre lutou para emergir.
Para quem não sabe onde está este país que sejam lembrados os gritos de
revolta de Zumbi, a tenacidade de Pagu, o espírito inquebrantável de
Luis Carlos Prestes, os cabanos, os que lutaram de todas as formas
contra a ditadura militar, Marighella, os camponeses mortos em suas
lutas por terra, os estudantes que ocupam escolas contra seu fechamento.
Todos esses que nos ensinaram e nos ensinam que é melhor morrer de pé
do que viver de joelhos. Este país é enorme, mas muitos querem nos fazer
acreditar que ele não existe, que ele é fraco. Contra estes que querem
nos colonizar através da imagem de nossa pretensa fraqueza, há de se
lembrar: nós já estivemos aqui antes, nós já fomos ameaçados outras e
inúmeras vezes e continuamos aqui, sem ser calados. Pois, no fundo,
sabemos, como disse uma vez Walter Benjamin:
“O passado traz consigo um índice
misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro
do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos,
ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs
que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro
secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na
terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos
concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um
apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente.”
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*Vladimir Pinheiro Safatle é um filósofo e professor
chileno-brasileiro, livre-docente da Universidade de São Paulo.
Notabilizou-se ao grande público sobretudo por sua atividade como
colunista no jornal Folha de S. Paulo.
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/vladimir-safatle-os-fins-da-democracia/ 06/12/2017
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