"Quando pensamos em Thoreau hoje, não é para lembrar
essas histórias de sofrimento. Este ano, que marca o bicentenário do seu
nascimento, os Estados Unidos tem celebrado uma vida dedicada à
natureza em sua luminosa multiplicidade,
além de suas meditações
notáveis acerca
da desobediência civil".
O comentário é de Ariel Dorfman, autor de La muerte y
la doncella e, mais recentemente, da novela Allegro. Ele vive com sua
esposa no Chile e nos Estados Unidos, onde é professor emérito da
Universidade de Duke, publicado por Página|12, 16-12-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Eis o artigo.
Os corpos jazem espalhados ao longo da praia. Enterrá-los não é
fácil, porque ninguém sabe os nomes dos falecidos, em sua maioria
mulheres e crianças que fugiram da fome e da pobreza, na esperança de
chegar a uma terra de boas promessas. Alguns espectadores observam
boquiabertos os escombros de um barco que acaba de naufragar, "todo
quebrado nas rochas, como uma casca de ovo", enquanto outros,
implacáveis, continuam com suas tarefas cotidianas.
"Em meio à multidão que contempla estes destroços", uma testemunha
escreve, "havia homens que laboriosamente recolhiam as algas marinhas
que a tempestade depositou no litoral, amontoando-as fora do alcance da
maré, embora se viam frequentemente obrigados a descartar pedaços de
roupas da sua coleta".
Esta cena de devastação e indiferença parece arrancada das últimas
manchetes e fotos que nos abalam diariamente, outro grupo de refugiados
que aparecem brevemente e em seguida desaparecem de nossas telas e de
nossa consideração, com igual fugacidade. Mas o naufrágio do qual
falamos ocorreu em outubro de 1849 e suas vítimas eram cento e quarenta
imigrantes irlandeses que morreram quando o St. John, o barco em que
haviam partido "ao Novo Mundo, da mesma forma que fizeram Colombo e os
Peregrinos ingleses", afundou durante uma tempestade colossal nas
margens do Cabo Cod. E nem sequer recordaríamos a sua existência ou o
seu destino fatal se quem narrou sua morte não tivesse sido o grande
naturalista e escritor Henry David Thoreau.
Quando pensamos em Thoreau hoje, não é para lembrar essas histórias
de sofrimento. Este ano, que marca o bicentenário do seu nascimento, os
Estados Unidos tem celebrado uma vida dedicada à natureza em sua
luminosa multiplicidade, além de suas meditações notáveis acerca da
desobediência civil. Vale a pena, no entanto, examinar essa experiência
quase desconhecida na costa do Cabo Cod, aquela calamidade que aconteceu
há tanto tempo e que, no entanto, sentimos de maneira tão triste e
atual, tão graficamente relevante. Porque Thoreau está nos lançando
sobre o abismo do tempo, um desafio que faríamos bem em atender.
O que mais me abala em nosso século impiedoso é a maneira em que
Thoreau compreendeu e demarcou o dilema moral enfrentado pelas pessoas
que testemunham diariamente catástrofes semelhantes ao naufrágio do St.
John. O escritor contempla os trabalhadores, que são "um assunto carente
de qualquer interesse humano", seguindo com as suas tarefas habituais:
"Por mais que muitos tenham se afogado, estes homens não esqueciam que
aquelas algas eram uma valiosa carga de fertilizante. O naufrágio não
havia produzido uma vibração visível no tecido da sociedade". E nota
que, para um velho que, junto a seu filho, empurravam um carrinho de
"algas despedaçadas" para seu rancho, "aqueles corpos... não eram mais
do que outras algas que a maré havia vomitado, sem valor para seus
propósitos".
Thoreau não se propõe a fazer julgamentos sobre essa atitude, talvez
porque ela reflita, estranhamente, a sua própria perspectiva, animada
por um certo desapego, sem paixão. Ele explica - e veja que esse autor
era eloquente para examinar seus vai-e-vens e contradições mentais! - as
razões por trás dessa distância emocional: “Se tivesse encontrado um
cadáver deitado na praia em um lugar solitário, teria me afetado mais”,
acrescentando que "mais do que todos os cemitérios em conjunto, é o
individual e o privado que exigem da nossa simpatia".
É uma observação que incomoda, quanto mais por ser irrefutável.
Unicamente neste ano do bicentenário de Thoreau, enormes contingentes de
refugiados seguem agonizando sem que tenhamos a menor ideia de sua
vida, sonhos, rostos. Quem sabe algo tangível sobre as centenas de
mexicanos e centro-americanos que, anonimamente, pereceram somente em
2017 tentando atravessar o deserto que, como um oceano vasto, seco e
rochoso, separa o México dos Estados Unidos? Ou sobre os Rohingya que se
afogaram dias atrás na Baía de Bengala, quando fugiam dos massacres na
Birmânia? E acaso não ignoramos completamente a vida e a morte dos quase
três mil imigrantes da África e do Oriente Médio que pereceram no
Mediterrâneo em busca de refúgio na Europa, cem deles nas últimas
semanas, incluindo vinte e seis mulheres nigerianas, a maioria menores
de idade que podem ter sido violadas antes que fossem tragadas pelas
águas?
Não poderíamos falar destes refugiados da mesma forma em que Thoreau
escreveu acerca dos corpos irlandeses: “Por que motivo cuidar desses
cadáveres? Na verdade, eles não têm outros amigos além dos vermes e dos
peixes".
Se Thoreau estivesse vivo, poderia usar amplamente nossa assombrosa
falta de atenção para a tragédia alheia como uma prova de que pouco
mudou desde que ele andou pelas praias do Cabo Cod, em 1849. Ainda somos
confrontados hoje, como seremos amanhã, pelo mesmo dilema ético que
Thoreau formulou com elegância, mas que não conseguiu resolver: como
rejuvenescer as fontes de piedade quando as imagens de restos humanos
nas encostas, desertos ou sob as ruínas de uma cidade são tão
incessantes e inesgotáveis que acabam convertidos em uma nebulosa de
cadáveres que ninguém pode discernir e processar de uma maneira
significativa?
Uma maneira de encarar este "colapso da compaixão", segundo alguns
psicólogos têm chamado, é seguir uma rota que o próprio Thoreau não
tomou. O "alvoroço da natureza", dizia ele, era responsável por essas
mortes, para não mencionar qualquer "vibração visível do tecido social"
que poderia ter impulsionado essas famílias a abandonar sua terra natal.
Ele não descreve (nem neste escrito, nem em outro qualquer) a fome que
pressionou tantos irlandeses, prestes a morrer, a emigrarem, uma fome
que foi criada por seres humanos e não por alguma caprichosa "lei da
natureza". A praga que afetou as batatas e levou tantas famílias
irlandesas a subirem em barcos perigosos foi agravada por problemas
sociais e econômicos: a exploração de terras por latifundiários
forasteiros, os procedimentos que favoreciam a criação de ovelhas no
cultivo de alimentos, a qual haveria de acrescentar a negligência e
crueldade do governo colonial britânico que exportou grandes quantidades
de mantimentos nos mesmos anos em que sua população estava morrendo de
fome.
Hoje, se cada um de nós não consegue abrigar em nossos corações a
imensa plenitude de nossas adversidades contemporâneas, é possível, pelo
menos, admitir e compreender as causas profundas e prolongadas de tais
cataclismos, um passo essencial se quisermos evitar novas desgraças.
Guerras civis, miséria, repressão política, secas prolongadas e
poluições ambientais não foram forjadas pela natureza, mas pelo homem.
Na verdade, é a nossa característica extremamente humana que depreda o
mundo natural - o que mais temia Thoreau ao agradecer que "os homens não
podiam voar, porque, além de terra, arruinariam o céu e ar" - o que
gera reiteradamente os conflitos e a escassez que compelem tantas
pessoas a procurar amparo em países estrangeiros. Uma situação que vai
piorar: a Organização Internacional para as Migrações (OIM) estimou que,
em 2050, as mudanças climáticas levarão duzentos milhões de refugiados a
fugir de suas casas.
Se Thoreau não analisou a tempestade de males sociais que conduziam a
esse naufrágio tão infeliz de 1849, com a paciência e perspicácia que
ele dedicou a árvores, flores e arroios, isto pode nos servir, no
entanto, como um modelo do que devemos fazer quando nos sentimos
indefesos e ultrapassados pela magnitude dos horrores que nos agridem
periodicamente. Seria urgente, no momento em que a Terra que ele tanto
venerou sofre um saqueio sem sentido, quando as migrações forçadas
chegaram a definir o nosso século violento, que escutemos seu chamado à
uma resistência pacífica contra a opressão, sua profecia de que "nunca é
tarde para que homens honestos se rebelem".
Não se tratava, para Thoreau, de meras palavras. Opondo-se às duas
desigualdades de seu tempo, as infâmias da escravidão e da guerra dos
Estados Unidos contra o México (cujo objetivo imperialista era o de
expandir os territórios onde a venda e a exploração de escravos poderia
prosperar), recusou-se a pagar seus impostos, preferindo que o
encarcerassem. Foi esta postura que conduziu Thoreau a escrever seu
ensaio sobre "A Desobediência Civil", que viria a inspirar Tolstói,
Gandhi, Martin Luther King e Pérez Esquivel.
Certamente, muitas vezes tais atos de desafio à autoridade e à lei
têm consequências dolorosas e, por vezes, letais. E é igualmente certo
que muitos de nós - e me incluo relutantemente nessa maioria - não
possuem nem força de vontade, nem coragem para suportar tais danos. Isso
não significa que estejamos condenados a levar "vidas de desespero
silencioso que terminam no cemitério sem haver cantado a canção que
trazemos dentro de nós". Thoreau compreende que o caminho do martírio
não é para todos. Pelo contrário, duzentos anos após seu nascimento, ele
sugere que cada um de nós possa participar na transformação do mundo a
sua própria maneira: "Posto que não importa o quão pequeno pareça algo
em seu início: o que é bem feito tem efeitos eternos".
Thoreau acredita que, assim como a própria Natureza, podemos nos
renovar "completamente a cada dia que passa". Sua voz nos encoraja a
descobrir aquele gesto mínimo com o qual se pode contribuir para uma
sociedade diferente. É uma tarefa urgente, já que aqueles cadáveres que
infectam as areias e o mar que Thoreau teve de contemplar - e que se
repetem obscenamente em nossos dias - profetizam, na tela profética de
nossa imaginação, o destino coletivo que espera o barco da humanidade
que se dirige inexoravelmente para as rochas. Aqueles mortos abandonados
estão nos advertindo que precisamos agir agora mesmo, que é preciso
cantar essa canção que ainda persiste dentro de nós, antes que seja
tarde demais para evitar o naufrágio que ameaça nosso planeta
danificado. E sem um Thoreau na praia para relatar qual foi o nosso
destino final.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/574705-os-naufragos-de-thoreau
Imagem da Internet
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