Martha Medeiros*
Sempre gostei da literatura de estilhaços, aquelas publicações meio
guerrilheiras feitas pelos chamados outsiders, se é que ainda se usa
essa palavra. Livros contendo versos soltos, confissões durante
ressacas, palavras com gosto de álcool e fumaça, súplicas desesperadas
para amores que não deram certo, tudo misturado com fotos, ilustrações,
manuscritos, enfim, um álbum de figurinhas da solidão do autor, e da
nossa também.
No início dos anos 1980, havia fartura desses desabafos poéticos e
mergulhos na alma, uma espécie de panfletagem da liberdade que me fazia
sentir representada e compreendida. Caio Fernando Abreu, Charles
Bukowski, Roberto Freire (o de Sem Tesão Não Há Solução), Luciano
Alabarse (que na época publicava uns livrinhos bacanas de forma
independente) e poetas como Cacaso, Ledusha, Chacal, Leminsky, Alice
Ruiz e Ana Cristina Cesar eram a minha turma da porta do quarto pra
dentro. Com eles eu embarcava num tour pelas entranhas, as minhas e as
deles.
Não tenho visto muito disso. A rebeldia anda mais asséptica, os
sentimentos menos intensos. Tudo vira uma postagem rápida e nem dá tempo
de pensar sobre o que acontece dentro da gente.
Acho que é por isso que eu sempre gostei do trabalho da Clara Averbuck.
Porque, mesmo sendo uma mulher do aqui e agora (ativista, empoderada,
com presença forte nas redes), ela mantém vivo o espírito outsider, é
uma Rê Bordosa clássica, atemporal. Acabei de ler Toureando o Diabo, seu
livro de 2015, mas que poderia ser de 1979 ou de 2036, já que ela
escreve sobre uma sensação de abandono que, vitalícia, nunca nos
abandona. Clara faz uma mixagem de seus superpoderes com seus
supervacilos – um tributo à ambiguidade. E lá vamos nós, com ela,
embarcar na viagem alucinante das emoções e reconhecer a potência do
sexo, do desejo, de tudo que é ilógico, que subverte, enlouquece,
desestabiliza, de tudo que seduz, que nos encanta, que faz sofrer, que
nos arrebata, enfim, desse caos que atende também pelo nome de amor.
Neste mundo de bilhões de seres conectados, eu espicho o olho para
quem, sem medo, escancara sua perdição, sua atrapalhação, sua
indefinição. Adoro bilhetes de S.O.S., mensagens dentro de garrafas,
confidências literárias que parecem conversas de fim de festa, que
provocam o mesmo calafrio de quando a gente se apaixona à primeira
vista.
A paixão é sempre um ato de sobrevivência. Clara é uma apaixonada
pelas buscas – quem não? Alguém já encontrou a resposta definitiva para o
que está fazendo aqui?
Enquanto a gente tenta levar uma vida organizada e a salvo de
espantos, os outsiders se jogam, toureiam o diabo e nos ajudam a pensar
sobre o que nos acontece dentro. Um olé para essas mulheres
perfeitamente imperfeitas e meio kamikases, que não perdem a coragem e
brigam pela sua voz.
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* Escritora.
Fonte: http://revistadonna.clicrbs.com.br/coluna/martha-medeiros-clara-averbuck-faz-uma-mixagem-de-seus-superpoderes-com-seus-supervacilos/
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