"O funcionamento
normal de uma economia de mercado em tempos de paz será produzir
desigualdade. Em um mercado livre, talento e inovação produzem grandes
retornos."
O nome de Niall Ferguson rompeu as
fronteiras do meio acadêmico. O historiador escocês já foi considerado
uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Ao longo
de sua trajetória, virou referência quando o assunto é a formação das
civilizações ocidentais e orientais.
Professor da
Universidade de Stanford, nos EUA, Ferguson também é especialista em
história econômica. E não se esquiva de discussões sobre temas
contemporâneos. Em 2018, deve lançar o livro The Square and the Tower,
em que analisa as relações formadas a partir das redes sociais.
Na última segunda-feira, antes de sua conferência no ciclo Fronteiras
do Pensamento, o historiador recebeu ZH para uma conversa de cerca de
50 minutos na qual falou sobre economia, liberalismo, desigualdade,
política internacional e a grande crise daos refugiados, entre outros
tópicos.
Em seu livro Civilização, o senhor avalia que o
Ocidente se sobrepôs ao Oriente por conta da adoção de seis princípios
ou instituições: ciência, competição, direitos de propriedade, medicina,
sociedade de consumo e ética do trabalho. Na obra, esse sexteto foi
chamado de killer apps ("aplicativos matadores"). O que esses
aplicativos representam?
Escolhi o nome para que meus filhos
tivessem interesse pelo meu trabalho (risos). Quando estava escrevendo
Civilização, cinco anos atrás, eu tinha três filhos adolescentes. Eles
não estavam interessados em outra coisa a não ser o celular. Se eu
contasse que estava escrevendo um livro sobre as seis instituições que
tornaram o Ocidente dominante, meus filhos teriam achado a ideia
desinteressante. Então, usei a palavra apps. E consegui a atenção deles.
Essas seis instituições são como os aplicativos de seu celular. Parecem
simples, mas você não conseguiria decifrar o código que faz o app
funcionar. Ocorre o mesmo com as instituições de que falo no livro. As
seis, assim como os aplicativos, podem ser baixadas por qualquer pessoa.
Não são mais um monopólio de americanos e europeus. Para mim, essa é
uma boa analogia. Nas últimas décadas, a China, a Índia e outras
civilizações baixaram alguns desses aplicativos. Esses princípios fazem
parte da maioria dos lugares hoje. Antes, eram algo monopolizado por
América do Norte e Europa Ocidental. Pela primeira vez em centena de
anos, temos uma espécie de convergência.
Em A Grande
Degeneração, outra de suas obras mais conhecidas, o senhor avalia como o
Ocidente vem perdendo espaço em áreas como a economia. Esse declínio é
reversível?
Sim, é um movimento reversível. Os problemas
apontados no livro já existiam e podem ser consertados. O declínio dos
Estados Unidos e da Europa Ocidental não é algo fora de controle. Há
dois aspectos. Em primeiro lugar, esperar o declínio é um estado normal
da mente humana. Nós declinamos. Eu estou declinando, ficando velho. É
algo normal. Mas isso não é necessariamente aplicado a Estados, impérios
ou civilizações, que podem enfrentar períodos ruins e, depois,
recuperar-se. O declínio não é algo a ser esperado nesse caso. Em
segundo lugar, no Ocidente, há problemas como o excesso de dívida
pública, as regras complexas de regulação, o declínio do Estado de
Direito e a fraqueza da sociedade civil. Todos podem ser consertados com
lideranças básicas. Se relembrarmos a História dos Estados Unidos, por
exemplo, veremos que o país não está em um estado pior do que estava no
início de 1970. Na década seguinte, os americanos conseguiram mudar de
direção. O sentimento no país ficou mais otimista, o que perdurou por
décadas seguintes.
Qual é a alternativa mais adequada para o Ocidente barrar esse declínio?
Acho que podemos falar sobre as más alternativas possíveis, como o
populismo. Nele, há um líder forte e políticas restritivas de comércio e
imigração. Essa é essencialmente a receita de Donald Trump. O populismo
tende a tornar o cenário pior. Surgem pessoas de determinadas regiões
que se consideram as únicas para tentar consertar a situação. Hugo
Chávez (ex-presidente da Venezuela) foi um exemplo disso. Temos de ter
cuidado com políticas populistas.
"A grande revolução será a mudança dos governos através da
tecnologia. Se de fato der certo, vai empoderar
cidadãos e reduzir
custos."
E quais são as melhores alternativas?
A tecnologia pode fazer os governos liberais mais eficientes e
baratos. São elementos clássicos do liberalismo: livre concorrência e
liberdade individual. Isso está começando a acontecer em pequenos
Estados, como a Estônia. Também pode ocorrer nos Estados Unidos, no
Brasil. Podemos realmente transformar a política e a economia. A
tecnologia mudou a forma com que nos entretemos, como compramos e
pesquisamos de maneira online. Mas ainda não mudou, de fato, os
governos. Estados continuam usando a tecnologia com os mesmos princípios
do século 20. A grande revolução será a mudança dos governos através da
tecnologia. Se de fato der certo, vai empoderar cidadãos e reduzir
custos.
O senhor já afirmou que, se tivesse de escolher entre
a desigualdade e uma guerra mundial, provavelmente optaria pela
desigualdade. Por quê?
Só disse isso porque um livro recente
de Thomas Piketty (economista francês que esteve no Fronteiras do
Pensamento em setembro) afirma que estamos voltando, de alguma forma, ao
nível de desigualdade dos anos 1950. Minha observação é de que o mundo
era tão mais equilibrado em 1950, ou relativamente equilibrado,
exatamente pelo alto grau de igualdade dos Estados Unidos e da Europa
naquela época. Houve duas guerras mundiais, uma Grande Depressão, vários
episódios de hiperinflaçao. Se você quer realmente reduzir a
desigualdade, não há nada como uma guerra mundial, a depressão, a
hiperinflação. Não acredito que possamos voltar aos níveis de igualdade
de 1950 com mais impostos. Quando as pessoas falam de desigualdade, e
dizem que está tão pior, esquecem de que a relativa igualdade dos anos
1950 foi resultado de uma era de massivos conflitos. Se você quer mais
igualdade, basta pôr todo mundo em uniforme militar, pagar a todos o
salário militar e gastar cinco anos em uma guerra convencional. Isso
reduziria em muito a desigualdade. Minha questão é que, se você quiser a
igualdade de 1950, terá de fazer algo muito radical. O funcionamento
normal de uma economia de mercado em tempos de paz será produzir
desigualdade. Em um mercado livre, talento e inovação produzem grandes
retornos. É difícil parar isso com um sistema tributário punitivo. O
talento para inovação irá para outro lugar. A questão é se é possível
reduzir desigualdade de oportunidades. Temos de aceitar que o preço de
uma sociedade livre é a desigualdade.
"Mas,
se você pegar uma visão sobre o progresso do Brasil,
verá que foi algo
muito impressionante. Devagar,
mas seguramente, políticos deverão passar
por certa limpeza. Com os benefícios da internet, das mídias sociais,
é
mais difícil ser um político corrupto."
O senhor costuma ser
convidado a falar sobre dificuldades relacionadas à democracia
atualmente. Na sua opinião, a democracia está em crise?
Fala-se muito, hoje, sobre a crise da democracia liberal. Se você
acompanhar os jornais, conseguirá ver o porquê disso. As pessoas estão
preocupadas com presidentes como Trump, nos Estados Unidos, e Recep
Tayyip Erdogan, na Turquia. Veem Xi Jinping, na China, Vladimir Putin,
na Rússia. Na verdade, não houve nenhuma mudança significativa nas
propostas da democracia liberal no mundo desde 1997. Nada mudou nos
últimos 20 anos. Em 1997, li um artigo que sugeria o futuro das
democracias liberais. A Rússia é um exemplo disso: tem eleições, mas não
é uma sociedade livre. A democracia liberal não mudou em 20 anos. No
entanto, penso que o termo "crise" é um pouco exagerado. Há pessoas que
olham para Trump e dizem que "a democracia está em perigo". Essa é uma
reação exagerada. Não penso que Trump seja uma ameaça à democracia. As
pessoas fizeram Trump presidente. Não estou tão preocupado com os
Estados Unidos. O crescimento da China, é claro, parece impressionante,
mas o país tem sérios problemas. Não acredito que, no longo prazo, o
Estado de um partido possa representar um sistema político. Prefiro
estar do lado dos otimistas.
Como o senhor analisa as recentes crises na política e na economia do Brasil?
Alguns aspectos da História do Brasil são muito particulares. O que
vou falar são observações de um outsider que fez cinco viagens ao país
em sua vida. Portanto, não sou um expert no tema. O problema do Brasil
foi explicado para mim 10 anos atrás por dois estudantes brasileiros de
MBA em Harvard. Basicamente, tentaram responder se o Brasil seria ou não
o país do futuro. Então, apareceram dois argumentos que remontavam a
dois problemas locais. Um é formado pela corrupção e pela disfunção do
governo. O outro, pela dependência do mercado global de commodities. Se
você olhar para esse cenário, nada tem mudado no Brasil de lá para cá. O
sistema político não apresentou alterações, com fortes dificuldades
para ser reformado. A economia ainda está relacionada a commodities. É
muito difícil limpar um sistema político assim. Há um líder, mas um
corrupto toma o seu lugar. Como encontrar políticos limpos em um sistema
estruturalmente tão sujo? Não tenho uma boa resposta para essa questão.
É um problema similar ao que a Itália teve. A questão é: onde o país
está agora, depois da crise política e econômica? As pessoas aqui
esperam milagres. Quando isso não acontece, têm grande depressão. Mas,
se você pegar uma visão sobre o progresso do Brasil, verá que foi algo
muito impressionante. Devagar, mas seguramente, políticos deverão passar
por certa limpeza. Com os benefícios da internet, das mídias sociais, é
mais difícil ser um político corrupto. Na Índia, também há um problema
crônico de corrupção, mas a imprensa livre faz um grande trabalho para
expor isso. Jornalistas atuam incrivelmente nesse sentido. Há certo
otimismo no Brasil e na Índia em relação a isso. Já na China uma visão
negativa, porque não existem essas mesmas liberdades.
O
senhor atuou como consultor do senador americano John McCain, que
disputou a presidência dos EUA com Barack Obama em 2008. Como avalia o
governo Obama?
O governo Obama foi superestimado. Investiu
muito em seu programa de cuidado à saúde e regulações adicionais do
sistema financeiro, em vez de focar em alguma reforma.
E qual a sua opinião sobre Trump?
É um populista clássico. Pessoas do meio intelectual e da mídia
falharam ao ver o quão ele é efetivo como demagogo e orador, atendendo a
frustrações e ansiedades. Não culpo quem votou em Trump. Aliás, entendo
por que votaram nele. Os aspectos que motivaram isso foram a frustração
com Obama, a aversão a Hillary Clinton e a sensação de que é preciso
agitar as coisas. Na prática, o governo Trump é mais próximo de Wall
Street, da elite do mundo dos negócios. O populismo sempre desaponta.
Em 2016, o senhor comparou o Brexit, no Reino Unido, a um divórcio. Por quê?
É exatamente um divórcio. Em todas as separações, a pessoa que
inicia o processo pensa que tudo terminará bem. A outra, por sua vez,
pode ficar com raiva e pensar: "Você fará isso. Mas eu farei você
pagar". E, então, começam a falar apenas sobre dinheiro. Isso é o
Brexit. Em um divórcio, se você odeia um pouco o seu companheiro no
início do processo, irá odiá-lo realmente dois anos depois. No geral, as
separações podem sair bem caras e levar um longo tempo.
Outro tema atual na Europa é a crise migratória. Quais são os desafios em relação a isso?
Os refugiados continuam chegando à Europa, que não está preparada
para recebê-los. Os mercados liberais europeus não absorvem bem
trabalhadores com menos qualificação. Isso é muito ruim. Em segundo
lugar, há um grande problema cultural. Boa parte dos migrantes é
muçulmana e acaba se concentrando em áreas urbanas afastadas. Quando
Trump propôs barrar a entrada de muçulmanos, foi muito criticado nos
Estados Unidos. Mas, na Europa, a maioria da pessoas diria que essa
política deveria ser colocada em prática no continente. É uma situação
muito problemática. Há surgimento de extremismos em comunidades
muçulmanas na Bélgica, na Holanda, na França, na Alemanha. Redes como a
do Estado Islâmico conseguem se estabelecer nesses locais. É possível
prever o fortalecimento do extremismo na Europa e o crescimento do
populismo. Marine Le Pen não venceu a eleição na França. Mas as ideias
populistas voltaram. Sou um pouco pessimista nesse tema. A crise
migratória é muito profunda.
"As redes sociais são instrumentos poderosos e potencialmente perigosos
para a democracia,
o que ninguém imaginaria até dois anos atrás. (...)
O Facebook tem uma espécie de monopólio,
que
pertencia às grandes empresas de mídia tradicional.(...) Apoio alguma regulação"
Em 2018, o senhor deve lançar The Square and the Tower. Quais temas são abordados no livro?
O argumento do livro é de que a maior parte da História foi
construída sob a tensão entre governos, igrejas ou corporações. Hoje, a
conexão em rede mudou isso. A tecnologia permitiu que a conexão entre
indivíduos ficasse mais forte, e as instituições, mais fracas. Isso
começou a acontecer na Europa a partir do surgimento da imprensa
escrita. Foi o início da revolução tecnológica. Mais recentemente, a
internet criou dinâmica similar. Empoderou as conexões entre os
usuários. Isso é incrível. Mas é preciso ter cuidado. Tornar as conexões
entre as pessoas mais fortes não necessariamente traz os resultados
esperados. As redes sociais, curiosamente, aumentam a polarização. Criam
as próprias bolhas, que reforçam visões ainda mais restritas. É isso
que acontece hoje em quase todos os países em que há presença de
Facebook e Twitter. Ideias loucas dividem o mesmo espaço com ideias
boas.
Em novembro, em entrevista à BBC, o senhor havia
analisado esse tema, dizendo que as redes sociais prometem uma
"comunidade global", mas resultam em polarização, e não união.
As redes sociais são instrumentos poderosos e potencialmente perigosos
para a democracia, o que ninguém imaginaria até dois anos atrás.
Abrigam mais de 2 bilhões de usuários, mais do que a população da China.
Cerca de 45% dos americanos usam o Facebook para se informar. Mas os
algoritmos do Facebook não foram criados para promover o entendimento.
Foram desenhados para incentivar o engajamento com conteúdos. Por isso a
publicidade paga ao Facebook para ter anúncios no feed. O fato de as
pessoas encontrarem conteúdos de qualidade não necessariamente é
verdade. As notícias falsas costumam ser bem mais atrativas do que
notícias de verdade. Geram mais visualizações e, por isso, são
privilegiadas pelos algoritmos do Facebook. Frequentemente, roubam os
conteúdos de jornalistas. O Facebook tem uma espécie de monopólio, que
pertencia às grandes empresas de mídia tradicional. Isso é uma posição
muito poderosa. Apoio algum tipo de regulação. Essa situação é
problemática, e também não acho que seja sustentável. Você não pode ser o
maior publisher e não aceitar nenhum tipo de regulação. Isso tem de
mudar. As redes sociais são boas, conectam as pessoas. Mas os problemas
gerados por elas têm me feito enxergar as mídias tradicionais com melhor
visão.
----------------
leonardo.vieceli@zerohora.com.br
Reportagem por LEONARDO VIECELI
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=6e2400ec18b6f1952f1053c65df7a8b6 02/12/2017
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário