"O livro não tenta destruir o mito, até porque os mitos não se conseguem destruir,
pois são construídos pela sociedade"
Daniel Rocha/PÚBLICO
Juan Martin Guevara, activista político argentino e irmão mais novo de
Che Guevara, esteve em Lisboa para
o lançamento do seu livro O meu irmão Che. Reivindica
os seus ideias políticos e humaniza o mito.
Ao contrário dos seus outros irmãos, que
preferem manter o silêncio sobre a vida do aventureiro e guerrilheiro
Che, Juan Martin Guevara, o irmão mais novo de Che Guevara, está
interessado em resgatar a memória de um homem que se tornou um ícone, e
dar a conhecer o seu pensamento, expresso em tiradas familiares, poemas e
escritos políticos. Veio a Lisboa lançar o livro O meu irmão Che,
escrito em co-autoria com a jornalista francesa radicada nos Estados
Unidos, Arnelle Vincent e conversou com o PÚBLICO sobre o Che, mas
também sobre o guevarismo e a situação política da América Latina.
Depois
de décadas em que a família Guevara nada disse sobre o Che, decidiu há
dez anos começar a falar sobre o seu irmão mais velho. No livro,
explicou que sentia em relação a ele “um dever de memória”, e teve um
enorme cuidado para apresentar as várias facetas da sua vida, pessoal e
política, contando episódios que
ajudam a compreender o seu carácter sem expor a sua intimidade familiar.
Qual foi o seu critério para seleccionar o que divulgar e do que manter
privado?
Decidi falar e escrever este livro por considerar que outros
dificilmente conseguiriam humanizar o mito. Quis dar a conhecer um
Ernesto Guevara antes de ser Che: real; humano; pessoa actuante e
pensante, não um ícone. Depois de muitos anos em que nunca falei sobre o
meu irmão, aceitei fazer uma palestra em 2009 e foi aí que tive a noção
da desinformação que havia sobre Ernesto. Tinha aceitado falar com a
intenção de destruir o mito de Che, mas dei-me conta de que não era
possível nem servia para nada. Quando se pôs a possibilidade de fazer
esta obra com Arnelle Vincent, procurei incluir distintas etapas: a
família de onde saiu este Che e como se repercutiu nessa família o facto
de que Ernesto se tenha convertido no Che. O objectivo central não é
falar das distintas vicissitudes nacionais e internacionais,
ideológicas, políticas.
As páginas mais interessantes são aquelas onde relata as
histórias da sua família e o papel que tiveram o seu pai e a sua mãe na
formação da personalidade do seu irmão (e também na sua).
Há
uma particularidade nos biógrafos: sempre dizem que o Che foi como foi
por causa da mãe, como se não tivesse tido a influência do meu pai, do
contexto da família. Tanto o meu pai como a minha mãe tinham
personalidades muito fortes, e muito distintas, e nós incorporámos um
pouco de um e do outro. O meu pai era um tipo que amava a poesia, que
desenhava, fazia caricaturas. Isto é, o rigor não era com ele. E se
fosse preciso fazer batota, não era problema. Já a minha mãe tinha
sempre em conta os valores, a rectidão, a transparência, o trabalho;
estava sempre a lembrar-nos como era importante estudar, ler, ser culto.
Este ambiente familiar, que foi igual para todos, para Ernesto — nós
chamávamos-lhe Ernestito — foi muito importante. De todos, talvez tenha
sido ele o que melhor encarnou esta mistura. O livro tem muitos exemplos
práticos de como ele incorporou a educação, a vivência da família, o
valor de ter os pés na terra. Conto por exemplo um episódio que tive com
ele em 1959 em Cuba: estávamos a rir-nos de qualquer coisa, e começámos
a empurrar-nos. Ele tinha um braço engessado, magoei-o e ele
queixou-se. Eu parei para ver o que ele tinha e ele aplicou-me um soco.
Eu protestei a chamá-lo traidor e ele então disse: nunca baixes os
braços, e nunca confies no inimigo. Ele era um tipo com muito bom humor,
mas era provocador.
Começa o livro a contar a sua
primeira visita à Quebrada del Yuro, na Bolívia, onde Che Guevara foi
morto a 9 de Outubro de 1967, e a dar conta do seu incómodo com o mito
construído em torno do seu irmão, e com o aproveitamento comercial da
sua imagem. Mas como falar do seu irmão sem correr o risco de prolongar o
mito?
O livro não tenta destruir o mito, até porque
seria inútil. Os mitos não se podem destruir, pois são construídos pela
sociedade. O que tentei foi dar-lhe um conteúdo, humano, político e
ideológico, e também histórico, através do que ele escreveu. O livro já
foi editado em onze idiomas. Ora, eu não sou conhecido e não sou
escritor: é óbvio que este interesse é por causa do Che. O meu objectivo
é humanizá-lo e devolver-lhe os pés à terra. Tenho uma frase feita: sou
irmão de sangue de Ernesto e companheiro de ideias de Che.
Desde 1967, quando o Exército boliviano o assassinou, até hoje, o
mundo mudou muito. Mas mudou para pior, no sentido por que ele lutou.
Está melhor apenas em termos de tecnologia, mas isso não é
necessariamente um avanço, porque para termos todos estes novos
aparelhos estamos a destruir o ambiente. Mas a essência não mudou desde
67: a riqueza está cada vez mais concentrada, as empresas são maiores e
mais poderosas, a violência, às vezes camuflada, continua. A luta do Che
não foi pessoal, não tinha a ver com honras e galões. Foi uma luta
popular com uma característica de solidariedade para melhorar a vida de
todos. Era como o cristianismo mais puro.
Mural de Che Guevara na Bolívia, país onde foi morto, em 1967
DAVID MERCADO/REUTERS
Reivindica os
ideais do seu irmão e diz que as soluções políticas que ofereceu nos
anos 60 são mais actuais do que nunca. A certa altura escreve que é
marxista-leninista mas acima de tudo guevarista. Como caracteriza o guevarismo?
O
guevarismo é uma continuidade do marxismo-leninismo. O Che fala nos
seus escritos de marxismo. Ele diz que é necessário mudar as estruturas,
as forças produtivas e os proprietários dos meios de produção, mas além
disso há que acrescentar cultura e consciência ao povo para que não se
retroceda. Portanto, Marx é necessário para chegar ao guevarismo, e
Lenine é necessário para chegar ao guevarismo, porque sem organização e
sem estratégia de poder não há possibilidade de mudança.
Mas dizer
hoje guevarismo define muito mais do que marxismo-leninismo. Porque
quando se fala de comunismo, hoje, é o quê? Na China há um partido
comunista que governa e o capitalismo é formidável; o Vietname está numa
economia de mercado.
Então hoje a questão é de que maneira se
pode romper a cadeia, qual é a organização e a estratégia de poder e a
consciência que o Che agregou. Na revolução cubana, derrotaram
militarmente o inimigo, alcançaram o poder político e económico. A
partir daí é a luta pela consciência. E atenção, no guevarismo a guerra
de guerrilha é um método. O fundamental não é o método mas o objectivo,
que é tomar o poder e dar a volta à tortilha. Quanto aos métodos, na
União Soviética foi um, na China foi outro…
Suponho que
quando fala hoje em aplicar os princípios do guevarismo, já não se
esteja a referir à guerrilha ou ao conflito armado. O contexto é outro.
Não
há nenhuma dúvida de que os poderes centrais não entregarão o seu poder
pacífica e amavelmente. A experiência da História é de que nunca um
povo teve a possibilidade de se libertar sem que fosse de alguma forma
uma resposta de baixo à violência de cima. Pode ter sido com guerrilha,
com guerra, com insurreição, com greves gerais, mas nunca foi
amavelmente. Nunca o poder disse “tomem, já me dei conta que é injusto”.
A essência do capitalismo é ser como é: fazer trabalhar os demais
(países ou povos) e acumular riqueza. Os jovens no futuro é que têm de
decidir como vão fazer com que o guevarismo funcione. Tenho a certeza
que não vai ser de forma amável e eleitoral. Se as eleições já não
servem aos poderes, deixam de as realizar, ou então criam outro partido.
Então não acredita na transformação e mudança por via eleitoral democrática?
Até
agora não houve essa demonstração, de cada vez que a mudança parecia
possível foi destruída. Salvador Allende é um exemplo: ele ganhou as
eleições. Na Argentina também, fez-se um golpe e já está. E continua. Às
vezes os golpes são mais ocultos. Pensemos no Brasil, que chamam golpe
branco: foi Dilma que ganhou as eleições. Posso continuar a dar
exemplos, e não só da América Latina: Síria, Afeganistão, Líbia, Iémen…
No momento em que os poderes se sentem ameaçados, vão utilizar todas as
ferramentas.
Abandonou a militância política.
Eu
era do PRT [Partido Revolucionário dos Trabalhadores], que já não
existe. Agora criei uma fundação, que se chama Che Vive, que tem por
objectivo dar a conhecer as 4300 páginas que escreveu Ernesto e pô-lo em
contexto. Não milito num partido porque me parece que isto é mais
importante. Tenho oportunidade, por exemplo, de estar em Portugal a
falar a um público que pode não saber muito de Che. O Che era poeta —
tenho aqui um poema e não te vou ler todo porque se não ponho-me a
chorar, é um poema que ele escreveu quando era médico num hospital
público do México e sabia que uma mulher ia morrer. Esse também era o
Che.
Como acabou de notar, nem todos os que conhecem o Che sabem da sua poesia. Como explica que o seu irmão ainda seja tão simbólico? Qual é o apelo de Che?
Temos
uma realidade económico-social que é de crise. A grande maioria das
pessoas está mal e precisa de mudança. O conceito da libertação, de dar a
volta, continua presente, e o Che foi um dos que mais pensou nisso.
Nunca conseguiram minimizar o Che, ele continua a transmitir a sua
mensagem de mudança, aos “ches” e “cheas” futuras: a mensagem de que é
necessário e é possível. É fundamental. E ele também mostra que é
preciso dar o corpo ao manifesto.
Reportagem por
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