Juremir Machado da Silva*
Que é o homem?
O homem kantiano é dominado pela sede de absoluto. É o ser que se
pergunta: quem sou? Eu me pergunto isso quase todo dia. No ônibus. Não
chega a ser saudável tamanha preocupação com minha essência. Não
consigo, porém, parar de me questionar e de interrogar o mundo. Sou
daqueles que perguntam com uma criancice permanente: por que a árvore
existe? Por que pássaro voa? Por que estamos aqui? Por que temos de
morrer? Por que sonhamos? Sonhar é algo que me fascina. Durmo para
sonhar. Quando alguém se questiona sobre a existência de Deus, eu
respondo sem vacilar: se o homem existe por que Deus não existiria?
O que é o homem? Que é ser homem? Já se definiu o homem pela
racionalidade. Parece uma boa pista. A razão, contudo, é uma pequena
parte do que somos. Freud liquidou essa ilusão moderna do sujeito
emancipado que se conhece e controla consciente de si e do universo.
Forças estranhas nos dominam, impulsionam e comprometem. Isso afeta um
conceito básico das nossas sociedades: a responsabilidade. Quanto
escolhemos na vida? Eu não escolhi ser homem, ser branco, ser palomense,
ser míope, ser destro, ser desafinado, ter mosca volante, gostar de
pêssego, detestar carne crua, admirar os impressionistas, preferir
Borges a quase todos os outros, ser pós-moderno, fazer polêmica, não ser
louco por chocolate, gostar mais de chá que de café. Apenas me descobri
assim. Ser homem é constatar o que se é todo dia.
Em “A montanha mágica”, obra-prima de Thomas Mann que talvez já não
encontre muito leitores espontâneos, Naphta provoca Settembrini dizendo
com a atualidade de um crítico das provocações da arte: “O erro dos
literatos consiste na crença de que somente o espírito torna as pessoas
decentes. O que se dá em realidade é antes o contrário. Somente onde
falta o espírito existe decência”. Já o viperino Karl Kraus, mestre de
aforismos, não se intimidava: “O humanitarismo é uma lavadeira que torce
as roupas sujas da sociedade enquanto se desfaz em lágrimas”. Eu me
permito uma definição barata: homem é o ser que cita.
Dito isso, eu me penitencio em praça pública. Ando atrás da essência
do homem. Corro o risco de ser chato. Um cara que fala de Kant
superficialmente, de absoluto de passagem, de Thomas Mann, de Karl Kraus
e de essência do homem jamais fará sucesso no youtube. Longe de mim
acusar os youtubers de não ter espírito ou decência. Devem ter. Afinal,
mais uma citação, como dizia Guy Debord, “o espetáculo não diz nada além
de: o que aparece é bom; o que é bom aparece”. A humanidade do homem me
pesa. Acompanho as notícias. Dir-se-ia – ouço demais as declarações de
Michel Temer – que o homem é o mais selvagem dos animais e que a
racionalidade é a sua perdição.
Ser homem é viver na obrigação de ser produtivo e na incerteza da
aposentadoria. Ser homem é viver com pouco esperando muito. Ser homem é
colocar a morte entre parênteses para fazer da vida uma eternidade
provisória. Ser homem é acreditar no pós-humano. No amor.
*
Michel Temer é o anti-kantiano por definição.
A máxima de Kant pode ser declinada assim: “Age como se a máxima de
tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.”
No fundo é bem simples: faz com os outros o que aceitarias que fizessem contigo.
Temer se aposentou aos 53 anos de idade. Não mexerá no seu “privilégio”.
Quer fazer isso com os benefícios dos outros.
Tudo para economizar R$ 480 bilhões.
Enquanto isso, na semana passada, foi aprovada a sua MP 795 que
presenteia pretroleiras internacionais com um 1 trilhão em isenções
fiscais em 23 anos.
Em outros tempos, sem eufemismos, seria chamado de o maior entreguista da história.
O que é o homem?
Um arremedo de estadista.
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* Sociólogo. Jornalista. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/12/10438/temer-homem-e-kant/
Imagem da Internet
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