terça-feira, 5 de dezembro de 2017

VITO MANCUSO: ''Há tensões muito fortes com Francisco e o risco de divisão da Igreja.''


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Entrevista com Vito Mancuso

Em Carate Brianza, ele se sentia no exílio: “Meu pai e minha mãe haviam emigrado da Sicília pouco antes de eu nascer. Eu ia à escola na província de Monza, e, quando os professores faziam a chamada na aula, eu já senti que havia algo que não estava certo. Eu me chamo Vito Mancuso. O meu nome e sobrenome evocam prepotentemente o Sul [italiano]. Mas eu crescia na Brianza muito branca dos anos 1960. Eu me sentia fora de lugar e diferente. Sentia sobre mim o racismo, a desconfiança de algumas pessoas. Acho que, a partir da dilaceração entre aquilo a que eu pertencia e o lugar onde eu me encontrava, nasceu em mim a necessidade de pensar.”

A reportagem é de Nicola Mirenzi, publicada no sítio L’HuffingtonPost.it, 03-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Para refundar a fé cristã sobre uma base secular e universal, Vito Mancuso abordou 2.000 anos de doutrina da Igreja, armado com Tomás de Aquino e Albert Einstein, com filosofia e com ciência, com o seu corpo e com a sua mente: todos unidos na luta.

Teólogo, escreveu que o pecado original é “uma ofensa à criação, um insulto à vida, uma afronta à inocência e à bondade da natureza”. Definiu o inferno como “um conceito teologicamente indigno, logicamente inconsistente, moralmente depreciável”. Intrigou o mundo secular e provocou alerta no religioso. “Ele esvazia de significado cerca de uma dezena de dogmas da Igreja” (La Civiltà Cattolica). “Despertou em mim um sentimento de profundo desconforto” (L’Osservatore Romano).
Lendo o seu último livro – Il bisogno di pensare [A necessidade de pensar] (Ed. Garzanti) – tem-se a impressão de que a margem é para Mancuso o lugar a partir de onde se pode sentir mais forte o pertencimento, assim como a erradicação está na origem da sua necessidade de se enraizar: “Nunca quis ser inscrito em uma escola, seja a hegeliana, a kantiana, a martiniana. Prefiro cultivar a independência, até mesmo em relação aos mestres”.

Eis a entrevista.

Você se ocupa de Deus, mas sempre se refere à carne. Por quê?
Nietzsche dizia que nunca se deve dar ouvidos a um pensamento que vem à mente quando não se está a caminho. E que ter a “bunda de pedra” – isto é, estar sempre sentado – é um pecado contra o Espírito Santo. A parte do corpo com a qual eu mais penso são os pés. Eles me fazem sentir a concretude das coisas. Pois o pensamento está sempre imerso no material.

 "Deus não é contra a corrente vital do mundo, a energia que se desenrola na história e pede sentido, justiça, beleza. 
Deus não está contracorrente."

As ideias também?
As ideias são visões, não são conceitos que são pensados e elaborados: são algo que se impõe à vista, mesmo que as olhemos com os olhos interiores. É isso que conota as grandes intuições dos musicistas, dos poetas, dos artistas, dos cientistas.

Os cientistas não fazem isso com os experimentos?
Em 1964, quando Peter Higgs teorizou a existência de um bóson para além das partículas elementares, ele não tinha nenhum dado para sustentar isso. Ele viu. Quarenta anos depois, no CERN de Genebra, verificaram que ele realmente existia. Isso também aconteceu com a teoria da relatividade. Einstein tinha, por um lado, a mecânica quântica, por outro, as leis do eletromagnetismo: duas teorias que, tomadas singularmente, eram verdadeiras, mas, juntas, eram irreconciliáveis. A sua visão da relatividade as uniu. Enquanto não foi verificada, ela também era pura imaginação.

 "Deus é a força que guia a corrente e a meta para 
a qual a corrente se dirige. É fonte e porto, 
alfa e ômega"


A sua imaginação se alimentou do quê?

O meu pai era pedreiro, minha mãe começou sendo costureira. Na minha casa, havia apenas dois livros: um Evangelho com a capinha branca e as páginas muito finas, e um livro de orações. Quando meu pai teve um pequeno sucesso econômico, começou a comprar enciclopédias em parcelas. Os volumes chegavam uma vez por mês. Eu folheava as Ciências, Universos, perdendo-me nas palavras e nas ilustrações. E, depois, havia os romances de aventura de Emilio Salgari.

Você fez o liceu nos anos 1970. Como era?
Eu estudava em Desio, a 10 quilômetros de Milão. Era uma zona operária, perto das instalações da Autobianchi. A democracia proletária era muito forte, assim como os outros grupos de extrema esquerda. Desio, porém, também tinha uma grande tradição católica. É a cidade do Pe. Luigi Giussani, fundador do Comunhão e Libertação. E cada manifestação terminava na praça que hospeda a estátua de Pio XI – que também nasceu lá – com uma bandeira vermelha pendurada entre os três dedos que abençoam.

 "Na Igreja, porém, um lado o segue, outro se opõe a ele. As tensões tornaram-se muito fortes. Há o risco de que 
o trem da Igreja se divida"

De que lado você estava?
No meio dos extraparlamentares de esquerda e dos jovens do Comunhão e Libertação. Eu era próximo do catolicismo democrático, mas, acima de tudo, era distante ou, melhor, sentia alergia dos meus coetâneos que já sabiam tudo da vida, que tinham no bolso uma verdade vermelha, branca ou preta. Sentia uma falsidade neles. Tinha a impressão de que removiam as contradições da existência, escondendo-se atrás de uma citação recortada dos seus textos de referência. Eu, ao contrário, buscava a verdade que havia dentro de cada posição: a verdade da tese e a da antítese. Quando descobri Hegel, senti uma grande afinidade com a sua dialética.

Leu Hegel tão jovem?
Não, aos 17 anos, eu li “Deus existe?”, de Hans Küng, um livro de mais de mil páginas, que se interroga sobre a relação entre o pensamento moderno e a ideia de Deus, em que havia uma parte dedicada a Hegel. Quando terminei, eu me disse: “Quero me dedicar a isto: a pensar Deus filosoficamente”. Foi uma leitura decisiva. Mudou a minha vida.

Como?
Eu falei a respeito com o padre do meu oratório, que me aconselhou a conversar com o seminário: “Pode ser um sinal de vocação sacerdotal”, ele me disse. Eu fui. Me encontrei com o diretor espiritual em uma sala cheia de livros, à qual se tinha acesso percorrendo corredores cheios de luzes. Me senti no lugar certo. Me convenci e entrei no seminário.

"A força profética de Francisco é tão evidente que até 
mesmo o mundo secular o escuta e o considera 
um ponto de referência"

Tornou-se padre?
Aos 23 anos e meio, em antecipação de quase dois anos nos tempos canônicos, o cardeal Martini me ordenou sacerdote. Eu tinha feito cinco anos de estudos teológicos maravilhosos, com professores excepcionais, incluindo o cardeal Tettamanzi, e depois o cardeal Ravasi, o cardeal Coccopalmerio, e muitos outros ainda.

Por que não continuou sendo padre?
Porque, depois de um ano, me dei conta de que a minha vocação era, sim, teológica, mas não sacerdotal. Duas coisas não me pertenciam: uma era a obediência à doutrina, a outra era a renúncia a exercer a minha afetividade também em nível sexual. A primeira, eu poderia ter remediado tornando-me um daqueles padres rebeldes como o Pe. Gallo. Para a segunda, por sua vez, não havia solução.

 "Deus, para mim, é contra o consumismo, o poder, o desejo de posse: as manifestações superficiais da 
cultura contemporânea"

Preferiu a si mesmo a Deus?
Há um grande filão do pensamento teológico que acredita que existe uma infinita diferença qualitativa entre Deus e o homem, de modo que seguir Deus significa dar um salto no grande mistério, viver a fé como cegueira, até negar a si mesmo e opor-se à razão, escandalizando o mundo. Mas esta não é a minha visão da fé. Deus, para mim, é contra o consumismo, o poder, o desejo de posse: as manifestações superficiais da cultura contemporânea. Mas não é contra a corrente vital do mundo, a energia que se desenrola na história e pede sentido, justiça, beleza. Deus não está contracorrente. Deus é a força que guia a corrente e a meta para a qual a corrente se dirige. É fonte e porto, alfa e ômega. E não há oposição entre dimensão humana e teológica, entre corpo e espírito: é na harmonia entre elas que Deus se manifesta.

Em que direção o Papa Francisco se move?
A força profética de Francisco é tão evidente que até mesmo o mundo secular o escuta e o considera um ponto de referência. Na Igreja, porém, um lado o segue, outro se opõe a ele. As tensões tornaram-se muito fortes. Há o risco de que o trem da Igreja se divida.

 "Sem uma visão, a política se reduz a pura administração, 
a técnica fria do governo"

E a política?
No século XX, a política foi invadida pelo pensamento. Fileiras de ideólogos elaboraram teorias que pretendiam se impor sobre a história, os homens e a sua liberdade. E talvez, hoje, pagamos por esse excesso. Sem uma visão, a política se reduz a pura administração, a técnica fria do governo. E, para a Itália, isso é mais arriscado do que para outros países.

Por quê?
Porque, sem ideias capazes de organizar a dimensão pública, entram em jogo os interesses, os lobbies, as clientelas, a corrupção: um campo em que o nosso país está sempre muito no topo das classificações internacionais. Quanto mais as visões do bem comum se extinguem, mais emerge o particular.

 "É inegável que, entre os dois grandes princípios que orientam a política – a liberdade (direita) e a igualdade (esquerda) – Francisco insiste mais no segundo."

Você cita Guicciardini. Isso não significa que a Itália sempre foi assim?
Quando eu era jovem, não perdia sequer uma tribuna política. Escutar Berlinguer, Zaccagnini, Fanfani ou Almirante me colocava diante de uma visão do mundo. Não se tratava simplesmente de outros políticos: tratava-se de estadistas, isto é, de políticos capazes de dar unidade às necessidades e aos interesses de um país inteiro. Hoje, parece que não se veem estadistas.

A Igreja poderia fazer alguma coisa?
A Igreja deve fazer política, fornecendo uma orientação, falando de economia, ética, justiça social. O que não deve fazer é escolher um partido em vez de outro.

O Papa Francisco, porém, agrada muito a esquerda.
É inegável que, entre os dois grandes princípios que orientam a política – a liberdade (direita) e a igualdade (esquerda) – ele insiste mais no segundo.

 "As feras agredidas agridem. Quando não exercemos 
o pensamento, nós, seres humanos, 
não somos diferentes"

Isso significa que podemos defini-lo como “um papa de esquerda”?
É uma definição que o papa rejeitaria. Mas, se aplicarmos – um pouco inapropriadamente – as categorias políticas à teologia, é claro que, à direita, está a tradição; à esquerda, a inovação. Portanto: Ratzinger era um papa de direita, Francisco é um papa de esquerda.

Por que você nos convida a pensar?
Para encontrar paz e não nos tornarmos maus.

Os maus não pensam?
Refiro-me a maus no sentido latino do termo: captivi [cattivi, no italiano], ou seja, prisioneiros. Prisioneiros do medo que imobiliza a mente e o coração, gerando fechamento e agressividade. As feras agredidas agridem. Quando não exercemos o pensamento, nós, seres humanos, não somos diferentes.
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