Maria Ribeiro*
Finalmente fui arrebatada por uma enorme paz de espírito
Eu sei, a
culpa é minha também. Sempre é. Depois dos 40 a gente precisa se
responsabilizar pelas coisas. Mas é que esse negócio de férias de fim de
ano, vou te contar, é pior do que sentido da vida, uma coisa que não
tem como dar certo. Você ser obrigado a não pensar em nada só porque
“ficou combinado” é de uma violência que eu só vivi quando era pequena e
era forçada a comer berinjela. Pra um ser humano como eu, que tem
problemas sérios com infinito e vastidão desde que se entende por gente,
não existe isso de “ficar off” só porque todo mundo fica (mas, também,
vamos combinar que tanto o infinito quanto a vastidão são duas coisas
totalmente inúteis e desagradáveis). Free ano novo, meu Brasil!
Porque acontece o seguinte. Esses problemas metafísicos, que já me dão a maior dor de cabeça — só que no peito — o ano todo, ainda fazem a gentileza de piorar muitíssimo quando chega dezembro. Meu HD não consegue se acostumar com esse reset obrigatório que vai do Natal ao Ano Novo de jeito nenhum, e, o que é pior, ainda tem a capacidade de se concentrar em tudo o que eu não dei continuidade no ano que chega ao fim, como se eu só me ativesse ao lado B da história.
O violão, por exemplo. Eu comecei a tocar pra fazer uma peça de teatro, mas parei com as aulas assim que a temporada acabou. Eu gostava de brincar de Nara Leão, eu fechava os olhos nos agudos, eu me vestia anos 60, eu me exibia no Instagram, era uma coisa que me fazia bem, mas cadê que eu continuei? Não continuei. E por quê? Porque não tinha mais um objetivo claro e determinado que justificasse tal esporte, olha que tristeza. O objetivo é o túmulo do samba.
O samba (e aqui vou perder 59 amigos do peito): minha grande questão com a folia de fevereiro é justamente o encerrar-se em si mesma. Eu sei que o legal é isso, mas, desculpa a sinceridade, só se você nasceu com esse superpoder. Tipo de fábrica. Quando eu era garota, até encontrava algum sentido em me fantasiar. Ia aos bailes do Clube Campestre, em Petrópolis, me vestia de colombina ou de Mulher-Maravilha, e tinha enorme prazer em deixar de ser eu, mas depois que fiz disso minha profissão... juro, não sou mais capaz. Atores são pierrôs profissionais (embora ser amador sempre me soe mais bonito). Resumindo: em 2017 me prometi ir ao Suvaco do Cristo e ao Bangalafumenga, mas quando eu vi já tinha sido, e eu não tinha ido.
Natal. Claro que, depois dos rebentos, a festa melhora muito, mas o meio do caminho, quando não se é mais criança mas também não se é mãe, olha, acho mais difícil que cuidar de Bonsai. Eu sei que muita gente não quer ter filho, e acho essa decisão admirável e corajosa, mas fico pensando em como seria atravessar esse Mar Vermelho com a água no pescoço sem ter aquela linha de chegada que é fazer os pequenos felizes. Filho é sentido garantido, e às vezes me pergunto se a maternidade e a paternidade não são mais um gesto de egoísmo do que de generosidade, já que muitos progenitores ainda cobram dos filhos o amor que lhes foi dado na infância ou na juventude, como se só o sentido recebido com a existência deles já não tivesse sido uma troca justa.
Todas essas palavras errantes pra dizer que apesar de viver atormentada 24 horas por dia com as perguntas “por que existe tudo e não o nada?” e “de onde viemos e pra onde vamos, e por quê?”, e de tudo isso ser elevado ao cubo em dezembro, eu finalmente fui arrebatada por uma enorme paz de espírito que certamente superará o sentido — ou a falta dele — do ano novo quando tomei a sábia decisão de viajar de carro pra Bahia. À la Guimarães Rosa, vou me entregar às benesses da travessia com toda a farofa a que tenho direito: três livros, Spotify premium, cinco sacolas gênias de supermercado, três barras de chocolate meio amargo com flor de sal e uma caixa de ansiolítico só pra saber que qualquer coisa ela tá ali.
Por que o fim do ano não é composto por dez domingos seguidos? E por que nesta época todo mundo tem que ficar num mood de vestir branco e fazer metas? Sim, porque de 24 a 2 ninguém toma nenhuma decisão importante — quer dizer, pode ser que o Gilmar Mendes queira liberar o Sérgio Cabral no dia 31 pra passar o ano novo em casa, mas fora isso, só os adventos da mãe-natureza, como chuvas ou tsunamis, desprezam o calendário vigente. Não há casamentos, nem separações, nem admissões, nem demissões, nem grandes cadernos nos jornais. Tem um pessoal que nasce e outro pessoal que morre, mas também é mais raro. De modo que, em nada disso ocorrendo, e você querendo chegar logo e sem dor ao dia primeiro do ano que vem, o segredo é escolher uma praia no litoral baiano e pegar a BR 116.
Parece que a estrada é péssima, mas que a vista é linda; que tem algum trânsito na saída do Rio mas que Vitória do Espírito Santo é uma beleza e vale o pernoite; que o tempo vai demorando mais a passar conforme a viagem avança, mas que as relações na estrada se estreitam de forma comovente, e que, a tudo isso se soma o calor típico do nosso verão, tornando a viagem uma aventura tão grande que certamente o réveillon se tornará menos importante no departamento “sentido da vida” e “pensar sobre o ano”.
Eu sei que a culpa também é minha. Que se eu fizesse esportes pensaria menos. Que se eu tomasse sol dormiria mais. Que de alguma forma me apeguei a essa necessidade de entendimento insuportável, um olhar de fora que me leva na coleira desde pequena, como se eu nunca tivesse sido menina, como se eu nunca pudesse apertar o stop. Mas quer saber? Sou feliz assim. Minhas comemorações são independentes e muitas vezes silenciosas, e todos os dias acordo querendo fazer tudo diferente. O ano que passou foi lindo, e continuará sendo por mais quatro dias inteiros. A eles e aos próximos, minha gratidão.
Porque acontece o seguinte. Esses problemas metafísicos, que já me dão a maior dor de cabeça — só que no peito — o ano todo, ainda fazem a gentileza de piorar muitíssimo quando chega dezembro. Meu HD não consegue se acostumar com esse reset obrigatório que vai do Natal ao Ano Novo de jeito nenhum, e, o que é pior, ainda tem a capacidade de se concentrar em tudo o que eu não dei continuidade no ano que chega ao fim, como se eu só me ativesse ao lado B da história.
O violão, por exemplo. Eu comecei a tocar pra fazer uma peça de teatro, mas parei com as aulas assim que a temporada acabou. Eu gostava de brincar de Nara Leão, eu fechava os olhos nos agudos, eu me vestia anos 60, eu me exibia no Instagram, era uma coisa que me fazia bem, mas cadê que eu continuei? Não continuei. E por quê? Porque não tinha mais um objetivo claro e determinado que justificasse tal esporte, olha que tristeza. O objetivo é o túmulo do samba.
O samba (e aqui vou perder 59 amigos do peito): minha grande questão com a folia de fevereiro é justamente o encerrar-se em si mesma. Eu sei que o legal é isso, mas, desculpa a sinceridade, só se você nasceu com esse superpoder. Tipo de fábrica. Quando eu era garota, até encontrava algum sentido em me fantasiar. Ia aos bailes do Clube Campestre, em Petrópolis, me vestia de colombina ou de Mulher-Maravilha, e tinha enorme prazer em deixar de ser eu, mas depois que fiz disso minha profissão... juro, não sou mais capaz. Atores são pierrôs profissionais (embora ser amador sempre me soe mais bonito). Resumindo: em 2017 me prometi ir ao Suvaco do Cristo e ao Bangalafumenga, mas quando eu vi já tinha sido, e eu não tinha ido.
Natal. Claro que, depois dos rebentos, a festa melhora muito, mas o meio do caminho, quando não se é mais criança mas também não se é mãe, olha, acho mais difícil que cuidar de Bonsai. Eu sei que muita gente não quer ter filho, e acho essa decisão admirável e corajosa, mas fico pensando em como seria atravessar esse Mar Vermelho com a água no pescoço sem ter aquela linha de chegada que é fazer os pequenos felizes. Filho é sentido garantido, e às vezes me pergunto se a maternidade e a paternidade não são mais um gesto de egoísmo do que de generosidade, já que muitos progenitores ainda cobram dos filhos o amor que lhes foi dado na infância ou na juventude, como se só o sentido recebido com a existência deles já não tivesse sido uma troca justa.
Todas essas palavras errantes pra dizer que apesar de viver atormentada 24 horas por dia com as perguntas “por que existe tudo e não o nada?” e “de onde viemos e pra onde vamos, e por quê?”, e de tudo isso ser elevado ao cubo em dezembro, eu finalmente fui arrebatada por uma enorme paz de espírito que certamente superará o sentido — ou a falta dele — do ano novo quando tomei a sábia decisão de viajar de carro pra Bahia. À la Guimarães Rosa, vou me entregar às benesses da travessia com toda a farofa a que tenho direito: três livros, Spotify premium, cinco sacolas gênias de supermercado, três barras de chocolate meio amargo com flor de sal e uma caixa de ansiolítico só pra saber que qualquer coisa ela tá ali.
Por que o fim do ano não é composto por dez domingos seguidos? E por que nesta época todo mundo tem que ficar num mood de vestir branco e fazer metas? Sim, porque de 24 a 2 ninguém toma nenhuma decisão importante — quer dizer, pode ser que o Gilmar Mendes queira liberar o Sérgio Cabral no dia 31 pra passar o ano novo em casa, mas fora isso, só os adventos da mãe-natureza, como chuvas ou tsunamis, desprezam o calendário vigente. Não há casamentos, nem separações, nem admissões, nem demissões, nem grandes cadernos nos jornais. Tem um pessoal que nasce e outro pessoal que morre, mas também é mais raro. De modo que, em nada disso ocorrendo, e você querendo chegar logo e sem dor ao dia primeiro do ano que vem, o segredo é escolher uma praia no litoral baiano e pegar a BR 116.
Parece que a estrada é péssima, mas que a vista é linda; que tem algum trânsito na saída do Rio mas que Vitória do Espírito Santo é uma beleza e vale o pernoite; que o tempo vai demorando mais a passar conforme a viagem avança, mas que as relações na estrada se estreitam de forma comovente, e que, a tudo isso se soma o calor típico do nosso verão, tornando a viagem uma aventura tão grande que certamente o réveillon se tornará menos importante no departamento “sentido da vida” e “pensar sobre o ano”.
Eu sei que a culpa também é minha. Que se eu fizesse esportes pensaria menos. Que se eu tomasse sol dormiria mais. Que de alguma forma me apeguei a essa necessidade de entendimento insuportável, um olhar de fora que me leva na coleira desde pequena, como se eu nunca tivesse sido menina, como se eu nunca pudesse apertar o stop. Mas quer saber? Sou feliz assim. Minhas comemorações são independentes e muitas vezes silenciosas, e todos os dias acordo querendo fazer tudo diferente. O ano que passou foi lindo, e continuará sendo por mais quatro dias inteiros. A eles e aos próximos, minha gratidão.
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