Francisco Daudt*
Ela só dura cerca de quatro anos, mas se não for correspondida pode nos assombrar por décadas
SEGUNDO OS evolucionistas, a paixão surgiu há poucas dezenas de milênios
em nossa espécie, selecionada como uma vantagem evolutiva, já que
permitia à mulher ter a ajuda de um homem para aumentar as chances de
sobrevivência de sua prole. Ficou em nós como um software inato, com um
prazo de validade de cerca de quatro anos (o bastante para que a cria
seguisse o grupo por suas próprias pernas).
Na savana africana, as mulheres raramente tinham mais que dois filhos,
com grande espaçamento, pois o aleitamento inibe a ovulação.
As mães morriam mais, os filhos mais ainda, o que manteve a população
humana estável até o surgimento da agricultura e pecuária (há 10 mil
anos), quando deu um pequeno salto, e até o começo do século 19, com a
descoberta dos germes, o saneamento básico, a tecnologia dos remédios e o
agronegócio, que resultaram nesta desgraceira procriativa de 7 bilhões
de pessoas a sugar o planeta.
Mas, se a paixão só dura quatro anos (correspondida, a não correspondida pode nos assombrar por décadas), o que vem depois dela?
São três as principais consequências: 1. Indiferença; 2. Sadomasoquismo; 3. Amor companheiro.
Indiferença: se de ambas as partes, há separação mais ou menos
tranquila. Se da parte da mulher, que quer se separar porque se
apaixonou por outro, ela corre um risco muito grande de ser assassinada
pelo abandonado. Ou de ser "stalked" ("perseguida", quem viu "Atração
Fatal" sabe o que é). Se da parte do homem, que se apaixonou por outra, o
assassinato é mais raro, o "stalking" mais comum, a vingança na Vara de
Família, mais comum ainda. É frequente que os filhos sejam usados como
munição de vingança.
Sadomasoquismo: os dois se sentem prisioneiros/carcereiros da situação, e
desenvolvem um jogo de maltrato, mais ou menos sutil -vai desde um
deles depreciando o outro em público até à lei Maria da Penha não
aplicada, pois sempre se reconciliam, e dão tempero ao sexo com a briga
(ou o sexo some, e só fica o maltrato). Desgraçadamente, bodas de prata
são mais comuns derivando do sadomasoquismo que do amor. É vício a dois,
mesmo.
Amor companheiro: o tipo de amor muda. É mais calmo, menos sujeito a
percalços. Eles têm projetos comuns e afinidades. Gostam de ser pais e
acompanharem juntos o crescimento dos filhos. Apreciam-se, desfrutam da
companhia do outro, têm assunto, mesmo sozinhos no restaurante.
As tentações (essas existirão sempre) são declinadas para não atrapalhar
o bem precioso que partilham. Tornam-se amigos que são prioridade na
vida um do outro. E amizade é algo que pode crescer sempre. Adoram a
ideia de envelhecerem juntos. Cultivam uma intimidade que parece
sobrepor-se à nossa inescapável solidão. Têm vida própria e zonas de
partilha; não se sentem obrigados ao grude.
Têm-me perguntado se, agora que eles se tornaram amigos, o desejo não
está fadado ao desaparecimento. Certamente, o sexo animal não vai mais
rolar. Mas o sexo derivado do carinho e do aconchego tem seu valor
especial, e só fará fortalecer a amizade.
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* COLUNISTA DA FOLHA
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