Partimos de uma constatação muito
simples já que, às vezes, é mais fácil raciocinar começando pelo final:
vivemos num mundo onde a produção se converteu num ato comum. Alguns de
nós, todavia têm em mente as análises de Foucault sobre a dupla pinça
que a industrialização impôs aos corpos e às mentes dos homens desde
finais do século XVIII. De um lado, a individualização, a separação, a
desobjetivação, o adestramento de cada indivíduo, reduzido à unidade
produtiva em forma de mônada, sem portas nem janelas, totalmente
desarticulado e rearticulado em função das exigências de rendimento e
maximização dos lucros; por outra, a construção em série dessas mônadas
produtivas, sua massificação, sua constituição em pessoas
indiferenciadas, seu caráter intercambiável, já que o cinza sempre
equivale ao cinza e um corpo adestrado vale por outro. Individualização,
serialização – eis aqui a bendita pinça do capitalismo industrial, a
maravilha de uma racionalidade política que não duvida em redobrar seu
procedimento de controle e gestão, em morder a carne desse indivíduo que
está formando a sua imagem e semelhança, em enquadrar àquelas pessoas
que inventa, para assegurar definitivamente seu poder sobre a vida e
explorar sua potencia. Ouvindo isso, alguns releem Vigiar e Punir.
Outros simplesmente têm em mente o ritmo
da cadeia produtiva, os braços exaustos, a impressão de não existir
mais, o corpo que se transforma em carne de cânon para produção em
série, a repetição sem fim, o isolamento, a fadiga. A impressão de haver
sido tragado por uma baleia e haver sido mastigado como tantos outros.
Tudo isso é certo. Tudo isso existe, todavia. Porém, vai existindo em menor medida. Desde seu início, Multitudes tem
tratado de dar conta dessa mutação, de descrever esta realidade – esta
“tendência” que atravessava a existência e escavava dentro da íntima
consistência – de analisar as consequências. Essa mutação tocou, ao
mesmo tempo, as condições da exploração, as relações de poder, o
paradigma do trabalho, a produção de valor. Essa transformação também
investiu sobre as possibilidades de resistência porque essa
transformação, paradoxalmente, também reabriu e multiplicou suas
possibilidades.
Um dos pontos mais difíceis e polêmicos
para os que, hoje, se mantém no velho modelo da produção em série, na
figura da fábrica e da história da resistência da classe operária, é
pensar o que um novo modo de exploração – mais forte, mais eficaz, mais
extenso – pode acrescentar à possibilidade de agitação e de sabotagem,
de rebelião e de liberdade. Para nós, dizer que o modelo de produção (e,
portanto, de exploração) mudou, dizer que é necessário deixar de pensar
na fábrica como a única matriz de produção e de agitação operária, é
também pensar numa maior resistência. Quando falamos de “novo
capitalismo”, de capitalismo cognitivo, de trabalho imaterial, de
cooperação social, de circulação do saber, de inteligência coletiva,
tentamos descrever, ao mesmo tempo, a existência de um novo saqueio
capitalista da vida, seu investimento não só na fábrica, mas em toda a
sociedade, mas também a generalização do espaço da luta, a transformação
do lugar de resistência e da figura da metrópole como lugar de
produção, convertida hoje no espaço de resistências possíveis. Nós
dizemos que hoje o capitalismo não pode se permitir desobjetivar –
individualizar, serializar – as pessoas, não pode triturar a carne para
fazer dela um golem de duas cabeças (o “indivíduo” como unidade
produtiva, as “pessoas” como objeto de gestão massificada). O
capitalismo não pode se permitir isso porque o que produz valor
atualmente é a produção comum da subjetividade. Quando nós dizemos que a
produção é comum não negamos que existem fábricas, corpos destroçados e
trabalho em cadeia. Afirmamos que o princípio mesmo da produção, seu
centro de gravidade, se deslocou; que a criação de valor, hoje, consiste
em por em rede a subjetividade e capturar, desviar, se apropriar da
atividade comum. O capitalismo necessita da subjetividade, é
parasitário. Portanto, está encadeado àquilo que, paradoxalmente, o põe
em perigo: porque a resistência, a afirmação de liberdade, é
precisamente fazer valer a potencia de invenção subjetiva, sua
multiplicidade singular, sua capacidade de produzir o comum a partir das
diferenças. Os corpos e os cérebros têm passado de carne de cânon a
armas contra o capitalismo. Sem o comum, o capitalismo já não pode
existir. Com o comum a possibilidade de conflito, de resistência e de
reapropriação se incrementam infinitamente. Formidável paradoxo de uma
época que por fim conseguiu se livrar dos ornamentos da modernidade.
Do ponto de vista do que pode se chamar a
“composição técnica” do trabalho, a produção tem se tornado comum. Do
ponto de vista de sua “composição política”, se necessitaria então que a
essa produção comum se correspondessem novas categorias
jurídico-políticas, capazes de organizar esse “comum”, para expressar
sua centralidade, para descrever suas novas instituições e seu
funcionamento interno. Atualmente essas novas categorias são
insuficientes. De fato, disfarçamos as novas exigências do comum,
continuamos pensando-as em termo obsoletos – como se o lugar de produção
fosse, todavia a fábrica, como se os corpos estivessem encadeados, como
se não houvesse escolha entre estar sós (indivíduo, cidadão, mônada
produtiva, número de cela numa prisão ou trabalhador em cadeia, pinóquio
solitário no ventre da baleia) e ser indistintamente massificado
(população, povo, nação, força de trabalho, raça, carne de cânon pela
pátria, tigela digestiva no ventre da baleia) – , de fato, portanto,
continuamos atuando como se nada houvesse ocorrido, como se nada
houvesse mudado: essa é a mais perversa capacidade de mistificação do
poder. Devemos abrir o ventre da baleia, devemos derrotar Moby Dick.
Essa mistificação repousa em particular
sobre a proposição quase permanente de dois termos, que funcionam como
outros tantos enganos, mas, ao mesmo tempo, correspondem a duas maneiras
de se apropriar do comum. A primeira é o recurso à categoria do
“privado”; a segunda, o recurso à categoria de “público”. No primeiro
caso, a propriedade – Rousseau diz: e o primeiro homem que disse “isso é
meu”… – é uma apropriação do comum por parte de um só, ou seja, a
expropriação de todos os demais. Hoje, a propriedade privada consiste
propriamente em negar aos homens seu direito comum sobre o que só sua
cooperação é capaz de produzir. A segunda categoria, ao contrário, é a
de público. O bom Rousseau, que era tão duro com a propriedade privada,
que, com razão, a considerava a fonte de todas as corrupções e
sofrimentos humanos, cai imediatamente na armadilha. O problema do
contrato social – o problema da democracia moderna é porque a
propriedade privada gera desigualdade, como se poderá inventar um
sistema político onde tudo, pertencendo a todos, não pertença a nenhum. A
armadilha se fecha sobre Rousseau – e sobre todos nós ao mesmo tempo.
Isso é, portanto, o público: o que pertence a todos, porém a nenhum, ou
seja, o que pertence ao Estado. E, uma vez que o Estado deveria ser nós,
então se necessita inventar algo para render a manumissão do comum,
fazendo-nos crer, por exemplo, que nos representa e se o Estado se
apropria dos direitos sobre o que nós produzimos é porque o “nós” que
somos não é o que produzimos em comum, que criamos e organizamos como
comum, mas aquilo que nos permite existir. O comum nos diz o Estado, não
nos pertence, porque na realidade não o criamos. O comum é nosso solo,
nosso fundamento, o que nós temos sob os pés: nossa natureza, nossa identidade.
E se isso não nos pertence – ser não é ter – a manumissão do Estado
sobre o comum não se chama apropriação, mas gestão (econômica),
delegação e representação (política). CVD: implacável beleza do
pragmatismo público.
A natureza e a identidade são as
mistificações do paradigma moderno do poder. Para nos reapropriar de
nosso comum, é necessário antes de tudo, produzir uma crítica radical.
Nós não somos nada e não queremos ser nada. “Nós” não é uma posição ou
uma essência, uma “coisa” que é fácil declarar pública. Nosso comum não é
nosso fundamento, é nossa produção, nossa invenção continuamente
renovada. “Nós” é o nome de um horizonte, o nome de um devir. O comum
está diante de nós, sempre, é um progresso. Nós somos este comum: fazer,
produzir, participar, mover-se, dividir, circular, enriquecer,
inventar, relançar.
"Na atualidade, a metrópole se converteu
em
tecido produtivo generalizado: é onde se
dá e se organiza a produção
comum, é onde
a acumulação do comum se realiza."
Todavia nós seguimos pensando, depois de
quase três séculos, a democracia como a administração da coisa pública,
ou seja, como o instituto da apropriação estatal do comum. Hoje, a
democracia já não pode ser pensada senão em termos radicalmente
diferentes: como gestão comum do comum. Essa gestão implica, por sua
vez, uma redefinição do espaço – cosmopolita; e uma redefinição da
temporalidade – constituinte. Não se trata de definir uma forma de
contrato que faça que tudo, sendo de todos, não pertença a nenhum. Não, tudo, sendo produzido por todos, pertence a todos.
No dossiê que alguns temos proposto na “maggiore” desse número de Multitudes (a
partir das experiências levadas a cabo há anos e a partir também da
constatação de que essas experiências estão agora se generalizando), nós
tentamos tornar visível esse comum, fazer recontagem das estratégias de
reapropriação do comum. Na atualidade, a metrópole se converteu em
tecido produtivo generalizado: é onde se dá e se organiza a produção
comum, é onde a acumulação do comum se realiza. A apropriação violenta
dessa acumulação se faz, todavia, a título privado ou público – e o que
se chama “a renda” do espaço metropolitano é agora um enjeu econômico
importante e é sobre esse ponto que as estratégias de controle se
cristalizam – mas nós não queremos entrar aqui nas análises da relação
dessa renda com o lucro nem tampouco na da “externalidade produtiva”…
é-nos suficiente, por enquanto, fixar o fato de que a apropriação
privada é, com frequência, garantida e legitimada pela apropriação
pública, e vice-versa.
Retomar o comum, reconquistar não já uma
coisa, mas um processo constituinte significa também o espaço em que
isso se desenvolve: o espaço da metrópole. Traçar diagonais dentro do
espaço retilíneo do controle: opor as diagonais aos diagramas, os
interstícios às quadrillages, os movimentos às posições, os
devires às identidades, as multiplicidades culturais sem fim às
naturezas simples, os artifícios às demandas de origem. Num belo livro,
faz alguns anos, Jean Starobinski falou do século das Luzes como de um
tempo que havia visto “a invenção da liberdade”. Se a democracia moderna
foi a invenção da liberdade, a democracia radical, hoje, quer ser a
invenção do comum.
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Fonte: Artigo publicado no blog Lobo Suelto, em 31/03/2012. Tradução: Boca do Mangue
IHU on lie, 04.04/2012
Imagem da Internet
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