“Jamais alguém igualou a prosa de Sérgio Buarque”

 ENTREVISTA: JURANDIR MALERBA

Convidado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Daad, na sigla em alemão) e pela Universidade Livre de Berlim, o professor de História da PUCRS e colaborador de Zero Hora Jurandir Malerba será o primeiro a ocupar, a partir deste mês, a recém-criada Cátedra Sérgio Buarque de Holanda de Estudos Brasileiros. A missão, voltada para o estreitamento das relações entre os dois países no Ano do Brasil na Alemanha, será cumprida ao longo de um ano. Na próxima sexta-feira, ele profere aula inaugural.

Aos 47 anos, Malerba, paulista de Bela Vista do Paraíso, é autor, entre outros, de A Corte no Exílio (Companhia das Letras, 2000), Prêmio Jabuti de Livro de História em 2001. Desde 2008, ele é professor da PUCRS, onde desenvolve atividades junto aos cursos de graduação e pós-graduação em História. A seguir, uma síntese de entrevista concedida por Malerba no dia 20, antes de embarcar para a Alemanha, na qual ele fala de seu trabalho e da contribuição de Sérgio Buarque para o pensamento brasileiro:

Zero Hora – O que é a Cátedra Sérgio Buarque de Holanda da Universidade Livre de Berlim?

Jurandir Malerba – É uma iniciativa do governo alemão para promover a expansão dos estudos sobre Brasil naquele país. Esse movimento se dá em várias frentes – nas carteiras de comércio, nas relações de política estatal e, neste caso, no âmbito acadêmico. Trata-se de uma parceria do governo alemão, por meio do Daad, sua principal agência oficial de fomento à pesquisa, e a Universidade Livre de Berlim. O projeto prevê o desenvolvimento de estudos e pesquisas e a capacitação de estudantes alemães, particularmente no âmbito da pós-graduação dentro da grande área de ciências humanas. Entre as estratégias, estabeleceu-se a participação de acadêmicos seniores nas atividades do LAI (Instituto América Latina, na sigla em alemão), como professores visitantes, um por ano durante os próximos cinco anos.

 Enviado como correspondente à Alemanha pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand,

 Sérgio Buarque permaneceu dois anos no país e testemunhou o crepúsculo da República de Weimar e a ascensão do nazismo

ZH – Que tipo de trabalho o senhor pretende desenvolver durante sua estada na Alemanha?

Malerba – A expectativa de meus anfitriões é a de que, basicamente, eu desenvolva atividades de docência e orientação no âmbito da pós-graduação. Até onde tenho notícia, há no LAI quase duas dezenas de mestrandos e doutorandos desenvolvendo pesquisas sobre Brasil, nos mais diversos campos disciplinares (história, sociologia, literatura). Mas a maior parte de meu tempo será dedicada às atividades docentes. Em dois semestres, ministrarei oito disciplinas, entre seminários de pesquisa e seminários de história e cultura brasileira. A par disso, claro, pretendo explorar a magnífica biblioteca da universidade para estudar alguns tópicos de pesquisa sobre a prosa ensaística na historiografia brasileira.

ZH – Sérgio Buarque sofreu influência da escola de sociologia do alemão Max Weber e tinha laços pessoais com a Alemanha. Sua obra, porém, esteve durante muito tempo relegada a segundo plano nos estudos brasileiros. Qual é a atualidade dessa obra?

Malerba – É bem conhecida a influência determinante que teve a cultura alemã na formação de Sérgio. Seu modo de compreender e praticar a história foram profundamente marcados por sua passagem por Berlim, nos anos decisivos de 1929-1930. Viajando como correspondente dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, lá viveu a experiência da República de Weimar, rica do ângulo político e mais ainda como explosão de criatividade, fundamental em sua formação. Como magistralmente escreveu Francisco Iglesias, da Alemanha Sérgio voltará outro. Sobre o segundo ponto de sua questão, de fato, ainda nos anos 1980, pela época de minha graduação, havia por parte de boa porção de meus professores uma espécie de interdição velada à obra de Sérgio Buarque. O velho historiador paulista era simplesmente desqualificado como “liberal”, “de direita”, “weberiano”, “burguês”, “positivista”, “conservador”, “reacionário” até – sua suposta “alienação” manifesta em seu interesse por aspectos do cotidiano, não pelas análises grandiloquentes das estruturas e superestruturas que tanto fascinavam os marxistas da vulgata. Praticamente só se podia ler autores marxistas. Por causa disso, meu contato com a obra de Sérgio foi tardio. Não é preciso ser nenhum observador muito erudito ou atento para se notar o que ocorreu para Sérgio ter saído do limbo e voltado à moda. A chegada e difusão de algumas perspectivas e tópicos de pesquisa ao Brasil desde o começo dos anos 1990, de verve indisfarçavelmente francesa (mas também inglesa), como mentalidades, privacidade, cotidiano, a perspectiva dos “debaixo”, da história das pessoas comuns, abriu campo para o resgate da obra de Sérgio – que, de resto, nunca fora totalmente ofuscada.

ZH – Em 13 de abril, o senhor proferirá uma aula magna na Universidade Livre de Berlim. Qual será o tema?

Malerba – Vou abordar justamente a atualidade do pensamento desse grande historiador e crítico literário que foi Sérgio Buarque em duas perspectivas diversas. A primeira, mais óbvia, a partir da proposta de entendimento da sociedade brasileira – em chave histórica – que ele propôs com Raízes do Brasil (1936). Segundo Sérgio, lá pela década de 1930, quando escreveu, perseverariam intactas as tensões entre as formas de sociabilidade, originadas no seio da família patriarcal e marcadas pela cordialidade – essa nossa “herança rural” –, e as novas formas próprias da vida citadina, do mundo moderno, caracterizadas pela impessoalidade nas relações e pela definitiva separação das esferas pública e privada. Seu diagnóstico era o de que, embora uma mudança germinal tivesse sido anunciada pela vinda da corte portuguesa para o Brasil e, principalmente, pela abolição da escravidão, aquelas formas arcaicas, personalistas, ainda permeariam as relações sociais no Brasil, de modo a travar otimistas projetos de reforma. Uma revolução nos costumes, enterrando o passado ibérico, colonial e rural, seria o caminho da “nossa revolução”. É uma das mais brilhantes e influentes radiografias do caráter nacional brasileiro. Alguns autores atuais, como o cientista político Jessé Souza, têm afirmado que os conceitos que estruturam o pensamento de Sérgio Buarque tornaram-se obsoletos para se entender um Brasil que, modernizado, já não é o mesmo da época do aparecimento de Raízes. É questão justamente pertinente, mas creio que a crítica pode ser ao menos atenuada. Se, de fato, o Brasil se modernizou, em muitas frentes, na esfera civil das relações econômicas e mesmo em alguns setores da administração pública, acredito que valores e mentalidades demoram mais para se transformar. Como provocação, afirmo que um grosso lastro de cordialidade, da prevalência, do personalismo, do clientelismo, do favor, ainda permeia as relações sociais no Brasil, tanto na esfera privada como na pública. A segunda perspectiva pela qual vou propor a “atualidade de Sérgio Buarque de Holanda” relaciona-se ao modo como praticou – genialmente – o ofício de historiador. Pesquisador metódico, de raciocínio agudo, jamais alguém entre nós igualou a qualidade da prosa de Sérgio e a extensão de sua erudição.

ZH – Que tipo de repercussão sua estada na Alemanha pode ter para a universidade brasileira?

Malerba – A Cátedra terá boa repercussão. Há um tráfico intenso de pesquisadores para lá e para cá, e essa iniciativa tende a aumentá-lo e a dar-lhe visibilidade. E, quem sabe, também chacoalhar um pouco certo “complexo de centralidade” manifesto por alguma parte da intelectualidade do eixo São Paulo-Rio. Afinal, foi um um professor da PUCRS, entre tantos acadêmicos das diversas áreas, de quantas universidades prestigiosas do Brasil, a quem se distinguiu convidar a inaugurar a Cátedra.
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Reportagem por LUIZ ANTÔNIO ARAUJO.  PROFESSOR DA PUCRS E CATEDRÁTICO CONVIDADO DA UNIVERSIDADE LIVRE DE BERLIMluiz.araujo@zerohora.com.br

Fonte: ZH on line, 07/04/2012