João Pereira Coutinho*
Uma das formas de lidar com a mancha europeia do Holocausto é inverter os papéis dos personagens
TODAS AS famílias têm seus motivos de vergonha: infidelidades, burlas,
crimes. A família europeia tem uma vergonha maior. Chama-se Holocausto. E
não é fácil engolir a matança maquinal e sistemática de milhões de
seres humanos, na sua maioria judeus (porque a "solução final", convém
lembrar aos amnésicos, intitulava-se "solução final para a questão
judaica"), sem risco de indigestão grave.
O Holocausto é uma mancha que não sai da consciência europeia. E uma das
formas de lidar com ela é invertendo os papéis dos personagens,
transformando as vítimas em carrascos.
Nos últimos anos, essa metamorfose tem sido praticada com fervor pela
"intelligentsia" ocidental: os judeus de hoje não são muito diferentes
dos nazistas de ontem; Gaza é um novo gueto de Varsóvia; e Israel é uma
espécie de Terceiro Reich no Oriente Médio.
A Europa acredita que, através dessa inversão anacrônica, a culpa do
crime irá desaparecer. E chegará um dia em que os europeus poderão
afirmar, de cabeça limpa e sem vergonha da sua imagem no espelho: "Eles,
os judeus, não são melhores do que nós".
Eis, em resumo, o poema que Günter Grass escreveu na imprensa alemã e que levou Israel a declará-lo "persona non grata".
Superficialmente, o poema de Grass é apenas mais uma acusação à política
de Tel Aviv, ao seu programa nuclear e às suas alegadas intenções de
atacar o Irã. Curiosamente, as ameaças diretas do Irã a Israel, que na
verdade começaram as hostilidades, não figuram na obra literária de
Grass.
E não figuram porque Grass é um caso à parte: aos 17 anos, o escritor
marchou com as Waffen-SS, a tropa de elite de Hitler, e serviu ao
Terceiro Reich nos seus momentos finais.
Um segredo tão "vergonhoso" que o próprio só recentemente decidiu
partilhá-lo com os leitores da sua autobiografia, "Descascando a
Cebola".
Infelizmente, esse pecadilho de juventude, escondido a vida inteira,
ainda não está ultrapassado. E só isso explica que, algures no poema,
Grass se permita sentenciar que Israel é hoje a maior ameaça à paz
mundial.
A frase, que poderia ter sido dita por Mahmoud Ahmadinejad ou qualquer
outro antissemita do gênero, não deveria merecer grande comentário. Mas,
por uma vez sem exemplo, será que Grass tem razão?
A resposta a essa pergunta poderia ser dada por um compatriota do
escritor. Em 2005, o cientista político Josef Joffe escreveu para a
revista "Foreign Policy" um ensaio célebre em que imaginava a história
do Oriente Médio sem a existência de Israel no mapa. "Um mundo sem
Israel", lia-se na capa.
E, no interior, esse mundo não era muito diferente do mundo que existe
hoje. Sunitas e xiitas não seriam menos inimigos; os cristãos da Síria,
do Egito ou do Iraque não estariam a ser menos perseguidos; a Arábia
Saudita não teria melhores relações com os aiatolás de Teerã; Saddam não
teria poupado a vida de curdos ou xiitas ou kuwaitianos; a guerra entre
o Iraque e o Irã, o mais longo conflito do século 20, não teria sido
evitada.
E, sobre o destino dos palestinos, a luta de "libertação" seria
provavelmente dirigida contra o Egito e a Jordânia, caso esses dois
países ainda dominassem Gaza e a Cisjordânia como o fizeram até 1967.
Por outras palavras: o fracasso político, econômico e cultural do
Oriente Médio, esse oceano de 1 bilhão de muçulmanos, não se explica com
uma gota de 5 milhões de judeus. Explica-se pelo autoritarismo, pela
ignorância e pelo fanatismo dos seus líderes.
Günter Grass discorda. E, no seu poema-manifesto, limita-se a coligir os
velhos temas do antissemitismo clássico: os judeus manipulam o mundo e,
na sua ânsia de o dominarem, acabarão por destruí-lo. O seu líder de
juventude, Adolf Hitler, não diria melhor.
Um mérito, porém, devemos reconhecer a Grass: o seu poema foi publicado
nas vésperas do Pessach, um período que, durante a Idade Média e mesmo
depois, servia para acusar os judeus de usarem o sangue dos gentios na
feitura do pão da Páscoa. Era o pretexto ideal para as perseguições
antijudaicas.
Günter Grass não é tão primitivo como os antecessores. Mas o seu sentido de "timing" é digno de um Fred Astaire.
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* Colunista da Folha
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