Entrevista ao Cardeal Gianfranco Ravasi
«O crente é sinal de contradição. A cultura
contemporânea, modelada pela comunicação de massas, visa a
homogeneização do pensamento. Quem quer que represente uma exceção, é
considerado extravagante. Cabe-nos a nós, juntamente com outros, cumprir
uma tarefa essencial e difícil: buscar o verdadeiro, o bem; reconhecer
o falso, o mal.»
Em entrevista ao jornal "La Croix", o presidente
do Conselho Pontifício da Cultura, cardeal Gianfranco Ravasi explica os
objetivos do "Átrio dos Gentios", plataforma para o diálogo entre
crentes e não crentes que a 16 e 17 de novembro chegará pela primeira
vez a Portugal. «O grande desafio - sublinha o responsável italiano -
não é o ateísmo, mas a indiferença.»
É necessário à Igreja este diálogo com os não crentes?
A Igreja não se pode conceber como uma ilha
desligada do mundo. Ela está no mundo. O diálogo é, portanto, para ela
uma questão de princípio. O que se tem constatado é que nas nossas
sociedades, ciosas da sua secularização, não deixaram de emergir as
perguntas fundamentais. Testemunha-o o interesse pelo sagrado, a New Age,
ou ainda o sobrenatural e a magia... Para responder a esta urgência,
os grandes modelos culturais e religiosos apresentam-se com
legitimidade. De resto, queremos dizer à sociedade contemporânea que a
Fé e a Teologia estão entre os grandes vetores de conhecimento e de
cultura, que têm um estatuto e uma dignidade próprios. Este diálogo
deve acontecer ao mais alto nível, sem relegar os crentes para o
paleolítico da história. Estamos conscientes de que o grande desafio não
é o ateísmo, mas a indiferença, que é muito mais perigosa. Certamente,
existe o ateísmo irónico de Michel Onfray, mas a indiferença pode ser
representada por esta anedota: “Se Deus descesse hoje à terra e caminhasse pelas nossas estradas, ser-lhe-iam pedidos os documentos”.
Mas o átrio dos Gentios não é um lugar de Evangelização?
Certamente que não. Somos como Paulo diante do
Areópago de Atenas. Dizemos aquilo em que acreditamos diante daqueles
que não acreditam, e que nós também escutamos. Mesmo se temos
consciência do facto de que todas as grandes propostas culturais e
religiosas não são só informativas, mas também “performativas”: abrem
para uma ação. Basta ler Dostoievski, Pascal, Dante, Nietzsche...
Em concreto, o que é que a Igreja pretende dizer aos não-crentes?
Retomo a distinção proposta pelo teólogo
protestante alemão Dietrich Bonhoeffer, entre “realidades penúltimas” e
“realidades últimas”. O cristianismo é, por natureza, uma religião
incarnada, cuja mensagem é fundada sobre uma realidade histórica. A
incarnação chama-o a agir na sociedade, quer se trate através do
diálogo com o universo político ou da mobilização pela justiça e pela
solidariedade. Mas nós não constituímos apenas uma ONG (Organização
não-governamental). O nosso dever é aquele de um discurso sobre as
“realidades últimas”. Com isto não entendo apenas Deus, a Palavra, a
transcendência, mas também, e é o programa do átrio dos Gentios, os
grandes problemas existenciais: a vida, o amor, a morte...
Nestes âmbitos, a Igreja afirma ter a Verdade. Uma afirmação fraturante nestes tempos assinalados pela indiferença.
É um grande problema. Para os cristãos, de facto, a
Verdade precede-nos, na pessoa de Cristo. Enquanto que aos olhos da
cultura contemporânea cada um de nós a constrói. Desta diferença
derivam conceções diferentes de bem e de mal, de liberdade ou de
justiça. Sabemos bem que hoje, dado que facilmente a verdade varia
segundo o contexto, cada um pode elaborar a própria verdade. Um autor
pôde dizer: “A verdade não vos tornará livres”. Pelo contrário, Robert Musil afirmava: “A verdade não é uma pedra preciosa que se traz no bolso, mas um mar no qual mergulhamos para nadar”.
Pensamos que seja urgente evocar a Verdade. Será que nos podemos
conformar com uma sociedade formada só de comportamentos
individualistas, distantes das grandes normas comuns reconhecidas? Para
um cristão, a liberdade é orientada, ordenada a uma finalidade, não o
“deixa andar” contemporâneo, que se limita a considerar a liberdade do
vizinho.
Trata-se de unir Fé e Razão?
Por um lado constata-se um excesso de
racionalismo, mas assiste-se também ao ressurgir de manifestações de
irracionalidade, de sentimentalismo. Neste contexto, é necessário
reivindicar a necessária autonomia da Fé e da Razão; é necessário
recordar que, sendo o homem uno, a Fé e a Razão devem dialogar dentro
dele.
Sobre estes temas, não se corre o risco de ficar a falar sozinhos?
É verdade que somos uma minoria. Mas a nossa
visão tem de ser desafiadora, como a poeira na engrenagem ou a pedra no
sapato. Se a multidão se orienta num certo sentido, deveremos nós
simplesmente segui-la?
Mas estaremos dispostos a constituir uma contracultura?
O crente é sinal de contradição. A cultura
contemporânea, modelada pela comunicação de massas, visa a
homogeneização do pensamento. Quem quer que represente uma exceção, é
considerado extravagante. Cabe-nos a nós, juntamente com outros, cumprir
uma tarefa essencial e difícil: buscar o verdadeiro, o bem; reconhecer
o falso, o mal.
Que frutos espera destes encontros do Átrio dos Gentios?
Queremos lançar uma pedra no charco, estimular a
reflexão e o diálogo, e ver depois o que acontece. Durante a nossa
primeira sessão, na Universidade de Bolonha, ficamos completamente
surpreendidos. Dos quatro relatores que fizeram a apresentação (um
cientista, um jurista, um filósofo e um escritor), dois eram crentes e
dois não. Participaram duas mil pessoas, discutiram, escutaram leituras
de Nietzsche, Pascal, Santo Agostinho. E tudo isto se passou num
inacreditável silêncio, com grande respeito recíproco e uma
elevadíssima atenção. Depois de Paris, iremos a Estocolmo, sob a égide
do luteranismo de Estado, depois a Tirana e a Praga, importantes
centros do ateísmo de Estado.
Esta entrevista integra o número 17 do "Observatório da Cultura" (abril 2012), cujos textos serão gradualmente disponibilizados.
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In La Croix, 24.03.2011
Fonte: http://www.snpcultura.org/12/04/2012
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