RUTH DE AQUINO*
A Semana Santa, para os católicos militantes, é tempo de confissão dos
pecados. O ainda senador Demóstenes Torres, demônio em pessoa para seus
amigos traídos, é formado em Direito na Pontifícia Universidade Católica
de Goiás. Não sabemos como será a Páscoa de Demóstenes.
Se usará esse tempo como um período de contrição. Se pedirá perdão ao
padre e a quem acreditou nele. Se recordará a infância na cidade de
Anicuns, maldizendo o momento em que caiu em tentação e virou o símbolo
maior da hipocrisia política no Brasil. Se continuará a se sentir vítima
de um prejulgamento do DEM, partido do qual se afastou para não ser
expulso. Se dormirá o sono tranquilo dos que têm foro privilegiado. Se
sonhará com a ressurreição num país sem memória que reabilita Renans e
Collors. Um país que adia perigosamente o julgamento do mensalão.
Escândalos morais no Senado e na Câmara indignam os brasileiros, que se
sentem reféns de um esquema grotesco de corrupção. Mas esse caso
envolveu um intocável. Dá azia, um certo asco. É quase como se o
secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame,
exemplo de pacificador incorruptível, fosse flagrado recebendo propina
de um chefe do tráfico. Impensável. Por isso Beltrame resiste a entrar
para a política.
O Lula sincero, antes de ser contaminado pelo poder, afirmou que havia
“pelo menos 300 picaretas no Congresso”. Depois, presidente eleito com a
bandeira da ética, nivelou-se por baixo e passou a fazer “o que todo
mundo faz”.
Nas últimas semanas, escutamos e lemos detalhes de conversas entre o
“doutor” Demóstenes e o “professor” Cachoeira, gravadas pela Polícia
Federal. É sabido que os senadores têm pena de si mesmos, por ganhar
apenas R$ 19 mil por mês, fora as mordomias. Nada mais lógico, portanto,
que um senador receba de um contraventor eletrodomésticos, passagens e
uns milhões de reais. Nada mais deprimente. Ganhar de um bandido um
fogão e uma geladeira importados?
O goiano não era conhecido pela massa do eleitorado (“Demóstenes
quem?”). No meio político, era o paladino da ética, relator da Lei da
Ficha Limpa. Suas frases de efeito resgatavam a luta pela moralidade.
“Os políticos estão perdendo a vergonha na cara. A imagem do Senado,
hoje, é a de um pau de galinheiro” – sobre Renan Calheiros. “Vai ser a
CPI do Zé Mané: investiga o Zé Mané e esquece as autoridades” – sobre a
CPI do cartão corporativo. “Defendo sempre a expulsão sumária” – sobre
as denúncias contra o então governador do Distrito Federal, José Roberto
Arruda, do DEM.
Agora, o Zé Mané faz uma força danada para acompanhar a novela de
Demóstenes. O senador, isolado, se torce todo para evitar o fogo da
Inquisição. No início de março, 44 dos 81 senadores defenderam
Demóstenes das acusações de lobista de Cachoeira. Pouco a pouco, os
amigos tiraram o corpo fora das labaredas. Entre as opções de futuro de
Demóstenes – renúncia, licença, julgamento pelo Conselho de Ética –,
talvez prefira ser julgado. O senador sabe bem quem estará do outro
lado.
Ninguém quer assumir a presidência do Conselho de Ética, acéfalo desde
setembro do ano passado. O senador Lobão Filho, do PMDB do Maranhão, foi
franco: “Essa missão de julgar os pares é muito espinhosa. Me deixa
fora dessa”. Quem comandará o processo será o presidente do Senado, José
Sarney, que andou ausente. A Semana Santa está aí, e Brasília vazia, em
clima de pré-feriado. Deve existir uma explicação para Demóstenes cair
em desgraça agora e não em 2009, quando já havia um relatório que o
incriminava.
A hipocrisia não é um privilégio do atual réu. Em alguma medida, somos
todos hipócritas. Diz o psicanalista Francisco Daudt: “A hipocrisia é
essencial ao convívio social. Você não diz a uma mãe que o bebê dela é
feio”. Daudt lembra ter ouvido de um entrevistado na televisão
americana: “Não dou para ser casado ou político, não aguentaria ficar
mentindo o dia inteiro”.
O que é preciso distinguir, segundo Daudt, é a mentira inócua, que
funciona como “um lubrificante social”, da hipocrisia danosa. “Os
exagerados dão uma pista das mentiras”, diz Daudt. “O falso moralismo
cria suspeitas. Lembra nosso caçador de marajás? O pior é que às vezes
eles acreditam tanto em suas mentiras que acabam criando personagens
inexistentes.”
Demóstenes tem em seu gabinete várias ampliações de charges suas.
Mostram “o herói Demóstenes”. Ele acreditava nisso. Era uma espécie de
ícone da nova direita e dos jovens do DEM. Dificilmente aproveitará a
Sexta-feira da Paixão para rezar e pedir perdão. Ele sabe que será
perdoado. Em 188 anos de Senado, apenas um senador foi cassado pela
Casa. E não foi por propina ou tráfico de influência. Foi por mentir a
seus pares. Isso é pecado mortal.
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* Colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/04/04/2012
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