Gaudêncio Torquato*
O homem e seu ocaso. Essa é uma figura recorrente na
obra de Nietzsche, como se pode ler em Assim Falou Zaratustra. Sentado,
rodeado de velhas tábuas partidas, sob os últimos raios no poente, o
velho profeta, cansado de longa peregrinação, tal como o Sol, aguarda a
despedida. Abençoando a si mesmo, de olhos fechados, como alguém que
dorme, se bem que não dormisse, Zaratustra pensava no que poderia dizer
naqueles instantes finais: "Agora eu morro e me extingo, e num relance
não serei mais nada; as almas são tão mortais quanto os corpos".
Sopesando as causas que o destruíam, confortava-se com a sensação de que
o mesmo fogo que o queimava haveria de lhe dar vida, eis que dele
brotaria a chama do eterno retorno.
A imagem do ocaso, na perspectiva de reviver a vida anterior, cai bem
neste momento em que um senador da República se aproxima do poente,
depois de emergir, brilhante, ao sol do meio-dia e despontar como às da
veemência política. O senador goiano Demóstenes Torres, cuja carreira
anterior no Ministério Público lhe conferiu a identidade de força moral,
é mais um exemplo a constar na galeria que se expande a cada
legislatura: a dos perfis solúveis, que se dissolvem quando imersos nas
águas impuras da representação parlamentar.
Cabe lembrar que o senador ainda não foi julgado, aguardando-se,
portanto, suas explicações quanto à suspeição que recai sobre o mandato,
com base nos flagrantes de intermediação de negócios captados pela
Polícia Federal em telefonemas. Feita a ressalva, pode-se entender que o
caso Demóstenes abre desde já um leque de hipóteses, sendo a primeira a
de que é cada vez mais movediço o terreno dos caminhantes políticos.
Torna-se patente que nos últimos anos os organismos de controle da
sociedade, a partir do Ministério Público, começaram a focar uma lupa
apurada para enxergar desvios e ilícitos cometidos por representantes e
governantes. Cerca de 150 parlamentares se submetem a processos no
Supremo Tribunal Federal (STF). Um passo avançado em nossa régua
civilizatória. No mesmo compasso de vigilância cívica, os próprios
organismos de controle ético das Casas congressuais, agora sob o olhar
atento da sociedade organizada, começaram a acolher com mais vontade os
casos conflituosos que lá chegam, resultando até em pedidos de cassação
de mandato. E mais: um em cada três integrantes dos Conselhos de Ética
da Câmara e do Senado está sob investigação no STF.
Portanto, o sentimento de punição na esfera política começa a ganhar
corpo no meio social. Os perfis intocáveis dos atores se esboroam na
corrente que inunda os espaços da política, cujos sinais se distinguem
no arrefecimento das ideologias, na pasteurização partidária, no
declínio dos Parlamentos, no desvanecimento das oposições e nos novos
circuitos da representação: associações, sindicatos, federações, grupos
de opinião, setores organizados. A multipolaridade da ação política
fragiliza a força da representação parlamentar, tornando seus costados
mais franqueados ao discurso crítico. A perda de prestígio do político
tradicional é visível. A banalização de escândalos e denúncias contribui
para esfacelar a imagem do representante. Demóstenes Torres, desse
modo, apresenta-se como mais um elo da cadeia que puxa figurantes como o
ex-presidente Fernando Collor, o ex-governador do Distrito Federal José
Roberto Arruda e o volumoso conjunto denunciado no processo do
mensalão, em julgamento no STF.
Outra abordagem que se pode extrair do affaire Demóstenes aponta para
a fragilização do discurso oposicionista. Caindo o atirador de plantão
das oposições, como era conhecido o ex-líder do DEM, o tiroteio contra o
situacionismo perde intensidade. E a própria qualidade do discurso
oposicionista remanescente é afetada. Pois os pares, alguns do
situacionismo, que lhe prestaram solidariedade tendem a se fechar em
copas. Os mais aguerridos devem guardar um prazo de quarentena até
conseguirem recompor a postura de altivez.
Já os democratas, mesmo ante a imperiosa vontade de se livrarem de
seu convívio, caso o senador não se antecipasse no afastamento do
partido, registram em sua agenda mais uma página borrada. Seu
guerreiro-mor sucumbe. A legenda não terá ânimo para levantar de
imediato a bandeira da altanaria. Em contraponto, revigora-se a base
situacionista, no momento em que Dilma Rousseff alcança 77% de
aprovação, segundo pesquisa CNI/Ibope.
O episódio, porém, estará circunscrito à Câmara Alta, só margeando
territórios estaduais e municipais onde mandatários sejam presos ao "fio
do novelo cachoeirístico". A par da extrema solubilidade que impregna a
esfera da representação na atual quadra política, registre-se a
sucessão de eventos com o mesmo enredo que se espraia pelos desvãos da
vida institucional, a denotar a extrema dificuldade - quiçá
impossibilidade - de se cortar a cabeça do dragão patrimonialista, ainda
muito ativo em todas as instâncias federativas. A imbricação entre a
coisa pública e o negócio privado assume proporções escandalosas, apesar
dos aparatos tecnológicos montados na atualidade para eliminar o "poder
invisível". Aliás, essa é, na constatação de Norberto Bobbio, mais uma
promessa não cumprida pela democracia.
Retornemos ao profeta Zaratustra, com sua reflexão de que o
encadeamento das causas que o extinguiriam haveria de propiciar-lhe o
eterno retorno. O ocaso, por conseguinte, pode-se transformar em brilho
de novas auroras. Essa é mais uma faceta da política brasileira. Os
mortos ressuscitam. O ex-presidente Collor que o diga. Ou, em outros
termos, inexistem regras imutáveis na política. Tudo é passível de
verificação. A propósito, Marx assinalava em seu Manifesto Comunista:
"Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profano".
Consolo para perfis embalados na solidez.
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*JORNALISTA, PROFESSOR , TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO TWITTER@GAUDTORQUATO
Fonte: Estadão on line, 08/04/2012
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