Eduardo Wolff*
Em 1969, o historiador da arte e crítico inglês Kenneth Clark levou
a uma rede de televisão britânica o primeiro grande documentário de
história da arte totalmente em cores. Civilização Uma Visão Pessoal
trazia em seus 13 exuberantes episódios os grandes momentos da história
da cultura europeia, sobretudo a partir dos primórdios da Europa cristã e
com ênfase na arquitetura, nas artes visuais e nas grandes ideias que
forjaram essa sociedade. Foi assistindo a esse documentário que o jovem
Niall Ferguson recebeu sua primeira impressão do que era uma civilização
e, mais especificamente, do que era a civilização ocidental: a
grandiosa aventura do espírito grego e as realizações romanas; a
continuidade, mais que a ruptura, que o cristianismo medieval
representou para a civilização surgida no Mediterrâneo; a catedral de
Chartres e o gênio de Michelangelo; as aspirações de liberdade e a
moderna sociedade industrial.
Niall Ferguson, que se
apresenta no Fronteiras do Pensamento Porto Alegre nesta segunda-feira,
viria a se tornar, assim como Clark fora em seu tempo, um dos grandes
historiadores britânicos. Professor em Oxford, em Harvard e atualmente
em Stanford, também se envolveria com um fascinante projeto para a
televisão chamado Civilização - Ocidente x Oriente (publicado no Brasil
pela editora Planeta).
Diferentemente de Clark, no entanto,
Ferguson não restringiu sua concepção de civilização às elevadas
contribuições das artes, das letras, da arquitetura e da filosofia para a
porção de terra no globo que veio a ser chamada de Ocidente. A
possibilidade de os indivíduos viverem uma paz assegurada social e
legalmente, desfrutarem de uma dieta rica e diversificada e se dedicarem
a uma vida de trabalho recompensado é tão constitutiva do que seja uma
civilização quanto uma peça de Shakespeare ou uma partitura de
Beethoven.
E foi talvez por formular as coisas nesses termos
que Ferguson conseguiu se fazer uma pergunta fundamental: como foi que
esse pequeno pedaço de terra no oeste do continente europeu (Inglaterra,
Portugal, Espanha, França, Itália e Alemanha, especialmente), que nos
séculos 15 e 16 não era capaz de fazer sombra à grandeza da China, viria
a se transformar em uma das mais extraordinárias experiências
civilizatórias da história humana, alçando o Ocidente à condição de
civilização dominante pelos cinco séculos seguintes? A simples
formulação da pergunta já serviria para levantar suspeitas de que
Ferguson teria uma visão estreita acerca da civilização, restringindo
seu interesse a uma alegada supremacia do Ocidente - de resto, entendido
também de forma bastante restritiva como as nações do oeste europeu e o
mundo anglo-saxão expandido.
A leitura de Civilização, assim
como de outras obras de Ferguson, a exemplo de A Grande Degeneração
(Planeta) e o recém-lançado The Square and the Tower, comprova o exato
oposto disso. Em primeiro lugar, porque Ferguson analisa o complexo
fenômeno da emergência, da expansão e do esfacelamento de civilizações
não como um processo estanque, redutível a uma única causa (a economia,
digamos), mas sim como algo muito mais frágil, acidentado e influenciado
por múltiplos fatores. É assim que apresenta, por exemplo, as seis
razões - ou, para usar a expressão empregada pelo autor, os seis
"aplicativos" - pelas quais, a seu ver, o Ocidente foi capaz de ascender
à condição de civilização dominante: a competição, a ciência moderna,
os direitos de propriedade, a medicina, a sociedade de consumo e a ética
do trabalho. Valores, mentalidade, condições geográficas e instituições
desempenham papel tão importante quanto a economia e a política em seus
sentidos tradicionais. Mais do que isso: não apenas o conceito de
civilização ocidental é bastante matizado (Porto Alegre é Ocidente? E
Tel Aviv? Como fica a Rússia?) como, mais do que isso, sua reflexão já
parte da ideia de que civilizações vêm e vão, de que não há nada
predeterminado no destino dos povos e das nações, e tudo isso torna a
empreitada de desvendar os mecanismos de uma grande civilização
particularmente fascinante.
Assim como ascendeu, essa
civilização pode fenecer - como foi o destino de tantas outras. Assim
como seus valores perduraram por séculos, quando não milênios, outros
valores, novos, antes insuspeitos, podem nela emergir, descortinando a
nós e às gerações vindouras outras formas possíveis da experiência
humana.
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* Tradutor, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP)
FONTE: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=936bc6fd776ce64da2a129ebba5d27d8 - Caderno DOC 25 e 26 de novembro de 2017 p. 14.
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