FRANCISCO MARSHALL*
"Sem
medo de céu e inferno ou da cara feia do bispo,
podemos optar pelo
altruísmo, pois sabemos que o bem disseminado é proveitoso para todos."
Em grego, a palavra evangelho junta o
prefixo eu (bom, bem, como em eufemismo, bem dizer) e o substantivo
angelía ("mensagem"); forma-se assim a palavra que designa boa nova,
como se pretendem os evangelhos bíblicos. Não são História, nem
biografia, Filosofia ou Teologia, mas contêm pitadas destas, sem suas
metodologias; não são também gênero literário, menos ainda revelação
divina, mas historietas populares com qualidade e conteúdo similar a
Paulo Coelho: os feitos extraordinários de um mago nômade e alguma
sabedoria. Havia, no início do século IV d.C., ao menos 17 evangelhos,
ficções em prosa em torno do personagem literário e já folclórico Jesus
Cristo, a síntese de mitos e heróis antigos, celebrador do vinho e da
amizade, vítima de morte trágica e renascimento misterioso. Entre muita
prosódia, há nos evangelhos pouca novidade, mas alguma mensagem, mística
e ética.
O conteúdo místico dos evangelhos refere herança
judaica (hiper- autoridade patriarcal divinizada) e as crenças de outras
seitas daquela era. Com a descoberta dos manuscritos do Mar Morto, em
Qumram (1947), conhecemos as ideias dos essênios, similares às dos
cristãos primitivos, com maior puritanismo. Ciosa da noção de palavra
revelada e da originalidade da mensagem, a Igreja Católica tentou abafar
a difusão daqueles escritos, hoje plenamente conhecidos; evidenciou-se a
natureza cultural e histórica da crença cristã e sua pouca
originalidade.
"Face a
esses vis pastores, parecem preferíveis
igrejas católica ou luterana,
ainda mais na época de um papa lúcido"
Já o conteúdo ético, de natureza filosófica,
herda traços do estoicismo, doutrina grega muito difundida no Império
Romano. Talvez Nietzsche tenha errado ao chamar Cristo de Platão dos
pobres; seria antes um Zenão dos crentes, ou um Sêneca da Galileia. A
mensagem estoica possui alto grau de altruísmo e é a parte mais nobre da
religião que dominou o mundo protegida pelo Império. Se desbastarmos do
cristianismo as ambições de riqueza e poder, sobrará um núcleo ético
estoico, e este será sempre relevante. A filosofia pode salvar algo da
religião.
Hoje, assistimos à vulgaridade de muitos líderes
pentecostais, sem qualquer misticismo ou filosofia, que usam demagogia
religiosa para chegar ao poder e impor suas crenças retrógradas. Face a
esses vis pastores, parecem preferíveis igrejas católica ou luterana,
ainda mais na época de um papa lúcido; preferível mesmo é a inteligência
emancipada, capaz de informar-se, ponderar e fazer escolhas éticas. Sem
medo de céu e inferno ou da cara feia do bispo, podemos optar pelo
altruísmo, pois sabemos que o bem disseminado é proveitoso para todos.
Também podemos acreditar no bem comum e na melhor forma de realizá-lo, a
democracia. Nada disso depende da religião.
Diante desse núcleo
de ética possível entre religião, filosofia e política, com que palavra
descrever a boçalidade dos que hoje agridem cheios de ódio, em nome do
cristianismo, e vociferam contra arte, ciência, educação, direitos
humanos e cultura? São certamente bárbaros ignorantes e hipócritas que
usam a tradição religiosa para tentar impor seu mundo de trevas. Contra
eles, até mesmo o cristianismo que fingem professar pode oferecer luzes,
que se dirá o conhecimento e a cultura que todos, humanos, podemos
conquistar.
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* Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=5aafd54467e6622e9f3a3c986efde8f2
Fonte Impressa: ZH/Cad. DOC 25 e 26 de novembro de 2017 p. 17
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