Fred Coelho*
Machado de Assis fez das mulheres conformadas tema de literatura inconformada com convenções
Machado
de Assis dedicou boa parte de sua obra a temas como a família, o
casamento e a política dos gêneros no Brasil. Em diferentes romances,
ele tratou das armadilhas sociais que a mulher vivia na sociedade
carioca do Segundo Império e do início da República. Algumas vezes fazia
isso de forma conservadora, outras de forma ousada para o seu tempo.
Enquanto a maioria de seus personagens masculinos — herdeiros ou
capitalistas iniciantes — tinha o casamento como opção, para as mulheres
o matrimônio seria a única salvação.
Dentro de sua escrita cada vez mais ácida e arguta ao longo da vida (começa a publicar no fim de 1850 e falece em 1908), o escritor carioca foi demostrando o óbvio até hoje: como as mulheres e os homens eram desiguais em praticamente tudo. Os primeiros eram senhores comandando destinos de assenhoradas. O casamento, visto então como motor de vínculos políticos, manutenção de privilégios privados ou garantia de perpetuação da classe, sempre aparecia como epicentro organizador das tramas.
Aos poucos, ele fez dessas mulheres conformadas o tema de uma literatura inconformada com tais convenções. Escreveu tanto sobre isso que claramente estava dizendo algo para além do mote folhetinesco. Em seus primeiros romances, todos lançados nos anos de 1870 — “Ressurreição” (1872), “A mão e a luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878) —, lemos histórias que, de diferentes formas, falam sobre mulheres e casamentos. E não foi só em romances, mas também em muitos de seus contos.
O tema candente da condição feminina tinha, além de outras motivações, um detalhe estratégico: eram elas as leitoras das revistas e livros em que Machado escrevia. Tematizar os obstáculos da emancipação feminina era, de alguma forma, falar sobre suas leitoras e a ampliação de ideias na literatura brasileira. Com o tempo, ele soube como poucos modular as múltiplas frentes existenciais de suas heroínas — das justas às enganadoras, das orgulhosas às egoístas, das inocentes às ambiciosas. Sua escrita fez com que a mulher da segunda metade do século XIX fosse a representação subjetiva complexa de uma classe e de suas lutas por posições sociais, posses e dominação.
Era Machado feminista? Estou eu aqui sugerindo anacronismos em um outro tempo? Não, poupo-lhes disso. Machado podia ser mais um dos homens que trataram mulheres com a condescendência típica de um machismo polido e aristocrático do século XIX. Mas ele era, também, um escritor que observava sua sociedade e mirava as dinâmicas das pequenas tragédias e comédias ao seu redor. A condição feminina estava presente no dia a dia das jovens viúvas, das mulheres acusadas de adultério, das moças sem ambição que casam por interesses de terceiros, das filhas bastardas, das leitoras perdidas. Elas são marcas claras do que o historiador Sidney Chalhoub chama de um “ideal de dominação”. Ideal esse que perpassava a sociedade do tempo de Machado e que, de muitas formas, permanece vivo até hoje em mentalidades renitentes. O fato é que Machado apresenta tal dominação das mulheres não como algo natural ou inerente à biologia. Havia, e ainda há, uma estrutura política por trás de tal situação.
Se ele não defendeu abertamente questões de gênero, porém, não quer dizer que não as pensou em sua escrita ao longo da vida e obra. Em romances como “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881) ou “Quincas Borba” (1891), elas estavam lá: personagens femininas de diferentes origens sociais e tipos, amarrando situações existenciais em que personagens masculinos faziam contrapontos mais ou menos ativos em suas histórias.
Já em “Dom Casmurro” (1900), temos um Machado de Assis maduro em sua escrita, dominando a arte da narrativa literária e produzindo uma obra prima que coloca o “ideal de dominação” referido por Chalhoub em seu ápice. A história que marcou e marca diferentes gerações de leitores é um impasse a respeito de um ciúme que se transforma em banimento e morte de uma mulher. A dúvida posta é famosa: afinal, Capitu, a menina que desde a infância demonstrara uma personalidade cujos traços indicam uma autonomia mínima para o seu tempo, traiu Bentinho com seu amigo Escobar? Ou, ao lermos uma história contada em primeira pessoa, conhecemos a invenção de um ciumento sem provas cabais? O fato é que, pelo exercício do ideal de dominação senhorial que lhe concernia, ele puniu sua esposa e seu filho como podia também punir um escravo. Fez com os corpos dominados ao seu redor aquilo que quis. Inclusive, tirar-lhes a vida.
Se os tempos de Machado são outros, os tempos para as mulheres — e os descendentes dos escravizados — continuam povoados por ideias de dominação senhorial. Sempre vale lembrar que a literatura — e todas as artes — enxerga pela fresta da violência cotidiana o motor de nossas indignações. Pois elas estão aí, movidas por defuntos que, se não são autores como Brás Cubas, vagam entre nós como zumbis legisladores ainda perseguindo olhos de ressaca.
Dentro de sua escrita cada vez mais ácida e arguta ao longo da vida (começa a publicar no fim de 1850 e falece em 1908), o escritor carioca foi demostrando o óbvio até hoje: como as mulheres e os homens eram desiguais em praticamente tudo. Os primeiros eram senhores comandando destinos de assenhoradas. O casamento, visto então como motor de vínculos políticos, manutenção de privilégios privados ou garantia de perpetuação da classe, sempre aparecia como epicentro organizador das tramas.
Aos poucos, ele fez dessas mulheres conformadas o tema de uma literatura inconformada com tais convenções. Escreveu tanto sobre isso que claramente estava dizendo algo para além do mote folhetinesco. Em seus primeiros romances, todos lançados nos anos de 1870 — “Ressurreição” (1872), “A mão e a luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878) —, lemos histórias que, de diferentes formas, falam sobre mulheres e casamentos. E não foi só em romances, mas também em muitos de seus contos.
O tema candente da condição feminina tinha, além de outras motivações, um detalhe estratégico: eram elas as leitoras das revistas e livros em que Machado escrevia. Tematizar os obstáculos da emancipação feminina era, de alguma forma, falar sobre suas leitoras e a ampliação de ideias na literatura brasileira. Com o tempo, ele soube como poucos modular as múltiplas frentes existenciais de suas heroínas — das justas às enganadoras, das orgulhosas às egoístas, das inocentes às ambiciosas. Sua escrita fez com que a mulher da segunda metade do século XIX fosse a representação subjetiva complexa de uma classe e de suas lutas por posições sociais, posses e dominação.
Era Machado feminista? Estou eu aqui sugerindo anacronismos em um outro tempo? Não, poupo-lhes disso. Machado podia ser mais um dos homens que trataram mulheres com a condescendência típica de um machismo polido e aristocrático do século XIX. Mas ele era, também, um escritor que observava sua sociedade e mirava as dinâmicas das pequenas tragédias e comédias ao seu redor. A condição feminina estava presente no dia a dia das jovens viúvas, das mulheres acusadas de adultério, das moças sem ambição que casam por interesses de terceiros, das filhas bastardas, das leitoras perdidas. Elas são marcas claras do que o historiador Sidney Chalhoub chama de um “ideal de dominação”. Ideal esse que perpassava a sociedade do tempo de Machado e que, de muitas formas, permanece vivo até hoje em mentalidades renitentes. O fato é que Machado apresenta tal dominação das mulheres não como algo natural ou inerente à biologia. Havia, e ainda há, uma estrutura política por trás de tal situação.
Se ele não defendeu abertamente questões de gênero, porém, não quer dizer que não as pensou em sua escrita ao longo da vida e obra. Em romances como “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881) ou “Quincas Borba” (1891), elas estavam lá: personagens femininas de diferentes origens sociais e tipos, amarrando situações existenciais em que personagens masculinos faziam contrapontos mais ou menos ativos em suas histórias.
Já em “Dom Casmurro” (1900), temos um Machado de Assis maduro em sua escrita, dominando a arte da narrativa literária e produzindo uma obra prima que coloca o “ideal de dominação” referido por Chalhoub em seu ápice. A história que marcou e marca diferentes gerações de leitores é um impasse a respeito de um ciúme que se transforma em banimento e morte de uma mulher. A dúvida posta é famosa: afinal, Capitu, a menina que desde a infância demonstrara uma personalidade cujos traços indicam uma autonomia mínima para o seu tempo, traiu Bentinho com seu amigo Escobar? Ou, ao lermos uma história contada em primeira pessoa, conhecemos a invenção de um ciumento sem provas cabais? O fato é que, pelo exercício do ideal de dominação senhorial que lhe concernia, ele puniu sua esposa e seu filho como podia também punir um escravo. Fez com os corpos dominados ao seu redor aquilo que quis. Inclusive, tirar-lhes a vida.
Se os tempos de Machado são outros, os tempos para as mulheres — e os descendentes dos escravizados — continuam povoados por ideias de dominação senhorial. Sempre vale lembrar que a literatura — e todas as artes — enxerga pela fresta da violência cotidiana o motor de nossas indignações. Pois elas estão aí, movidas por defuntos que, se não são autores como Brás Cubas, vagam entre nós como zumbis legisladores ainda perseguindo olhos de ressaca.
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