António Lobo Antunes*
Um dia levaram o escritor francês Gautier a ver as Meninas de Velázquez. Ficou que tempos a olhá-las até perguntar – Mas onde está o quadro? é isso que me pergunto ao olhar um livro meu: – Onde está o livro? e no entanto está ali, exactamente onde o pusemos. É nosso e não é nosso: em última análise é só dele
Acabei
na semana passada um livro e sinto-me fisicamente esgotado.
É tão
difícil escrever. Foi estranho fazê-lo: deu-me imenso trabalho do ponto
de vista técnico mas, ao mesmo tempo, a mão esteve sempre feliz e o
texto saiu com uma facilidade aparente muito grande, como há vários anos
não me acontecia. Consegui compô-lo como queria, jogando com cinco
vozes diferentes que se deram bem entre elas, passando o testemunho umas
às outras do modo que eu desejava, sem que o tecido da prosa sofresse
sobressaltos, deslizando sem hesitações numa fluidez que me agradou.
Claro que me pôs problemas de vária ordem mas deu-me sempre a sensação
que os resolvia sem necessitar que a minha mão se intrometesse. Parecia
conhecer o seu caminho sem precisar do meu GPS e não cessou de
alargar-se na direcção da foz. Eu acompanhava-o ao mesmo tempo dentro e
fora dele, intervindo o menos possível porque as peças de que era feito
se articulavam sem que necessitasse de as alterar, e isto desde o
primeiro capítulo. Em certo sentido foi um milagre pelo qual estou a
pagar agora: extenuado e sozinho, porque sinto a falta dele, que me
abandonou depois de exigir o que queria de mim. Resultado: tropeço de
sono, só quero que se afaste de forma a deixar lugar ao próximo, que um
dia, não sei quando, há-de chegar.
Dentro de cinco, seis sete meses vou
colocar-me em postura de engravidar outra vez. Ainda há livros cá
dentro, que bem os sinto, embora desconheça por completo como serão. Com
sorte farei mais dois ou três antes de me calar definitivamente, se é
que me calarei definitivamente, se é que isto não vai continuar a
acompanhar-me até o meu fim lhe pôr termo: a gente manda muito menos
naquilo que consegue do que supõe, e a mistura do que nos é oferecido e
daquilo que é necessário ganhar é impossível de separar claramente.
Cumprimos o que a obra quer de nós mas tem que vir do que para ela
planeámos, muitas vezes de forma inconsciente, segundo leis que ao mesmo
tempo foram traçadas e nos escapam. Somos e não somos os autores do que
desejávamos, somos e não somos o operário que realiza, simultaneamente
dentro e fora, operário e espectador. Este trabalho é esquisito e
familiar em simultâneo e necessita de uma espécie de orgulho humilde.
A
gente escreve e assiste, assiste e escreve, decide e obedece,
surpreende-se e manda. Vem de zonas a um tempo desconhecidas e claras,
que nos obedecem, nos fogem, regressam, acabam por realizar o que
decidimos e só depois compreendemos que o tínhamos decidido. É difícil
explicar de forma clara o que nos é inconscientemente consciente, se
assim me posso exprimir, o que é nosso sem deixar de ser alheio o que,
em última análise, se edifica segundo as nossas normas e as suas, numa
combinação clara e difusa. Provocamos em nós mesmos o espanto que
necessitávamos, conseguimos uma surpresa esperada, o que dito assim se
afigura paradoxal e não é.
Às vezes penso se é justo assinar um
livro com o meu nome até compreender que fui eu que provoquei esse
estado segundo que se cumpre, finalmente, segundo os nossos desígnios.
Não estou muito certo desta frase mas espero que compreendam o que quero
dizer com ela. Em matéria de arte tudo é excepcional como tudo é, em
última análise, evidente. Um dia levaram o escritor francês Gautier a
ver as Meninas de Velázquez. Ficou que tempos a olhá-las até perguntar
– Mas onde está o quadro?
é isso que me pergunto ao olhar um livro meu:
– Onde está o livro?
e
no entanto está ali, exactamente onde o pusemos. É nosso e não é nosso:
em última análise é só dele. Mas fomos nós que participámos nessa coisa
só dele, da qual fazemos tanto parte quanto ela o faz de nós. As
fronteiras podem não ser muito bem definidas mas, paradoxalmente, são
óbvias. Qualquer obra de arte, mesmo feita por nós, não nos pertence e
todavia não deixa de ser nossa. Isto é muito claro para mim. E no caso
de não porem a funcionar apenas as vossas partes mais imediatamente
conscientes será também claro para vocês. Um pouco como os filhos: fomos
nós que os fizemos mas não nos pertencem. Pertencem apenas a si mesmos,
e continuarão sozinhos para além da gente, numa vida autónoma que nos
transcende sem deixar de ser nossos. Ficámos lá para trás apenas, mas
muito mais perto do que supomos. E muitos dos nossos traços, todos os
nossos traços, toda a nossa vida, continuam lá. Deve ser isso
a que se
chama eternidade.
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Crónica publicada na VISÃO 1286 de 26 de outubro
Fonte: http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2017-11-01-O-novo-livro
Imagem Susa Monteiro
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