quinta-feira, 9 de novembro de 2017

O novo livro

António Lobo Antunes*

Um dia levaram o escritor francês Gautier a ver as Meninas de Velázquez. Ficou que tempos a olhá-las até perguntar – Mas onde está o quadro? é isso que me pergunto ao olhar um livro meu: – Onde está o livro? e no entanto está ali, exactamente onde o pusemos. É nosso e não é nosso: em última análise é só dele

Acabei na semana passada um livro e sinto-me fisicamente esgotado. 

É tão difícil escrever. Foi estranho fazê-lo: deu-me imenso trabalho do ponto de vista técnico mas, ao mesmo tempo, a mão esteve sempre feliz e o texto saiu com uma facilidade aparente muito grande, como há vários anos não me acontecia. Consegui compô-lo como queria, jogando com cinco vozes diferentes que se deram bem entre elas, passando o testemunho umas às outras do modo que eu desejava, sem que o tecido da prosa sofresse sobressaltos, deslizando sem hesitações numa fluidez que me agradou. 

Claro que me pôs problemas de vária ordem mas deu-me sempre a sensação que os resolvia sem necessitar que a minha mão se intrometesse. Parecia conhecer o seu caminho sem precisar do meu GPS e não cessou de alargar-se na direcção da foz. Eu acompanhava-o ao mesmo tempo dentro e fora dele, intervindo o menos possível porque as peças de que era feito se articulavam sem que necessitasse de as alterar, e isto desde o primeiro capítulo. Em certo sentido foi um milagre pelo qual estou a pagar agora: extenuado e sozinho, porque sinto a falta dele, que me abandonou depois de exigir o que queria de mim. Resultado: tropeço de sono, só quero que se afaste de forma a deixar lugar ao próximo, que um dia, não sei quando, há-de chegar. 

Dentro de cinco, seis sete meses vou colocar-me em postura de engravidar outra vez. Ainda há livros cá dentro, que bem os sinto, embora desconheça por completo como serão. Com sorte farei mais dois ou três antes de me calar definitivamente, se é que me calarei definitivamente, se é que isto não vai continuar a acompanhar-me até o meu fim lhe pôr termo: a gente manda muito menos naquilo que consegue do que supõe, e a mistura do que nos é oferecido e daquilo que é necessário ganhar é impossível de separar claramente. Cumprimos o que a obra quer de nós mas tem que vir do que para ela planeámos, muitas vezes de forma inconsciente, segundo leis que ao mesmo tempo foram traçadas e nos escapam. Somos e não somos os autores do que desejávamos, somos e não somos o operário que realiza, simultaneamente dentro e fora, operário e espectador. Este trabalho é esquisito e familiar em simultâneo e necessita de uma espécie de orgulho humilde.

A gente escreve e assiste, assiste e escreve, decide e obedece, surpreende-se e manda. Vem de zonas a um tempo desconhecidas e claras, que nos obedecem, nos fogem, regressam, acabam por realizar o que decidimos e só depois compreendemos que o tínhamos decidido. É difícil explicar de forma clara o que nos é inconscientemente consciente, se assim me posso exprimir, o que é nosso sem deixar de ser alheio o que, em última análise, se edifica segundo as nossas normas e as suas, numa combinação clara e difusa. Provocamos em nós mesmos o espanto que necessitávamos, conseguimos uma surpresa esperada, o que dito assim se afigura paradoxal e não é.

Às vezes penso se é justo assinar um livro com o meu nome até compreender que fui eu que provoquei esse estado segundo que se cumpre, finalmente, segundo os nossos desígnios. Não estou muito certo desta frase mas espero que compreendam o que quero dizer com ela. Em matéria de arte tudo é excepcional como tudo é, em última análise, evidente. Um dia levaram o escritor francês Gautier a ver as Meninas de Velázquez. Ficou que tempos a olhá-las até perguntar

– Mas onde está o quadro?

é isso que me pergunto ao olhar um livro meu:

– Onde está o livro?

e no entanto está ali, exactamente onde o pusemos. É nosso e não é nosso: em última análise é só dele. Mas fomos nós que participámos nessa coisa só dele, da qual fazemos tanto parte quanto ela o faz de nós. As fronteiras podem não ser muito bem definidas mas, paradoxalmente, são óbvias. Qualquer obra de arte, mesmo feita por nós, não nos pertence e todavia não deixa de ser nossa. Isto é muito claro para mim. E no caso de não porem a funcionar apenas as vossas partes mais imediatamente conscientes será também claro para vocês. Um pouco como os filhos: fomos nós que os fizemos mas não nos pertencem. Pertencem apenas a si mesmos, e continuarão sozinhos para além da gente, numa vida autónoma que nos transcende sem deixar de ser nossos. Ficámos lá para trás apenas, mas muito mais perto do que supomos. E muitos dos nossos traços, todos os nossos traços, toda a nossa vida, continuam lá. Deve ser isso 
a que se chama eternidade.
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Crónica publicada na VISÃO 1286 de 26 de outubro
Fonte:  http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2017-11-01-O-novo-livro
Imagem  Susa Monteiro

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