Erling Kagge foi o primeiro homem a atingir os "três polos" a pé.
Enquanto atravessa a Antártica, sozinho, descobriu o silêncio. Passados
20 anos, decidiu tentar descrevê-lo com palavras.
Erling Kagge tinha 27 anos quando decidiu aventurar-se no Ártico,
“um oceano rodeado por continentes”. Partiu da ilha Ellesmere, no
Canadá, a 8 de março de 1990 e, durante cerca de um mês, caminhou em
direção ao Polo Norte sem qualquer apoio. Atingiu o ponto mais a norte
do planeta a 4 maio de 1990, tornando-se — juntamente com Børge Ousland,
que o acompanhou durante todo o percurso — no primeiro homem a chegar
ao polo sem ajuda.
Quando chegaram ao polo, Kagge e Ousland
estavam esfomeados. Durante os 58 dias que durou a viagem, caminharam
diariamente 17 horas seguidas, com temperaturas de -58ºC. Às vezes a
fome e o frio eram tantos que nem conseguiam dormir. Como que
adivinhando, um avião norte-americano que estava de passagem decidiu
atirar-lhes uma caixa com comida. Kagge estava prestes a dar uma dentada
no arenque fumado quando Ousland sugeriu que não deviam começar logo a
comer e que, primeiro, deviam fazer uma pausa e contar até dez. Era uma “demonstração coletiva de contenção”, para se lembrarem de que “a satisfação também tem a ver com sacrifício”.
“Ficar esse tempo à espera pareceu estranho”, escreveu muitos anos
depois Erling Kagge. “Mas nunca senti tanta plenitude como naquele
momento de silêncio.”
Aqueles compassos de espera foram o primeiro contacto de Kagge com o
silêncio. Mas, só mais tarde, é que descobriu realmente o seu
significado. Em 1992, decidiu aventurar-se mais a sul e percorrer os
trilhos gelados da Antártida, novamente sem qualquer apoio. Pé ante pé,
caminhou ao longo de 1.310 quilómetros até que, no início de 1993,
chegou ao seu destino — o Polo Sul. Ao contrário do que tinha feito em
1990, Erling Kagge caminhou sozinho. A experiência mudou-o
profundamente.
Antes de iniciar a caminhada, Kagge fez questão de tirar as pilhas do
rádio que a companhia proprietária do avião que o deslocou até ao sul
do mundo o obrigou a levar. O objetivo inicial era — como lembrou em
conversa com o Observador, durante a sua recente passagem por Lisboa —
chegar ao Polo Sul sem qualquer ajuda (e sem qualquer conversa). Mas, a
meio do longo caminho, alguma mudou. “À medida que o tempo foi
passando e comecei a entrar no ritmo, tornou-se mais uma expedição ao
interior de mim próprio do que ao Polo Sul”, contou. Atingir a
meta — sobreviver — continuava a ser “o mais importante”, mas o objetivo
transformou-se noutro. “Comecei a apreciar o silêncio, a ver a
importância do silêncio de uma forma mais ampla.”
Isso não foi
possível no Ártico porque esteve sempre rodeado de ruído — o ruído do
gelo que se move com a força do vento e das correntes, das “enormes
massas” que “ribombam enquanto lutam com os elementos da natureza”, do
gelo fino que “balança e estala quando caminhamos sobre ele”. Na
Antártida era tudo mais silencioso. “Tudo parecia completamente liso e
branco, quilómetro após quilómetro, durante todo o caminho em direção ao
horizonte, à medida que me dirigia para o sul através do continente
mais frio do planeta. Debaixo do gelo, fazendo pressão sobre a
superfície da terra”, referiu em Silêncio na Era do Ruído,
o livro que não poderia existir sem aqueles 50 dias na Antártida. Sem
isso e sem “a experiência de ter de cuidar de três filhas adolescentes”.
Há coisas que nos mudam.
“À medida que o tempo foi passando e comecei a entrar no
ritmo, tornou-se mais uma expedição ao interior de mim
próprio do que
ao Pólo Sul.”
“Silêncio” não é o antónimo de “ruído”. É outra coisa
Apenas um ano depois de ter chegado ao Polo Sul, Erling Kagge decidiu
aventurar-se nos Himalaias. Depois de subir ao cimo do Monte Evareste,
no Nepal, tornou-se na primeira pessoa a atingir “os três polos” a pé,
um feito que só foi ultrapassado em 1997, pelo francês Antoine de
Choudens, que subiu à montanha mais alta do mundo sem usar oxigénio
artificial. A aventura seguinte foi menos perigosa: apesar de na altura
trabalhar como advogado na empresa de energia renovável norueguesa Norsk
Hydro, Kagge decidiu ir para Cambridge estudar Filosofia. Não muito
tempo depois disso, em 1996, decidiu abrir uma editora só sua e pendurar
as botas. A epifania ocorreu-lhe enquanto lavava a loiça “na maior das
calmas”. A mulher estava grávida da sua segunda filha e o aventureiro
norueguês decidiu que estava na altura de prestar mais atenção à
família, arranjar um emprego e regressar à Noruega. Com alguma sorte até
talvez conseguisse comprar uma casa.
Em 1996, quando abriu a Kagge Forlag, em Oslo, Kagge já tinha quatro livros editados sobre as suas aventuras. Depois disso, ainda lançou outros dois: A Poor Collectiors Guide to Buying Great Art (além de explorador e editor, o norueguês é um famoso colecionador de arte contemporânea) e Manhattan Underground, sobre a sua aventura de cinco dias nos esgotos e túneis subterrâneos de Nova Iorque com o explorador urbano e fotógrafo Steve Duncan,
em 2010. Não falou sobre o silêncio em nenhum deles. Ou, pelo menos, no
silêncio que descobriu durante a caminhada até ao Polo Sul. Só o fez
muito tempo depois, em Silêncio na Era do Ruído, publicado em recentemente em Portugal.
Quando lhe perguntámos porquê, sentados na mezzanine do
Altis Grand Hotel, Erling Kagge estava de t-shirt. Estava um frio de
rachar na rua, mas o norueguês de 54 anos não parecia estranhar a
temperatura. Quando acordou, bem cedo naquela manhã, a primeira coisa
que fez foi abrir a janela e sentir o sol quente de Lisboa a bater-lhe
na cara. E também aí encontrou o silêncio. “O livro é uma combinação da
vida antes e depois da expedição. E não só dessa expedição, mas de
muitas outras”, explicou. Depois de percorrer os túneis subterrâneos de
Nova Iorque, em 2015, Kagge fez uma caminhada de três dias ao longo da
Sunset Boulevard, em Los Angeles, com o guionista Petter Skavlan e o
galerista Peder Lund. Tal como tinha prometido quando abandonou
Cambridge, as suas aventuras abrandaram. “Todas estas experiências
enriqueceram o livro”, acrescentou. “Não o teria escrito há dez anos,
nem acho que fosse necessário nessa altura.” Hoje a situação é “mais
extrema” — o ruído está por todo o lado e não há como fugir dele. E o
silêncio está em vias de extinção.
Para entender Silêncio na Era do Ruído
é preciso entender de que silêncio Erling Kagge fala. Porque, para o
norueguês, o silêncio não é apenas a ausência de ruído, é algo mais
profundo. “Quando comecei a escrever o livro, estava a pensar no
silêncio dos lugares sossegados, em fugir do ruído. No ruído enquanto
barulho, stress, etc. Mas depois fiquei mais interessado no
silêncio interior, em nos conhecermos a nós próprios, em nos explorarmos
a nós próprios. Esse silêncio é diferente”, afirmou. “O
silêncio que experienciei hoje quando estava a olhar para Lisboa da
janela do meu quarto é diferente do silêncio que experienciei ontem no
aeroporto. Isso acontece porque nunca estamos no mesmo lugar, mas também
porque conseguimos olhar para nós próprios quando estamos em silêncio.
Isso pode ser confortável, mas às vezes pode ser duro.”
“Quando comecei a escrever o livro, estava a pensar no
silêncio dos lugares sossegados. Mas depois fiquei mais interessado no
silêncio interior, em nos conhecermos a nós próprios, em nos explorarmos
a nós próprios. Esse silêncio é diferente.”
O silêncio é “amar ainda mais aquilo que nos rodeia”
A definição que Erling Kagge tem de “silêncio” não é nada simplista.
Para ele, não se trata apenas do antónimo de “ruído”, porque “o ruído
pode ser um conjunto de sons ou distrações” físicas — como o telemóvel
que toca porque acabámos de receber uma mensagem — mas também
psicológicas — como quando estamos a pensar na resposta que vamos dar à
mensagem que acabámos de recebemos. “Neste sentido, o silêncio é
muito diferente do ruído, mas não é o oposto.” Essa foi uma das razões
pelas quais demorou mais de um ano a escrever Silêncio na Era do Ruído,
um livro com apenas 156 páginas — fotografias e agradecimentos incluídos.
Ao Observador, o norueguês explicou que queria escrever um livro
completamente original, diferente de todos os outros. Além disso, também
achou que era “muito complicado agarrar o silêncio”. “É fácil falar de
pouco ruído ou da inexistência de ruído, mas ir mais longe é complicado.
É difícil. E também é uma coisa que é preciso compreender”, afirmou.
“Provavelmente pensam que, como tive todas estas experiências,
compreendo o que é o silêncio mas, quando me sentei e tentei escrever
sobre ele, nem sempre fazia sentido. Tive de pensar mesmo a fundo, falar
com pessoas, ler livros sobre o silêncio, fazer longos passeios e
tentar agarrá-lo. Queria escrever um ensaio filosófico e muito pessoal
sobre um tema muito importante.”
As três filhas — Nor, Ingrid e
Solveig — desempenharam um importante papel no processo. Kagge admite
mesmo que sem elas nunca teria conseguido. Todas leram o produto final,
mas apenas duas — as mais velhas — gostaram. “A minha filha de 15 anos
começou a ler o livro e achou que era um desperdício de tempo”, contou.
“Para ela, o silêncio é o mesmo que estar aborrecida, não ter com quem
brincar, que solidão ou que tristeza. Ela não se sente enriquecida ou
inspirada pelo silêncio.” Nas primeiras páginas do livro, Erling Kagge
começa por contar que, certa vez, ao jantar, tentou convencer Nor,
Ingrid e Solveig de que os segredos do mundo se escondem dentro do
silêncio. Já passaram alguns anos. Será que entretanto conseguiu? “Está a
acontecer aos poucos. Elas ainda estão muito conectadas, é normal, mas
começam a aperceber-se que a vida é muito mais do que isso.”
Apesar de as distrações terem aumentado com o desenvolvimento de
novas tecnologias que permitem que estejamos sempre conectados, Kagge
acredita que o ruído não é coisa de agora. “Desde a Revolução Industrial
que o mundo se tornou mais ruidoso”, explicou. “As pessoas começaram a
mudar-se para as grandes cidades, a vida mudou. Mas, nos últimos cinco
anos, tem havido uma mudança inacreditável. Nasci em 1963 e, há
40 anos, as pessoas não tinham qualquer relação com a Internet. Hoje em
dia, os telemóveis tornaram-se numa extensão dos nossos corpos e, nos
últimos três anos, houve uma mudança dramática.” E será que as
pessoas têm consciência disso? “No dia-a-dia, é mais importante comer,
dormir, beber, tomar conta da família. Há coisas que são mais
importantes. Se estivermos no Sudão, obviamente que temos coisas mais
importantes e mais sérias com que nos preocupar. Mas, se vivermos
confortavelmente em Portugal ou na Noruega, as pessoas precisam de
silêncio a um nível mais profundo porque o silêncio implica fazer
pausas, apreciar essas pausas e sentirmo-nos mais enriquecidos,
conhecermo-nos melhor.”
Para o explorador, apreciar um momento de
silêncio não é o mesmo que virar as costas ao mundo — “é sobre
abrimos-nos para o mundo, é sobre amar ainda mais aquilo que nos
rodeia”. E isso pode ser importante para encontrar a felicidade. Claro
que a felicidade é algo “difícil de agarrar” e até de definir mas, “ao
vivermos através das pessoas, através de aparelhos, estamos a fugir de
nós próprios”. “Eventualmente começamos a sentir que a vida passa muito
depressa, que não acontece nada.” É por isso que é importante
“parar por um momento e olhar à nossa volta”. Se o fizermos, “começamos a
“encarar-nos a nós próprios e a vida torna-se mais rica, com mais
significado”. “Para mim, tem sido importante procurar o
silêncio”, admitiu Kagge. “Mas também aceitar que a solução mais fácil é
sempre aceitar o ruído.” É mais “tentador” e mais fácil a curto prazo.
Apesar de “toda a gente saber que é um desperdício de tempo, toda a
gente o faz”. “A vida pode ser brutal, não é suposto estarmos sempre a
divertirmo-nos. É difícil ser humano. É por isso que, às vezes, temos de
escolher a opção mais difícil, e a opção mais difícil é o silêncio.”
"A vida pode ser brutal, não é suposto estarmos sempre a
divertirmo-nos. É difícil ser humano. É por isso que, às vezes, temos
de escolher a opção mais difícil, e a opção
mais difícil é o silêncio."
Ir viver para um mosteiro está fora de questão
Quando regressou do Polo Sul, Erling Kagge era um homem mudado: “A
certa altura, nesse isolamento total, comecei a dar-me conta de que
afinal nada era completamente liso. O gele e a neve dispunham-se
formando pequenas e grandes figuras abstratas. A brancura uniforme
transformava-se em inúmeras matizes de branco. Uma tonalidade azul
emergia da neve, em tudo-nada avermelhada, esverdeada e vagamente
rosada. A paisagem parecia mudar à medida que eu avançava, mas eu estava
enganado. O que me rodeava mantinha-se constante; quem mudava era eu”,
escreveu em Silêncio na Era do Ruído. “O silêncio acabou por colar-se a
mim.” De tal forma que, quando tentou falar com alguém ao fim de 50
dias, as palavras custaram-lhe a sair. Ficaram coladas ao céu-da-boca.
Não
foi fácil regressar à civilização. Nos primeiros tempos, teve de fazer
um esforço para se reajustar a um mundo ao qual parecia já não
pertencer. Teve de aprender a lidar novamente com pessoas, com o
trânsito, com o telefone que não parava de tocar. Todas as rotinas do
dia-a-dia. “Isso muda-nos completamente, mas depois voltamos para casa e temos de pagar as contas, tirar a loiça da máquina”,
admitiu. “A vida volta ao normal muito depressa.” E isso não é
necessariamente mau — pode não parecer, mas Kagge não acredita que seja
possível viver isolado numa caverna, em silêncio absoluto. Para o
norueguês, isso não passa de uma ideia romantizada e utópica.
“Não
há nada de errado com este ideal romântico de viver sem pessoas,
sozinho num mosteiro ou no meio da floresta, mas acho que nascemos para
nos conectarmos com outras pessoas. Nascemos para ser animais sociais”,
afirmou. “Nesse sentido, não há nada de errado com a tecnologia
em si, o problema está na forma como nos relacionamos com ela e nos
deixamos ser manipulados.” Kagge acredita que existe um
problema de adição que, a determinada altura, se tornará normal. “Se
visse isto a acontecer há 20 anos, se visse um homem adulto a caminhar
na rua todo encolhido, agarrado a um telemóvel como se fosse um urso de
peluche, achava que o mundo inteiro tinha enlouquecido. Mas isto agora é
normal.”
Além do mais, encontrar o silêncio absoluto pode ser uma tarefa difícil — ou mesmo impossível. Em Silêncio na Era do Ruído,
Erling conta a história de um amigo que tentou fazer uma experiência
para provar que este tipo de silêncio não existe, construindo um quarto à
prova de som e metendo-se lá dentro. A verdade é que, passado pouco
tempo, apercebeu-se que, até dentro de quatro paredes isoladas,
continuava a ouvir barulhos. “A respiração, o sangue que circula…
Existem todos estes sons”, concluiu o norueguês. “E mesmo que não
existam, começamos a imagina-los.” Isso não significa que o ser humano
precisa de ruído? “Sim, sem dúvida”, garantiu Kagge. “E acho que isso
também é importante. Não há mal nenhum em nos mudarmos para um mosteiro e
passarmos lá o resto da vida, mas a maioria das pessoas precisa de
estar conectada. Precisa de estar perto dos colegas, da família, dos
amigos. Isso é uma das coisas que dá sentido à vida.”
Mas isso não
significa que o barulho em excesso não seja um problema. Quando se
sente assoberbado pelo dia-a-dia — pelo ruído —, Erling Kagge refugia-se
nas montanhas, no meio da natureza. Acredita que essa é a melhor
maneira de “escutar o silêncio”. Marina Abramovic — que Kagge conheceu e
que cita no livro — para de pensar porque, para ela, o contrário do
silêncio é o cérebro a trabalhar. Mas há outras formas de abrandar: “No
meio dia-a-dia, encontro o silêncio quando acordo de manhã, às vezes
quando tomo o pequeno-almoço, quando caminho para a estação de metro ou
para o trabalho. Quando fico farto de estar no escritório, dou um
pequeno passeio pelo bairro e depois volto. Encontro o silêncio
enquanto ando, enquanto lavo a loiça. Quando fazemos sexo, também nos
fechamos para o mundo, claro”. Tricotar — a moda mais recente na Noruega
— ou tocar um instrumento também podem ser uma forma de encontrar o
silêncio, por mais contraditório que possa parecer. Porque “o silêncio
tem a ver com afastarmo-nos do mundo” — e não virar as costas — “e criar
uma ligação com nós próprios”.
"Não há mal nenhum em nos mudarmos para um mosteiro e
passarmos lá o resto da vida, mas a maioria das pessoas precisa de estar
conectada. Precisa de estar perto dos colegas, da família, dos amigos.
Isso é uma das coisas que dá sentido à vida.”
Aos 54 anos, Erling Kagge passa a maioria do tempo no interior do seu
escritório, em Oslo, de onde gere a editora Kagge Forland (que editou,
entre muitos outros êxitos, o bestseller sobre cortar madeira Norwegian Wood),
que se tornou numa das maiores na Noruega. Os tempos das aventuras nos
polos já lá vão, mas isso não quer dizer que não gostasse de lá voltar.
“Um dia vou voltar à Antártida, mas não tenho pressa”, admitiu. “Há
tantos outros sítios para explorar” e a viagem é “longa e cara”. Além
disso, Kagge acredita que os maiores mistérios estão “no nosso quintal,
em casa”. E o maior de todos “está aqui”, disse, apontado para o
coração. Dentro de nós.
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