Paulo Ramalho*
«Nas suas memórias (Vivir para contarla, 2002) García Marquez
eleva a literatura ao patamar da utopia: “só se deveriam ler os livros
que nos forçam a relê-los”. Cem Anos de Solidão é, precisamente, uma
dessas obras que têm o raro poder de me convocar ciclicamente para
dentro das suas páginas."
Vivemos todos à beira da revelação
e a um passo da irrelevância; sonho e pesadelo, amor e ódio, selvajaria
e generosidade – oscilamos entre a glória e a perdição. Vem isto a
propósito de Cien Años de Soledad, que reli recentemente.
Regresso a esse mundo mágico, povoado de personagens excessivos e
delirantes – mas não será a vida sempre excessiva e delirante…? Não
estará a realidade sempre contaminada de fantasia e inverosimilhança? A
incrível e triste história dos Buendia é a história da nossa
irremediável solidão comum. E a insónia que atinge Macondo é, afinal, a
mesma que nos mantém em vigília, habitados por uma intranquila urgência,
suspensos entre o pavor da aniquilação e o milagre da existência.
Nas suas memórias (Vivir para contarla, 2002) García Marquez eleva a literatura ao patamar da utopia: “só se deveriam ler os livros que nos forçam a relê-los”. Cem Anos de Solidão é,
precisamente, uma dessas obras que têm o raro poder de me convocar
ciclicamente para dentro das suas páginas. Detenho-me, por estes dias,
num tema em especial: o abismo emocional que atravessa o livro,
separando claramente os universos familiares feminino e masculino:
fêmeas pacientes, urdidoras de lares e de famílias, dedicadas ao casto
exercício da virtude ou ao amor de um só homem; machos inconstantes e
erráticos, de paixões volúveis e queda para o adultério e a bastardia.
Penso, por analogia, em Tachia, a amante parisiense de Gabo; penso
também nas duas mulheres do meu avô paterno; penso, enfim, em mim
próprio e na curta lista dos meus pecadilhos de alcova – não haverá aqui
uma constante biológica a considerar? Tenho consciência que piso
terreno escorregadio, minado pelas questões da “igualdade de género”;
sei que é fácil escorregar na casca de banana do politicamente correcto e
cair no palco, em frente da plateia reprovadora – mas, agora que
comecei, devo ir até ao fim. Regressemos, pois, aos Cem Anos de Solidão.
Se os heróis deste livro são o produto
histórico de uma sociedade patriarcal, assente no domínio masculino e na
virilidade exacerbada dos varões da família (lembrem-se os dezassete
filhos do Coronel Aureliano Buendia, tidos com dezassete mulheres
diferentes); se o papel das mulheres da casa é quase sempre secundário,
assentando no hábito da obediência e na repressão dos demónios do prazer
(a avó de Úrsula a queimar os órgãos genitais no fogão, para castigar o
pecado da sensualidade; Úrsula a encerrar-se voluntariamente num cinto
de castidade) – e se tudo isto indicia a relevância dos factores
culturais no comportamento dos personagens –, também não é menos verdade
que a história é percorrida por um sopro de fatalidade a que não será
estranho o imperativo biológico que aprisiona os actores na malha das
suas acções: homens dominados pelos caprichos de uma sensualidade que
salta a cerca dos bons costumes; mulheres que tecem maternais casulos em
torno dos seus lares e aguardam o regresso dos companheiros, com
argumentos de fêmea compassiva. Deixemos agora o atormentado destino dos
Buendia seguir o seu curso anunciado e olhemos com atenção o mundo à
nossa volta. África, Ásia Central, mundo islâmico, ilhas do Pacífico,
tribos ameríndias, hinduísmo tradicional – os comportamentos sexuais da
espécie humana tendem maioritariamente para um padrão poligâmico, ainda
que socialmente codificado e inscrito em matrizes culturais diversas. Se
recuarmos ainda mais, até aos nossos parentes primatas, constataremos
igualmente que a monogamia é uma excepção e os sistemas de acasalamento
da maioria das espécies se baseiam em pequenos grupos ou clãs, onde
diversas fêmeas com a sua prole partilham um macho dominante. Está dito,
não há como recuar: o autor destas linhas é da opinião que a poligamia
está inscrita no código genético da espécie, foi regra nos primeiros
grupos humanos e constitui ainda hoje, nas sociedades onde foi banida,
um poderoso impulso recalcado, que encontra escape na prostituição e nas
relações extraconjugais.
Nunca acreditei na existência de
qualquer diferença entre raças – eduque-se, de criança, um pigmeu em
plena Manhattan e obter-se-á, em adulto, um Nova-iorquino sofisticado,
que caminha com desenvoltura na selva urbana e se sente inseguro no meio
da natureza. Em contrapartida, fui-me apercebendo que todas as
civilizações e culturas são erguidas sobre a diversidade estruturante
dos sexos. Chamemos-lhe complementaridade, se quisermos – mas a verdade é
que homens e mulheres não são exactamente iguais. Como se pode então
falar de igualdade de género…? O terreno de discussão está tão
contaminado por estereótipos sexistas que se torna difícil avançar sem
cair no alçapão do pensamento dogmático. Mas, se conseguirmos evitar as
armadilhas ideológicas dos dois extremos – machismo e feminismo –,
acabaremos por chegar ao essencial: conseguir conciliar a diferença de
género com a igualdade de oportunidades.
E voltamos à questão da poligamia masculina versus
monogamia feminina… Nesse, como noutros campos, a miopia etnocêntrica e
a arrogância evolucionista do mundo ocidental estão na origem de um
processo de condicionamento da realidade que elimina as diferenças
culturais para se instituir como pensamento único. Vivemos, de facto,
numa sociedade de moralismos contraditórios, que mais facilmente
legaliza a prostituição ou a união entre pessoas do mesmo sexo do que
reconhece o direito ao casamento simultâneo – estável e feliz – entre
mais de duas pessoas.
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* É antropólogo e escritor português. Vive em Lisboa.
.©Paulo RamalhoFonte: https://escritores.online/cronicas/paulo-ramalho/
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