segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Jafar Panahi: No Irã, regime faz pessoas terem duas personalidades, afirma cineasta


Cinema: o diretor iraniano Jafar Panahi em cena do filme Isto Não É um Filme". (Foto: Divulgação)

Divulgação

O diretor iraniano Jafar Panahi em cena do longa "Isto Não É um Filme", de 2011


Jafar Panahi é um dos mais aclamados cineastas iranianos: venceu o Leão de Ouro em Veneza com o filme "O Círculo" (2000) e o Urso de Ouro em Berlim por "Táxi Teerã" (2015). Mas sua obra foi banida no Irã, e a fama internacional não impediu que ele fosse preso pela teocracia que vigora em seu país desde a Revolução Islâmica (1979). 

Em 2010, Panahi foi condenado a seis anos de prisão e proibido por 20 anos de fazer filmes, escrever roteiros, sair do país e dar entrevistas, por fazer "propaganda contra a república islâmica". 

Ficou três meses no presídio de Evin. Foi solto após fazer greve de fome, e colocado em prisão domiciliar. Desde então, rodou três longas-metragens clandestinamente –um deles, "Isto Não É um Filme", inteiramente com celular, dentro de casa. 

"Se o regime me prender de novo, vou me sentir melhor, porque saberei que não conseguirei fazer filmes de jeito nenhum. Se eu estou livre e não posso fazer filmes, isso se torna outra prisão", disse Panahi à Folha em seu apartamento em Teerã, na primeira entrevista longa desde 2014, ao lado da mulher, Tahereh Saidi, e de Iggy, sua iguana de estimação. 

*
Folha - O senhor ganhou o Urso de Ouro em Berlim com um filme realizado sob condições muito difíceis [dentro de um táxi]. Que tipo de mensagem isso passa?
Jafar Panahi - Ao fazer meus filmes, mostro aos jovens que é possível trabalhar até nas condições mais sufocantes e restritas. Antes de eu ser condenado, muitos estudantes e jovens cineastas vinham se queixar, dizer que não dava mais para filmar no Irã. 

Mas depois que eles viram que estou fazendo filmes com celular, ninguém mais pode reclamar. Em países onde a ideologia domina, o governo quer que você seja passivo, neutro, e que se distancie de seus ideais. Quando você acha um jeito de atingir seus objetivos, vê que está no caminho certo. Logo depois de ser condenado a ficar 20 anos sem filmar, fiquei muito deprimido, fiz tratamento psiquiátrico por um ano. Aí descobri que o melhor jeito de me livrar dessa depressão era trabalhar. Se não trabalho, não estou vivo. 

Qual é o impacto do regime na população do país?
É importante conhecer uma família iraniana para perceber que o que se vê por fora é diferente do que acontece dentro das casas das pessoas. O regime faz as pessoas terem duas personalidades diferentes, uma que elas mostram lá fora e outra que representa o que elas realmente são. O governo está criando um outro problema social, fazendo as pessoas terem dupla personalidade, criando mentirosos. 

Fiquei surpresa ao ver que muitas pessoas desafiam o regime em vários aspectos do cotidiano —fabricando vinho em casa, mantendo relacionamentos homoafetivos...
Isso é inevitável, até no próprio regime as pessoas têm duas caras. As altas autoridades cometem as maiores transgressões. Nunca tivemos um governo tão corrupto.

Que questões sociais deveriam ser retratadas nos filmes iranianos hoje?
Quando usamos a palavra "dever", nos afastamos do lado artístico do cinema. É exatamente o que o sistema está fazendo. Está dizendo: esse tipo de filme deveria ser feito.

Em "Táxi Teerã", sua sobrinha diz que precisava fazer um filme como atividade para a escola, mas que a professora baixara algumas regras ""mulheres tinham de usar véu, homens e mulheres não podiam se tocar, era preciso evitar discussão de problemas políticos e econômicos e "realismo sórdido". Essas regras ainda valem no Irã?
Eu não fiz "Táxi". 

Não?
O regime fez "Táxi Teerã", as condições que me foram impostas fizeram "Táxi". Todas as acusações e condenações contra mim e o impacto dessa situação sobre meu estado mental levaram a ele.

O que minha sobrinha diz é exatamente o que o sistema determina que não podemos fazer. Não há tolerância para filmes que abordam problemas sociais. Todo ano, cerca de cem filmes são feitos no irã. Mais de 45% são propaganda do governo. Quando eu estava preso, com os olhos vendados, era interrogado por sete, oito horas seguidas. Em determinado momento, disse ao interrogador: "Você estará em algum dos meus filmes, algum dia". O sujeito ficou ofendido. Em "Táxi", ele apareceu: quando saio do carro, penso ter ouvido uma voz, e era a do interrogador. Não acho que a situação vá melhorar com este ou outro presidente. Se continuarmos com o mesmo regime, a situação não vai melhorar.

O sr. não vê abertura?
As coisas não podem melhorar, porque o regime se alimenta dessas questões. Não apenas nas artes, em todos os aspectos. Por exemplo, o túmulo de Ciro [iranianos celebram o dia de Ciro visitando o túmulo do primeiro rei da Pérsia, em Pasárgada, mas neste ano o governo iraniano bloqueou a entrada do local]. Ciro viveu 2.500 anos atrás e foi um progressista em seu tempo, respeitava todas as nacionalidades e povos. Mas o regime tem medo disso. Eles têm algumas desculpas, dizem que [o culto ao rei] vai contra o islã, mas quando Ciro vivia, não existia nem islã, nem cristianismo. O regime só reconhece a história persa depois do islã.

O que o sr. acha de Trump?
Tivemos o nosso Trump, chama-se Mahmoud Ahmadinejad [presidente do Irã de 2005 a 2013]. Ahmadinejad e Trump são iguaizinhos. Pessoas como Trump ou Ahmadinejad não pensam nas consequências de suas palavras ou no futuro, apenas no momentâneo. Só temos de agradecer por esses dois linhas-duras não estarem no poder ao mesmo tempo. Se Ahmadinejad fosse presidente agora, teríamos conflito com certeza.

As ações de Trump podem levar ao desmantelamento do acordo nuclear...
Existe um provérbio persa que diz: quando um louco joga uma pedra em uma roda, cem sábios não conseguem tirá-la de lá. Não podemos fazer nada contra Trump. Se o acordo for cancelado, o povo iraniano vai sofrer, a inflação e o desemprego vão subir [com a volta de algumas sanções]. Os linhas-duras no Irã estão torcendo para isso, porque aí a sociedade ficará mais isolada, o clima de hostilidade os ajudará. Eles precisam do conflito com os EUA para sobreviver. Mas o povo iraniano tem um espírito, um comportamento nacional: eles parecem ter se resignado com a situação, fingem concordar, mas não aceitam, apenas resistem de outras maneiras.

Como o sr., que pareceu ter aceitado sua condenação, mas seguiu fazendo filmes...
Nunca disse que não faria filmes.

Foi difícil desenvolver um novo método para filmar?
Foi muito difícil no começo. Por isso, fiz meu primeiro filme só aqui dentro da minha casa, e o chamei de "Isto Não É um Filme". Aí, com "Táxi Teerã", filmei em outras partes da cidade. O próximo certamente será mais amplo. Talvez eu cubra o país inteiro.

O sr. achará um jeito de fazer?
Insh'Allah [se Deus quiser].

Do que trata o próximo filme?
É surpresa. Você verá quando for lançado.

Hoje em dia, o povo iraniano não assiste a seus filmes?
Mesmo antes da condenação, eu já enfrentava esse problema. Nos festivais de cinema daqui, sempre era o primeiro a entregar meu filme para os organizadores, que nunca o aceitavam. Depois que o filme era escolhido para festivais internacionais, começavam a entrar cópias ilegais, e as pessoas assistiam. Algumas TVs baseadas fora do Irã também os exibem.

O sr pode dar entrevistas?
Não. Também não posso fazer filmes. Tenho 20 anos de restrição para rodar filmes, escrever roteiro, dar entrevista e viajar para fora do país. Eles achavam que eu iria embora do Irã depois dessa condenação. Mas a única parte da condenação que eu respeitei foi a proibição de sair do país.

O sr. vai ter problemas se eu publicar esta entrevista?
Nas vezes em que fui ao Brasil, todos foram tão calorosos que faço questão de te receber e de dar essa entrevista [ele veio três vezes para participar da Mostra de São Paulo]. O que eles vão fazer? Me mandar de volta para a prisão, aumentar minha pena para 120 anos? Não vou estar vivo. Se o regime me prender de novo, de certa maneira vou me sentir melhor, porque saberei que não conseguirei fazer filmes de jeito nenhum. Se estou livre e não posso fazer filmes, isso se torna outra prisão.
A jornalista PATRÍCIA CAMPOS MELLO viajou a convite do governo do Irã 

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RAIO-X
 
Nome
Jafar Panahi, 57
Formação
Faculdade de Cinema e TV de Teerã
Carreira
- Foi assistente de Abbas Kiarostami em "Através das Oliveiras" (1994)
- Estreou na direção de longas-metragens com "O Balão Branco" (1995)
- Tem trabalhos premiados em Berlim, Cannes, Veneza, Locarno e São Paulo, entre outras sedes de festivais

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Filmografia - Jafar Panahi (longas)
 
Taxi Teerã (2015)
Proibido pelo governo de fazer filmes, Panahi se passa por taxista e filma as viagens para tratar de mudanças sociais do pais. Levou o Urso de Ouro em Berlim

Reprodução
 
Cortinas Fechadas (2013)
Um roteirista recluso que vive apenas com seu cachorro recebe a visita de uma fugitiva. Prêmio de melhor roteiro em Berlim

Isto Não é um Filme (2011)
Documentário acompanha período de reclusão do cineasta enquanto aguarda seu veredicto

Fora do Jogo (2006)
Em tom cômico, acompanha garotas que gostariam de ver uma partida de futebol, mas são proibidas por lei de fazê-lo. Ganhou o Prêmio do Júri em Berlim

Ouro Carmim (2003)
Com roteiro de Abbas Kiarostami, drama mostra um entregador de pizza que mergulha na corrupção e violência urbana. Conquistou prêmio na mostra Um Certo Olhar em Cannes

O Círculo (2000)
Leão de Ouro em Veneza, filme mergulha no cotidiano de repressão e abusos das mulheres no Irã

Reprodução
O Espelho (1997)
A história de uma garota que se perde da mãe e tenta voltar para casa mistura ficção e documentário para produzir uma crítica social e política delicada

O Balão Branco (1995)
Vencedor do prêmio Câmera de Ouro em Cannes para filmes de estreia e do Prêmio do Júri na Mostra de São Paulo, usa o olhar de uma garotinha para tratar da sociedade iraniana contemporânea

Editoria de arte  
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/11/1934961-no-ira-regime-faz-pessoas-terem-duas-personalidades-afirma-cineasta.shtml                                          

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