Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Esse sadismo em relação aos atrasados do Enem é filho direto da
dramatização irresponsável feita anualmente pelos veículos de imprensa.
Ano a ano fomos vendo essa reprodução de imagens (fotógrafos e
cinegrafistas invadindo as vidas dos estudantes, em nome da
notícia-mercadoria), banalizando-as, até que pessoas suficientemente
canalhas construíram o tal “show dos atrasados”.
O tema esteve entre os destaques mundiais do Twitter, no domingo. Com
a ajuda da imprensa, consolida-se o hábito de zombar de quem chega
atrasado no vestibular. O drama pessoal dos demais – um ano inteiro de
estudos, os planos profissionais adiados – se torna apenas um motivo
para diversão. Uma diversão baseada na humilhação. Em São Paulo, em
Porto Alegre, os sádicos se multiplicam.
Difícil imaginar muitas outras coisas que ilustrem o momento de
implosão ética em que vivemos no Brasil. E nesse caso temos de falar de
Brasil, sim. Podem mudar aquele chavão do “país das jabuticabas”, a
fruta a ilustrar nossas características únicas. Somos o país do “show
dos atrasados” – de gente abjeta que se orgulha dessa condição, da
naturalização da psicopatia como comportamento social. Do orgulho da
boçalidade.
A SOCIEDADE BRUTA E O JORNALISMO BUFO
Os pauteiros sem imaginação (ou conformados com diretrizes toscas de
seus patrões) construíram parte dessa narrativa durante décadas.
Evadiram choros, rostos desesperados. No limite do grotesco. Essa
invasão foi e é também uma invasão estética, um atentado simultâneo ao
bom gosto e à compaixão. Os psicopatazinhos não sabem, mas foram
gestados por essa era de reprodutibilidade do constrangimento.
Estamos diante de uma sociedade bruta acorrentada a um jornalismo bufo, ambos a exibir seus simulacros
de dentes, suas bocas arreganhadas cheias de desprezo, seus cérebros
deformados e seu coração exibicionista. Regride-se porque alguém apontou
para esse caminho antes, não apenas porque 200 – ou 2 milhões de –
imbecis tiveram a ideia “genial” de troçar da desgraça alheia.
(Nunca isoladamente, claro. Não fariam isso sozinhos. Pois são
covardes. O movimento é de massa. Atos que esses jovens não fariam
individualmente são feitos sob a blindagem da “festa popular”. E das
redes sociais.)
ZOMBETEIROS NEM ORIGINAIS SÃO
E agora chegamos àquela parte onde o pai homenageia o filho – dando a
ele cobertura. Só que o “show dos atrasados” não é o filho, é o pai. A
imprensa já fazia esse show, os filhos fiéis (e não degenerados,
portanto) somente embaralharam os sentimentos que já eram
espetacularizados. Essas tristes faces que vemos zombando dos atrasados,
portanto, nem originais são, são variações em torno da mesma falta de
horizontes.
Como uma manchete do Notícias Populares dos anos 90, feita por
jornalistas cínicos: “Retalhou a orelha do aluninho”. Sobre um crime
cometido por uma professora. Qual a diferença em relação ao sadismo
atual? A institucionalização e o singelo fato de que profissionais da
comunicação deveriam estar entre os primeiros a promover direitos
elementares. Hoje retratam os que zombam, emprestam a eles seus 15
segundos de curtidas.
Os sorrisos e gargalhadas não são sorrisos e gargalhadas, são
contrações faciais parentes das mesmas contrações faciais protocolares
de antes. A empatia anterior não era exatamente autêntica. Podia até
mobilizar empatias autênticas, mas era uma farsa. Os novos cafajestes
apenas capturaram esse desprezo no ar e o transformaram em carnaval. É o
bloco na rua que eles têm para hoje.
LEMBRAM-SE DE BONINHO?
Como se estivéssemos assistindo a um entrudo, um entrudo midiatizado.
Qualquer semelhança com Boninho atirando ovos em pedestres não será
mera coincidência. Engana-se quem pensa que os vestibulandos atrasados
são as únicas vítimas. Somos todos nós, os que vivemos sob a órbita
dessa mentalidade regressiva. Do jeito que vai teremos de lutar com
clavas contra ela, até que o último portão da caverna nos separe.
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Fonte: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2017/11/06/entrudo-midiatico-show-dos-atrasados-e-a-nova-jabuticaba-brasileira/
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