Estudiosa da religião, Armstrong foi freira por sete anos e defende que o ser humano deve acreditar em sua própria transcendência
Por Jorge Marirrodriga
De Deus ao Twitter. Da música ao jihadismo.
Karen Armstrong transforma uma conversa numa montanha russa de
conceitos, na qual aparece, recorrente, a palavra “compaixão” como
bálsamo para muitos dos problemas que inquietam esta sociedade – que, na
sua opinião, não é o que acredita ser. Na organização Charter for
Compassion, ela se esforça para transformar um mundo onde as pessoas
pensam excessivamente em si mesmas e muito pouco nas demais.
Pequena e enérgica, Armstrong fala durante este encontro em
Oviedo, na Espanha, por ocasião de seu recente Prêmio Princesa das
Astúrias de Ciências Sociais, sobre as semelhanças entre as religiões.
E expressa espanto ante certas modas atuais que se apresentam como
libertadoras. Apaixonada pelo fenômeno religioso, ela explicou em
detalhes, nas páginas do livro Los Orígenes del Fundamentalismo (As Origens do Fundamentalismo, ainda sem edição no Brasil), por que ocorre a radicalização religiosa. E ressaltou no ensaio Em Nome de Deus, editado pela Companhia das Letras, a importância para o ser humano de acreditar na própria transcendência.
Pergunta. A senhora diz que vivemos numa
sociedade “essencialmente conservadora”, mas “altamente dogmática”. No
entanto, se sairmos às ruas para perguntar, quase ninguém se reconhecerá
como dogmático – e muitos, inclusive, se orgulharão de ser tolerantes.
Resposta. Realmente não gosto da palavra
tolerante. Se analisarmos sua origem, veremos que ela tem uma raiz
latina que significa “suportar algo”. É a linguagem do vencedor que diz
que vai tolerar a minoria. Temos que ir além disso, pois vivemos num
mundo global cada vez mais interdependente. Se a Bolsa cai num
determinado lugar, os mercados também cairão no mundo todo nesse mesmo
dia. Estamos conectados eletronicamente. O que acontece na Síria
hoje pode ter repercussões aqui amanhã, e já vimos isso. Não podemos
viver mais sem os outros, e ainda assim vemos pessoas que se
entrincheiram em guetos nacionalistas.
Embora todos saibam que têm que ser tolerantes, isso é o que acontece.
Acredito que os meios de comunicação também tenham a sua parcela de
responsabilidade.
P. Em que sentido?
R. Dou um exemplo. Eu escrevo sobre o islã. Desde o 11 de Setembro,
foram realizadas pesquisas que deveriam ser relevantes para o público
em geral, mas as pessoas nunca ouviram falar delas. Depois dos
atentados, um psiquiatra forense que não é exatamente um liberal, e sim
um ex-agente da CIA, foi enviado a Guantánamo para entrevistar os
prisioneiros e viu que só 20% deles tinham uma educação muçulmana. Os
demais eram convertidos – alguns autodidatas – ou não eram praticantes
até se converterem ao radicalismo. Não respondem, portanto, à imagem que
temos dos fundamentalistas. Inclusive dois jovens que deixaram o Reino
Unido para combater com o Estado Islâmico (EI) na Síria haviam encomendado na Amazon um livro chamado Islam for Dummies
(islã para bobos), o que mostra sua absoluta ignorância! Após o 11 de
Setembro, o instituto Gallup fez sua maior pesquisa até então realizada:
em 35 países de maioria muçulmana e durante cinco anos. Os
participantes deviam responder se justificavam os atentados, e 93%
disseram que não. E seus motivos foram totalmente religiosos, citando o
Corão. O interessante é que, para os 7% que justificavam o 11 de
Setembro, as razões não eram religiosas, mas políticas. Esse tipo de
coisa deveria aparecer nas capas de jornais como o The New York Times
para que o público tivesse uma ideia mais completa do problema que
enfrentamos. É muito fácil dizer que isso é coisa da religião, mas o
terrorismo, seja qual for a sua motivação, é sempre político.
P. O mundo laico identifica dogmatismo com
religião. Em muitos ambientes, declarar que se professa uma religião é
como segurar um cartaz com a palavra dogmático escrita nele.
R. Continuemos com o exemplo do islã. O
dogmatismo que se vive nele é uma coisa relativamente recente. Até o
século XIX, o sufismo era a tendência dominante, e um sufi lhe dirá que
ele não é nem muçulmano, nem cristão, nem judeu. Que se sente em casa
numa mesquita, numa igreja e numa sinagoga. Infelizmente, isso mudou por
causa da Arábia Saudita, que conta com um grande apoio do Ocidente graças ao petróleo
e que exportou uma forma muito peculiar do islã que remonta apenas ao
século XIX. Várias gerações de jovens muçulmanos cresceram com essa
versão muito limitada de sua religião.
P. A senhora diz que, durante o século
passado, o fanatismo ganhou terreno nas três grandes religiões. Mas a
percepção nas sociedades ocidentais não é essa. Não há um terrorismo
cristão matando gente.
R. Sim, mas existe um terrorismo budista matando gente no Sri Lanka
e, perdão que lhe diga isso, estou sentada num hotel que se chama
Reconquista, recordando que aqui se lutou em nome de Deus. Embora soe
estranho, os jihadistas não são particularmente religiosos. Se fossem,
insisto, eles não fariam essas coisas. E a mídia é responsável por não
ressaltar, com a suficiente determinação, ideias que vão contra essa
imagem. Desde que começamos a nos transformar num mundo global, no
século XX, ganhou projeção a ideia de como as religiões são diferentes:
judaísmo, cristianismo e islã. E existem pessoas que se refugiaram em
pequenos grupos que denominamos fundamentalistas. Isso começou nos
Estados Unidos e, posteriormente, chegou ao Oriente Médio
a partir da Guerra dos Seis Dias. A derrota árabe nesse conflito foi
vivida como um drama, e tudo isso levou a um sentimento de profundo medo
da aniquilação, do qual esses grupos se aproveitam.
P. Desde a Revolução Francesa, é complicado
o encaixe da religião na sociedade moderna. A senhora enfatiza que a
religião é um fator que ajuda a manter as coisas tranquilas, mas a
realidade parece seguir na direção contrária.
R. Atualmente, escrevo um livro sobre a
importância da escritura nas religiões. E, para a minha surpresa, vi que
todas podem nos ajudar a lidar com nosso presente. Por exemplo, a
religião hindu trata do meio ambiente... e temos um furacão avançando
rumo à Irlanda [em referência à tempestade Ofélia, que atingiu o país
europeu em outubro]. As religiões monoteístas sempre insistiram na
igualdade e na justiça. É a mensagem do Corão, do Evangelho e dos
profetas de Israel, mas não encontramos ainda uma motivação racional
para promover a universalização dos direitos humanos. E são as
religiões, e não os Estados, que hoje falam em nome dos pobres. Aí está o
Papa – nunca me imaginei dizendo isso – por exemplo. Realmente gosto do
que ele está fazendo. Está colocando o dedo na ferida, e não vejo
muitos outros fazendo isso. A separação entre Igreja e Estado sempre é
boa, mas a religião pode servir de contrapeso.
P. Façamos um silogismo. As religiões,
segundo a sua obra, são algo essencialmente prático. A tecnologia também
é prática. É a nova religião?
R. Dá um pouco de medo. Veja o caso do
Twitter. A ideia de que você pode expressar pensamentos substanciosos em
140 caracteres, ou quantos forem, é perigosa, pois reduz a
complexidade. Isso sem falar de todo o ódio que aparece e que as pessoas
podem lançar sem estar cara a cara com os interlocutores. Supostamente é
algo que serve para unir, mas, ao mesmo tempo, está fazendo aflorar
alguns de nossos piores defeitos. Apesar disso, é curioso como as
pessoas preferem falar dessa maneira em vez de fazê-lo pessoalmente. É
até mesmo dramático ver como um grupo sentado ao redor de uma mesa, em
vez de conversar, concentra-se individualmente em seus telefones. É
estranho, pois é como sair do próprio corpo. Os neurologistas dizem que
aprendemos através dele; por isso os rituais são importantes. Não é por
acaso que um muçulmano reza voltado para Meca e que o canto tenha sido
tão importante na Idade Média. Esse aprendizado com o corpo está se
perdendo, especialmente desde o Iluminismo, e a tecnologia é o último
passo nessa direção.
P. Causa-lhe preocupação que grande parte das novas gerações seja incapaz de processar ideias complexas?
R. Isso poderia acontecer. A tecnologia
está mudando a linguagem e a maneira de falar e escrever. Muita gente é
incapaz de escrever. Mas, para ser sincera, não escrevemos durante
tanto tempo assim; somente poucas pessoas podiam fazê-lo até o século
XIX. E devo dizer que, além do Papa, tampouco vejo as pessoas no campo
da religião utilizando a complexidade. O islã, por culpa da influência
saudita, está sofrendo o crescimento do dogmatismo e da simplicidade mal
entendida. E não é o único. Representantes da Igreja da Inglaterra se
reuniram uma vez para debater a questão dos padres gays. Pudemos ver
isso, porque foi retransmitido pela BBC, e eles falavam entre si com tanto ódio...
P. Existe remédio para isso?
R. Recordar a regra de ouro: nunca faça aos
outros o que não deseja que façam com você. Enquanto não aprendermos a
aplicar isso de uma maneira global, incluindo a todos, gostemos deles ou
não, o mundo simplesmente não será um lugar onde se possa viver. É
muito interessante ver como muitas das pessoas que oferecem ajuda não
são os líderes religiosos, e sim homens de negócios, o que tem seu lado
bom porque eles sabem como fazer as coisas de uma maneira prática.
Alguns descobriram que a avareza e o egoísmo são ruins para o negócio em
si. Deveríamos estar falando de como fazer para que as pessoas pensem
nos demais. Buda, Cristo e Maomé não viveram em sociedades pacíficas, e
sim mergulhadas em instabilidade, e os três insistiram que não se pode
aplicar a compaixão somente para os do seu grupo.
P. Hoje, no entanto, como convencer alguém de que ter compaixão não é ser fraco?
R. É um assunto complicado. Parte do
problema não tem a ver com ser forte ou fraco, mas com o fato de que
estamos transformando a religião numa espécie de viagem da pessoa em si
mesma. Há muita ioga que acaba parecendo um Cubo de Rubik (ou cubo
mágico), algo do tipo “seja mais feliz”. O mindfulness [forma
de meditação também conhecida como “atenção plena”], por exemplo, é uma
loucura. Tudo se baseia em estar em contato com você mesmo, com os seus
sentimentos, quando na verdade o ponto central do mindfulness
budista consiste justamente no contrário: em renunciar completamente a
você mesmo! Existem pessoas que te dizem: “Ok, mas começo tendo
compaixão por mim mesma.” Isso é ficar muito aquém do objetivo. É
preciso ir até o final, compreender e amar os inimigos, entendendo o que
isso realmente significa. Não se trata de algo sentimental, e sim de
algo mais prático. Não é se amar, é se ajudar e se importar com os
interesses dos outros. Se o Império Britânico tivesse se comportado
segundo essa regra de ouro, não teríamos tantos problemas hoje no
Oriente Médio.
P. O lema da diplomacia deveria ser algo como “não faça o que não deseja que lhe façam”?
R. Sim. Após o atentado ao Charlie Hebdo
em Paris, estive na Jordânia num encontro com a família real, políticos
e diplomatas. Havia ali uma pessoa que tinha trabalhado no acordo de
paz com Israel. Em certo momento, ela disse: “O Ocidente perdeu sua
humanidade”, e isso me deixou comovida. Ela dizia isso pela quantidade
de pessoas que morrem – inclusive hoje – em países como Iraque, Síria,
Afeganistão e Paquistão por ataques de drones ocidentais que nunca são
mencionados. Estamos dando a impressão ao mundo de que certas vidas
valem mais que outras. Deveríamos estabelecer relações fraternais entre
cidades, mas não como ocorre na Europa com um bonito povoado alemão, e
sim com lugares como Karachi; com pessoas as quais possamos dizer:
“Conte-nos o que estamos fazendo de errado”.
P. E, no meio desse panorama, a senhora reivindica a música.
R. Sim, claro. A música é significado sem
palavras. Nos toca profundamente. É uma arte física, não uma viagem
mental. Durante muito tempo, os instrumentos foram fabricados com tripas
e tendões, algo muito físico, mas ao mesmo tempo [a música] é
misteriosa porque chega até nós sem palavras e ajuda na nossa própria
transcendência. Agora que estou mais velha, o que preenche meu coração
são os cantos gregorianos que aprendi sendo freira. O que os monges
gregos fazem é incrível: o canto faz brotar o sentido. Limitar-se a ler
as escrituras religiosas não proporciona isso. Assim, Haendel e Bach vêm
resgatar as cerimônias protestantes, para dar a elas essa
dimensão. O silêncio também é importantíssimo. Por exemplo, esse momento
que ocorre no final de um concerto, quando a orquestra terminou de
tocar mas ninguém ainda começou a aplaudir. É um momento muito intenso.
P. Se essa música é tão importante, o que escutamos diariamente em todos os lugares é uma perversão da música?
R. Não sei. Eu era uma grande fã de Bob
Dylan. Ele é inconformista e tem letras maravilhosas. Quando deixei de
ser freira, foi a primeira voz moderna que escutei. Mas não entendo a
música atual. Dum-dum-dum. A música deve levar nossa atenção a alguma
coisa, não apenas rememorar uma espécie de tambor tribal. É algo que
deveria empurrar você para fora de si. Como dizia Buda, depois de
conseguir a iluminação você deve voltar a se colocar no lugar de um
macaco e praticar a compaixão com todos os seres humanos. Nenhuma dessas
grandes pessoas ficou no alto da colina praticando mindfulness
e coisas do tipo. Buda enviou seus monges entre as pessoas. Jesus não
ficou sentado à mesa; inclusive era considerado um criador de problemas.
Confúcio foi falar com um imperador sobre como mudar a China; e Maomé
regressou a Meca para enfrentar o caos que havia ali naquele momento.
P. A religião, então, não é algo sobre o céu, e sim sobre o mercado?
R. É preciso ir ao mercado e levar algo.
Maomé dizia que você não pode professar uma fé se puder dormir tranquilo
sabendo que alguém passa fome. E nós hoje sabemos da fome e da
devastação em grande escala porque as vemos nas telas todas as noites.
Isso deveria nos trazer um profundo incômodo, pois nos mostra como nossa
vida é incrivelmente privilegiada. Como prática espiritual, deveríamos
conservar conosco uma dessas terríveis imagens e recordá-la três vezes
por dia. Pensar nessa criança doente e faminta desde a primeira hora da
manhã. Podemos acreditar que não se pode fazer nada, mas não devemos
cair na autoindulgência de dizer: “Sou muito sensível a isso, mas não
posso.” O incômodo é o que nos fará sair da nossa armadura.
P. Mas agora podemos serenar nossa consciência dando likes ou compartilhando fotos no Facebook.
R. Mas não é suficiente. É um pouco
perverso ter um instante de compaixão e depois passar para outra coisa.
Sentir-se incomodado com a realidade é bom; caso contrário, algo
estranho está acontecendo. Você deveria se sentir incomodado!
--------
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/07/eps/1510080049_545323.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário