Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada*
Com o valor, certamente astronómico, da hipotética venda da
Pietà, milhões de pobres, que vivem agora na miséria, poderiam ser
significativamente ajudados.
Não é preciso ser muito perspicaz para adivinhar o comentário que,
certamente, muitos não católicos terão feito a propósito da
instituição, pelo Papa Francisco, do Dia Mundial dos Pobres: mais do que
criar uma efeméride deste género, que pouco ou nada vai beneficiar os
mais indigentes, melhor seria que o Vaticano abrisse mão dos seus
fabulosos tesouros e, com o valor da venda desses bens, ajudasse
efectivamente os pobres. Caso contrário, o Dia Mundial dos Pobres, que
teve a sua primeira edição no passado 19 de Novembro, arrisca-se a ser
uma rematada hipocrisia.
A alegada duplicidade da Igreja em relação à questão social, recorda a
falsa lenda da cínica dama que, ricamente vestida e ostentando luxuosas
jóias, assim teria respondido a um mendigo, à saída de um baile de
caridade: – Como é que o senhor se atreve a pedir-me esmola, quando
estive a noite toda a dançar por sua causa?!
A imensa riqueza da Igreja católica, nomeadamente a do Vaticano, é um
tópico recorrentemente referido pelos anticlericais. Em abono da
verdade, não se pode deixar de reconhecer que a Basílica de São Pedro, o
palácio apostólico, a Capela Sixtina, a biblioteca e os Museus
Vaticanos encerram obras de arte de incalculável valor. É certo que
esses tesouros não são directamente rentáveis – é provável que as
receitas decorrentes da sua exposição ao público não sirvam sequer para
cobrir os gastos inerentes à sua conservação – mas não se pode negar
que, a venda de algumas dessas obras de arte, seria suficiente para
matar a fome a muita gente.
Pense-se, por exemplo, na ‘Pietà’ de Miguel ngelo: não sendo essa
famosa imagem de Nossa Senhora da Piedade essencial à missão da Igreja,
porque não se promove a sua venda, em leilão mundial? Os 450 milhões de
dólares por que foi recentemente arrematado o quadro ‘Salvator Mundi’,
de Leonardo da Vinci, poderiam ser facilmente ultrapassados pela
‘Pietà’. Com o valor certamente astronómico dessa extraordinária
receita, milhões de pobres, que vivem agora na maior miséria, poderiam
ver significativamente melhorada a sua vida.
É verdade. Como verdade é também que esta mesma crítica se poderia
fazer a outras entidades, a começar pelo Estado português. É
significativo que, mesmo nos tempos da mais severa austeridade nacional,
ninguém tenha sugerido que o Museu Nacional de Arte Antiga vendesse
algumas das suas obras mais valiosas – como, por exemplo, o tríptico de
Nuno Gonçalves – mesmo sabendo que uma tal alienação iria permitir ao
Estado auferir uma receita não despicienda. Mais ainda, foi precisamente
em 2015 e 2016 que, paradoxalmente, se lançou uma campanha nacional
para a adquisição, por 750 mil euros, de ‘A adoração dos Magos’, de
Domingos António Sequeira. Felizmente conseguiu-se, por subscrição
pública, resgatar essa obra e devolvê-la ao património nacional.
Curiosamente, não consta que alguém tenha considerado hipócrita aquela
campanha…
Também até agora não se ouviu, que se saiba, nenhuma voz reclamando a
venda desse quadro, ou de outro qualquer tesouro nacional, em proveito
das vítimas dos incêndios. Ninguém considerou hipócritas a presidência
da república, o parlamento ou o governo, pelo facto de não terem
disponibilizado os bens dos museus nacionais para esse efeito. Os
partidos políticos e as centrais sindicais, sempre tão preocupados com
os pobres, também não avançaram com nenhuma proposta nesse sentido, sem
que ninguém os tivesse acusado de farisaísmo. Pelos vistos, a hipocrisia
é uma virtude exclusiva dos católicos e da respectiva Igreja…
Por incrível que pareça, o que muitos queriam que a Igreja fizesse
com os seus bens, já aconteceu no nosso país. Com efeito, com o
liberalismo, todos os conventos masculinos foram extintos, bem como os
femininos, embora estes só depois da morte da última religiosa. Alguns
dos conventos expropriados e os seus recheios foram integrados no
património nacional, mas a maior parte desses bens imóveis e móveis
foram vendidos em hasta pública e depois vorazmente delapidados.
Edifícios, imagens de arte sacra e bibliotecas de enorme valor artístico
e cultural, que as ordens religiosas tinham, durante séculos, criado e
conservado, a bem da nação, perderam-se para sempre. Henrique Leitão e
Luana Giurgevich publicaram, recentemente, numa obra de referência
(‘Clavis bibliothecarum’, 2016), os catálogos e inventários das
instituições religiosas em Portugal, até 1834. Mais de quatrocentas
bibliotecas desapareceram com essa catástrofe cultural, só comparável ao
terramoto de 1755 e à tragédia que foi, para o ensino nacional e a
cultura científica portuguesa, a expulsão dos jesuítas, em 1759.
Que aconteceu ao quadro ‘Salvator Mundi’, recentemente comprado em
leilão, por um desconhecido multimilionário? Pura e simplesmente
desapareceu, para o público em geral, que já o não pode contemplar:
infelizmente, pôde mais o poder económico de um só do que o legítimo
interesse cultural de todos. O mesmo aconteceria à ‘Pietà’, ou aos
outros tesouros artísticos do Vaticano, se tivessem o mesmo destino.
Esses bens são, de facto, da humanidade; a Igreja católica apenas os
conserva e garante que estejam à disposição de todos, sobretudo dos mais
pobres. Qualquer sem-abrigo pode agora entrar na Basílica de São Pedro e
contemplar, gratuitamente e durante o tempo que quiser, esta magnífica
escultura de Miguel Ângelo, que lhe estaria interdita se fosse
propriedade privada, como é agora o ‘Salvator Mundi’. Se essa imagem
mariana fosse também eventualmente leiloada, seriam todos os pobres os
principais prejudicados, mesmo que o dinheiro da sua venda revertesse a
favor de alguns deles. É porque a ‘Pietà’ é da Igreja que é de todos
nós, também dos não-crentes e, sobretudo, dos pobres.
Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre, para que todos fossemos ricos
na sua pobreza (cf. 2Cor 8, 9). A sua Igreja, sendo pobre e para os
pobres, como recordou o Papa Francisco, fez-se rica, para que todos os
pobres possam ser ricos com a sua riqueza.
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* O Padre Gonçalo Nuno
Ary Portocarrero de Almada nasceu em Haia, Holanda, a 1 de Maio de
1958. Licenciou-se em Direito na Universidade de Madrid (Complutense) e,
posteriormente, doutorou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa
Cruz, em Roma. Ordenado sacerdote em 1986, exerce desde então o
respectivo ministério no âmbito da prelatura do Opus Dei. Além de escrever
regularmente na imprensa periódica, é autor, entre outras obras, de Histórias
e Morais (Alêtheia, 2011) e co-autor de Auto-de-Fé, a Igreja na inquisição da opinião pública.
Fonte: http://observador.pt/opiniao/o-dia-mundial-dos-pobres-uma-hipocrisia/
Imagem da Internet
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