domingo, 12 de novembro de 2017

O menino e sua mãe

Lya Luft*

 Maria e a criança Vetores De Stock Royalty-Free

No dia 2 de novembro, Finados, a morte - que tudo comanda - levou um de meus filhos. André, um gigante de corpo e alma, belíssimo por dentro e por fora, morreu na plenitude da vida, fazendo o que mais amava: surfando nas águas verdes de Florianópolis, onde, embora trabalhando na África, ele e sua mulher residiam. Ainda incapaz de escrever coisas coordenadas, reproduzo aqui, para meus leitores, o trecho da página 67 de meu novo livro, A Casa Inventada, que já está nas livrarias. O menino, então com uns sete anos, era o André. 

Um menino e sua mãe voltavam das compras no ônibus quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio "de verdade", dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. De vez em quando, ele passava a mão no pacote: 

- Parece mentira, né, mãe? - olhar sonhador daqueles olhos grandes de um azul indescritível. 

- Mãe, que igreja é essa? 

- Nossa Senhora Auxiliadora. 

- Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma? 

- É uma, sim, filho, mas ela tem muitos nomes. 

- E o Nosso Senhor é São Pedro, né? Marido dela. 

- Não, é Jesus. Quem se casou com ela foi São José. São Pedro era amigo de Jesus - a mãe suspirou: não praticar muita religião dava nisso. 

- Ah... E por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? - os olhos azuis começavam a deixar a mãe inquieta. 

- Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho. 

- Mas o José não era pai dele? 

- Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adotivo. 

- Então Jesus não nasceu da sementinha do José? 

O silêncio no ônibus já meio vazio parecia imenso. O menino falava em voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa. 

- Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre. 

- Ué, então não foi como nas pessoas? - agora o silêncio podia ser cortado com faca. A mãe se fez de distraída, mas o menino pensava, concentrado. 

- Mãe, como é que antigamente as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter bebê, se ninguém tinha ensinado a elas? 

- Ora, filho, essas coisas a natureza ensina. 

- Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente. 

- Quer dizer, quando a gente cresce, aprende por si. 

- Mãe, olha, nessa placa estava escrito Rua Mozart! Eu acho que ele mora aqui! 

- Ele quem? 

- O Mozart, mãe. Quem ia ser? 

- Não, filho, ele viveu na Europa. 

- Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos, onde moram pessoas importantes. 

Finalmente desembarcaram. Parado na calçada, sol nos cabelos claros, o menino retomou seu ar sonhador ainda segurando o pacote. 

- Mãe, como eu tenho um pai bom, né? 

E acrescentou depressa: 

- Mãe também, claro...
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* Escritora.
Fonte:  http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=1f689175473dcc4f921a76933e45bbb5
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