Lya Luft*
No dia 2 de novembro, Finados, a
morte - que tudo comanda - levou um de meus filhos. André, um gigante de
corpo e alma, belíssimo por dentro e por fora, morreu na plenitude da
vida, fazendo o que mais amava: surfando nas águas verdes de
Florianópolis, onde, embora trabalhando na África, ele e sua mulher
residiam. Ainda incapaz de escrever coisas coordenadas, reproduzo aqui,
para meus leitores, o trecho da página 67 de meu novo livro, A Casa
Inventada, que já está nas livrarias. O menino, então com uns sete anos,
era o André.
Um menino e sua mãe voltavam das compras no ônibus
quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio
"de verdade", dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. De vez em
quando, ele passava a mão no pacote:
- Parece mentira, né, mãe? - olhar sonhador daqueles olhos grandes de um azul indescritível.
- Mãe, que igreja é essa?
- Nossa Senhora Auxiliadora.
- Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma?
- É uma, sim, filho, mas ela tem muitos nomes.
- E o Nosso Senhor é São Pedro, né? Marido dela.
- Não, é Jesus. Quem se casou com ela foi São José. São Pedro era amigo
de Jesus - a mãe suspirou: não praticar muita religião dava nisso.
- Ah... E por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa
Senhora? - os olhos azuis começavam a deixar a mãe inquieta.
- Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho.
- Mas o José não era pai dele?
- Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adotivo.
- Então Jesus não nasceu da sementinha do José?
O silêncio no ônibus já meio vazio parecia imenso. O menino falava em
voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.
- Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre.
- Ué, então não foi como nas pessoas? - agora o silêncio podia ser
cortado com faca. A mãe se fez de distraída, mas o menino pensava,
concentrado.
- Mãe, como é que antigamente as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter bebê, se ninguém tinha ensinado a elas?
- Ora, filho, essas coisas a natureza ensina.
- Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente.
- Quer dizer, quando a gente cresce, aprende por si.
- Mãe, olha, nessa placa estava escrito Rua Mozart! Eu acho que ele mora aqui!
- Ele quem?
- O Mozart, mãe. Quem ia ser?
- Não, filho, ele viveu na Europa.
- Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos, onde moram pessoas importantes.
Finalmente desembarcaram. Parado na calçada, sol nos cabelos claros, o
menino retomou seu ar sonhador ainda segurando o pacote.
- Mãe, como eu tenho um pai bom, né?
E acrescentou depressa:
- Mãe também, claro...
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* Escritora.
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=1f689175473dcc4f921a76933e45bbb5
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