terça-feira, 28 de novembro de 2017

O homem perante a morte


Paulo de Almeida Sande*
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Mas tremo, perplexo perante uma sociedade que vive cada vez mais depressa a esconder de si própria a única realidade indiscutível. Não, meus amigos, nenhum de nós viverá eternamente.

O que fazer, meus amigos, quando nos morre um amigo?

Morreu o Pedro, morreu o João, morreu o Alexandre. Que fazer?

Como viver com a sua perda? De que forma celebrar a vida dos que morrem, nossos amigos ou familiares, se na sua morte perdemos também um pouco de nós mesmos?

Vivemos um tempo estranho, já falei sobre isso neste jornal. E se me repito é porque, auto-citando-me, “sem a pugnacidade da repetição, sem a insistência… em assuntos que incomodam, (eles) e até a morte, continuarão a ser tabu na sociedade moderna, egoísta e egotista”. Philip Ariès, em “O Homem perante a Morte”, definiu assim a relação do ser humano moderno com a morte física: ocultamo-la como se ela não existisse; escondemo-la nos hospitais, longe da vista dos que nos amam; extinguimos o luto, acelerando o processo de esquecimento.

É difícil não concordar. Vivemos a morte dos outros, mesmo dos amigos, como um incómodo. Um rápido ritual, um curto velório e um funeral a despachar, que à tarde há reunião.

Hoje, meu amigo, conhecemo-nos há 40 anos, ou mais, parece que foi mais, que foi sempre, perante o fim da tua vida a irromper sem cerimónia pela minha, é a vida que viveste antes do fim, tão longa e curta, que quero celebrar. Todos nós, perecíveis que somos, começamos e acabamos. Todos nós, e como nós os outros, acabam. Morrem. Fazem falta. Farão?

A semana passada morreu o Pedro Rolo Duarte, morreu o João Ricardo, e os seus nomes foram escritos, ditos nas televisões, multiplicados nas redes sociais. Farão falta? Fazes falta Pedro? Fazes falta João? “Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém… Sem ti correrá tudo sem ti”. Vêem, até o Álvaro acha que vocês não fazem falta, que o Mundo continuará sem a vossa presença.

E é verdade, sabem? O poema de Álvaro de Campos continua a ser um monumento à natureza humana e à morte, que a define. “Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem, Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? És importante para ti, porque é a ti que te sentes. És tudo para ti, porque para ti és o universo, … És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?”.

São. Era Pedro, era João, eram todos os nossos outros mortos assim, importantes para si e para si apenas, enquanto vivos. E contudo hoje sei de saber certo, Pedro, João, Alexandre, que apesar de mortos, apesar da vaidade humana, apesar do Álvaro, há gente viva com alma dentro a chorar-vos, a lembrar-vos, a contar feitos da vossa vida como se estivésseis vivos.

Eu, que sou importante para mim, centro do meu próprio universo, penso em vós, Pedro, João, Alexandre, e quero conhecer-vos, se calhar agora mais do que antes, a alguns não conheci bem, nem conheci vivos, pois quero conhecer-vos agora, celebrar a importância que tivestes para vós próprios, mas também a que tendes para mim – eu, que sou outro.

Desculpa Álvaro mas não estou contigo, eu que estou sempre contigo: até tu que nunca verdadeiramente viveste apesar da vida extraordinário que tiveste, até tu morreste. E eu que vivi depois da tua morte nunca li nada assim: “Descansa: pouco te chorarão… O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Quando não são de coisas nossas, Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros…”. Ora tu desapareceste em 1935, se não me engano, e tanta coisa aconteceu depois na tua vida! A tua morte, caro Álvaro de Campos, não foi senão uma passagem, continuaste e andas por cá, ainda hoje, em 2017, eu escrevo isto sobre ti. Como vês enganaste-te, a ti mesmo enganaste, tanto e tudo pode acontecer aos outros depois da morte…

E é por isso que quero celebrar a vida dos que nos morrem, como o Pedro e o João. A mágoa que sinto, a dor que me invade, a tristeza que ameaça consumir-me, supremo egoísmo do meu ser a quem faz falta os que se foram, impelem-me a celebrar a vida deles. E se hoje escrevo assim é porque também a mim, há dias, me morreu um amigo antigo. Ao contrário do Pedro e do João não era uma figura pública, como eles foi-se cedo de mais. Via-o pouco, quando soube da sua partida fiquei sem saber o que fazer.

Entristeci. Pensei na mágoa dos que o amaram. E depois, como às vezes noutros momentos de ficar triste, recordei o Álvaro: “Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda Do mistério e da falta da tua vida falada… Depois o horror do caixão visível e material, E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, Lamentando a pena de teres morrido, … Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, E depois o princípio da morte da tua memória. Há primeiro em todos um alívio Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido… Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, E a vida de todos os dias retoma o seu dia… Depois, lentamente esqueceste”. Lentamente esqueceremos que o Alexandre viveu.

Ora o Álvaro só terá razão se nós, eu e todos vós, leitores, não soubermos celebrar a vida dos que nos morrem neste ocidente de egoísmos, em que os outros são estrelas distantes que só brilham por e para nós. E eu escrevo sobre ti, meu amigo antigo que partiste, repetir-me-ei sempre que possível, e necessário, direi que foste amado, que viveste com paixão as coisas materiais, que lutaste com todas as tuas forças contra a inevitabilidade do fim.

Recordo a última vez, vi-te pele e osso: a chama ainda brilhava nos teus olhos. E quando nos celebrámos vivos e o prazer do reencontro, era o puro gozo de nos acharmos juntos que o teu abraço me transmitia. Lembrar-te-ei, meu amigo. Celebrarei a tua vida sempre que puder, recordando-te, falando de ti, dando o teu exemplo a conhecer aos que não te conheceram. Não sei que fazer mais. Gostava de fazer mais.

Mas tremo, perplexo perante uma sociedade que vive cada vez mais depressa a esconder de si própria a única realidade indiscutível.

Não, meus amigos, nenhum de nós viverá eternamente.

Dedico este texto, com carinho, ao meu amigo Alexandre, que morreu com a dignidade de quem viveu uma vida boa. Por isso, será lembrado.
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*Director do Gabinete em Portugal doParlamento Europeu (PE). Rege desde 2002 a Cadeira de Construção Europeia do curso de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade CatólicaPortuguesa. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa em 1981 e fez uma pós-graduação em Direito Comunitário. Colunista do Observador.
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