Ricardo Iannace*
Clarice Lispector, Rio de Janeiro, 1969 (Acervo IMS)
Sofia
“Os desastres de Sofia” é um dos contos mais intensos de Clarice Lispector. Insere-se, originalmente, em A legião estrangeira (1964).
Em tom autobiográfico, a narradora reporta-se à singular experiência
que tivera, aos nove anos, em sala de aula com seu professor. A
estrutura ficcional inconfundível, constituída de uma sintaxe densa que
registra certa turbulência interior atada a um fluxo de pensamento capaz
de reverberar imagens contundentes, por vezes indigestas, abismais –
não menos dotadas de sublimação –, confia materialidade à aventura
errante dessa ex-aluna que recapitula seu mau comportamento em classe.
Cáustica e implacável é a tarefa de Sofia, que expõe insistentemente aos
colegas a fragilidade daquele senhor “gordo, grande e silencioso, de
ombros contraídos” e com “paletozinho apertado”.
As manhãs do mestre e da discípula
plasmam-se desta forma: do fundo da sala, sentada na última carteira que
lhe fora designada, ela fala alto e encara-o com desafio, inibe-o até
ele perder o foco e gaguejar. Mas o faz movida por um impulso binário de
raiva e amor, na confusa esperança de despertá-lo para a vida diante da
qual – intui a pequena Sofia – esse sujeito que “passara pesadamente a
ensinar no curso primário” se acovardou.
O conto toma de empréstimo o título de uma novela escrita pela Condessa de Ségur (Les malheurs de Sophie [1858]), obra, aliás, que muitos leitores adolescentes da geração de Clarice percorreram. Sucede que os desastres impostos à personagem clariciana ultrapassam as reinações de uma criança peralta. A altivez dessa Sofia (do grego, sophía:
sabedoria) implica tropeços de outra ordem, em travessia arriscada e
dolorosa, que dá vazão à ignorância mais pura, inata, assertiva e
paradoxalmente lúcida, que a autora de A paixão segundo G.H. (1964)
potencializou no curso de toda sua literatura – uma ignorância que
beira a genuína aprendizagem, cuja essência o léxico teima em perseguir e
nomear.
Como é de se prever na trama de
Clarice, o discurso insurge-se à revelia das convenções. O dual mede
forças, provoca atritos, faísca. O professor personifica, nesse enredo, o
adulto que a criança se vê compelida a salvar, sem saber ao certo do
que e para que (“era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo
terror do precipício, e, por mais inábil que fosse, não pudesse senão
tentar ajudá-lo a descer”). O homem, que em vez “de nó na garganta tinha
ombros contraídos”, avulta – prematura e proibitivamente – como
paradigma de desejo à Sofia dos tempos de escola, época em que corria
com vigor incomensurável pelo terreno expansivo e assimétrico do
colégio, deslizando as mãos em troncos de árvores nos quais alunos
entalham desenhos secretos e íntimos com seus canivetes.
Se eram essas as ações matutinas da
protagonista, os devaneios noturnos traduziam diferentes inquietações:
“De noite, antes de dormir, ele me irritava”; “(…) não falarei mais de
mim no sorvedouro que havia em mim enquanto eu devaneava antes de
adormecer”. E acrescenta: “eu estava sendo a prostituta e ele o santo.
Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e me ultrapassam,
elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais:
as coisas serão ditas sem eu as ter dito.”. Com efeito, tanto a matriz
espacial quanto a temporal se destacam na tessitura. A narradora adulta,
no presente do enunciado, opera na memória suas reminiscências
escolares – recorda que, com treze anos de idade, lhe chega da varanda
do sobrado a notícia “gritada” por um “ex-amiguinho” de que “o professor
morrera naquela madrugada”. A revelação suscita mal-estar, ativa e
mobiliza a intriga. Se não fosse essa súbita informação, o leitor talvez
desconhecesse, em pormenores, a principal cena do conto.
Determinado dia, o professor atribui à
classe uma atividade. Solicita o desenvolvimento de dada composição a
partir desta historieta: um homem, sem dinheiro, sonha que descobriu um
tesouro; logo, caminha mundo afora em busca da fortuna, mas não a
encontra. Retorna então à sua humilde casa e, desprovido de comida,
sustenta-se das raízes que cultiva no quintal; prospera e enriquece à
medida que decide comercializar o próprio plantio.
Sofia é a primeira a concluir a
lição: sai triunfante do recinto, com tempo a mais para o recreio.
Contudo, quando os colegas já haviam finalizado a tarefa, resolve
regressar à sala a fim de apanhar um objeto e é surpreendida pelo
mestre, entre pilhas de cadernos. Desprevenida, apenas segundos depois a
aluna se dá conta de que existe alguém ali: “Sozinho à cátedra: ele me
olhava.”.
A passagem que se seguirá manifesta
uma pungência extraordinária, exemplar do modo voraz e da tal força de
autoria na penetração e no esquadrinhamento da condição humana. O
professor, ao contrário do que supõe a indefesa Sofia, não revida o
maltrato a que diariamente é submetido. Na realidade, encontra-se
atônito porque acaba de ler a redação e se extasia com o horizonte (às
avessas) interpretativo que a aluna de atitude arrojada oferece ao
“tesouro” inscrito na fábula; está sobretudo maravilhado com o desfecho
que ela confere à história.
“Os desastres de Sofia” traz a lume
ingredientes caros à poética clariciana: um detalhe físico é, pois,
ampliado e ganha conformação grotesca; um acontecimento resulta em
desestabilização psicológica, culminando com estranhamento que gera
vertigem e náusea; um silêncio é otimizado e alavanca uma linguagem de
radiação insólita e avassaladora, cujo estilo, em dicção experimental,
desenha associações inusitadas, serpenteado por figuras como o oximoro, a
hipérbole, a sinestesia, acenando ao exercício fulgurante do fazer
literário; uma voz feminina se mostra em perspectiva de alteridade e um
inseto é referenciado.
Eis alguns segmentos valiosos desta teia:
“Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.
E bem devagar vi o professor todo
inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e
que ele era o homem da minha vida.
(…)
Para a minha tortura, sem me
desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que
tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as
inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces.
(…)
Aquilo que eu via era anônimo como
uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se
fazendo na sua cara (…) como se um fígado ou pé tentassem sorrir, não
sei. (…) Eu vi dentro de um olho.
(…)
Naquela mesma noite aquilo tudo se
transformara em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas
as luzes de minha casa.”
Joana
Se a convivência entre Sofia e o
homem do “paletozinho apertado” ocorre em espaço público (a escola), a
aproximação e as conversas entre Joana e o professor, em Perto do coração selvagem (1943), efetuam-se em compartimento privado: a sala de visitas da residência desse educador que oferece conselhos.
No romance de estreia de Clarice
Lispector, a protagonista é adulta e casada, vive um conflito
existencial e conjugal desmesurado. Otávio, o marido, possui uma amante;
Joana, casualmente, conhece um homem e com ele se relaciona. O tempo
delineia-se difuso para ela; há um vaivém de efêmeras lembranças. De
fato, seu modo particular de interagir com o mundo apresenta-se
digressivo: mimetiza o comportamento obscuro, o estado introspectivo e
agudo de sentir dessa mulher.
O narrador, em terceira pessoa,
mostra-se receptivo a todas essas impressões – conjuga sua voz
discursiva às reminiscências da anti-heroína que fica órfã muito cedo,
mora com os tios e, na sequência, é conduzida a um internato. Nessa
altura da vida de Joana – fase tensa, de autoconhecimento e de
incertezas (“a puberdade elevando-se misteriosa”) –, o instinto se
expressa por meio da transgressão que caracteriza a mentira e o roubo de
um livro.
A ida à casa do professor deve-se não
somente à necessidade de proteção – outros motivos a fazem procurá-lo. A
fala reflexiva e o status
profissional desse sujeito que teria idade para ser seu pai; a
possibilidade – ao término da entrevista – de escapar redimida e
aliviada dos pecados cumulativos que pesam sobre si; a procura
atordoante por entendimento – tudo isso inquieta Joana, tudo isso a
incita.
Na primeira parte do livro,
anuncia-se que o professor “milagrosamente penetrava no mundo penumbroso
de Joana e lá se movia de leve, delicadamente”.
“– Não é valer mais para os outros, em relação ao humano ideal. É valer mais dentro de si mesmo. Compreende, Joana?”
“– Afinal, nessa busca de prazer está
resumida a vida animal. A vida humana é mais complexa: resume-se na
busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos
intervalos. É um pouco simplista o que estou falando, mas não importa
por enquanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso,
piedade, bondade, é seu temor. (…)”.
Nesse território ambíguo, Joana testa
seus próprios limites. Sente-se vigiada pela esposa do professor,
motivo pelo qual cultiva um ódio e uma admiração por ela. É como se o ar
de superioridade daquela mulher se justificasse por ter uma casa e um
marido para cuidar. Deixa transparecer que ele tem horário para chegar
ao trabalho: não seria justo empregar tanto tempo com uma menina
desorientada.
E sem conseguir esboçar uma
despedida, pois tivera a segunda tontura no dia, a órfã evade-se da
casa. Antes, observa sobre a cristaleira reluzente uma “estátua nua, de
linhas docemente apagadas como num fim de movimento”. Prossegue em
direção à praia e deixa para trás “aquele homem forte”, cujos dedos se
intercalam à capa e às páginas de um livro. Na areia, os pés da menina
“afundavam e emergiam de novo pesados. Já era noite, o mar rolava
escuro, nervoso, as ondas mordiam-se na praia.” Horas depois, de
regresso à casa dos tios, entrega-se à voluptuosidade. Não por acaso, o
capítulo retratado intitula-se “O banho”: “A água cega e surda mas
alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte
claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos
embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das
paredes.”
Na segunda parte do romance,
registra-se o reencontro com o professor. Joana não é mais uma menina –
sua intenção é informar e ouvi-lo sobre o casamento com Otávio, que tem
data marcada. Falta coragem à protagonista para contar as novidades:
descobre que o professor foi abandonado pela esposa. Ele engordara,
ficara doente; agora envelhecido, com “o grande corpo largado sobre a
cadeira”, encontra-se disperso e de pijamas sob os cuidados de um jovem
enfermeiro. A casa não mantém a conservação de antes; o que salta aos
olhos da visitante, em vez da cristaleira, é o “relógio e a mesinha dos
remédios”. Esvai-se a virilidade daquele que tinha cabelos negros – no
momento, o “professor parecia um grande gato castrado reinando num
porão”. Não bastasse, acidentalmente um de seus chinelos escapa do pé, e
“seu pé de unhas curvadas e amareladas surgira nu.”.
Sofia e Joana
Evidentemente, as relações de
convivência que Joana e Sofia estabelecem com os professores infringem a
ordem do convencional. Clarice diagrama, já em Perto do coração selvagem,
dominantes que ressaltam o lado oblíquo e intempestivo da vida. Em
outros textos seus, professores reaparecem desempenhando papéis de menor
ou maior prestígio – é o caso dos romances A maçã no escuro (1961) e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), e do conto “O crime do professor de matemática”, em Laços de família (1960). Com
a representação dessas personagens da arena do ensino, o conhecimento,
em si, mais se pareceria com a enigmática figura de um matagal: grave e
movediça… apaixonadamente encrespada.
*RICARDO IANNACE é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Usp, professor de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do programa de pós-graduação da Usp e autor de A leitora Clarice Lispector (Edusp)
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/duas-meninas-dois-professores-interditos/09/11/2017
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