Por Og Leme, publicado pelo Instituto Liberal
Por liberalismo pode-se entender três coisas:
1. O liberalismo é uma visão de mundo, aquilo a que os alemães chamam de weltanschaung,
de acordo com a qual a vida humana apenas faz sentido em liberdade;
2. É
uma doutrina, isto é, um conjunto sistematizado de ideias, valores,
princípios e conhecimentos sobre a importância radical da liberdade e
das instituições que a tornam possível;
3. É um movimento político,
partidário ou não, favorável ao estabelecimento de uma ordem liberal
baseada naquelas instituições garantidoras dos direitos individuais.
Mas por que os liberais são liberais?
Três são as fontes principais das convicções liberais:
1. A ordem
liberal é, entre as alternativas de organização social, a mais
compatível com a condição humana;
2. É a que mais eficazmente enseja a
busca da identidade pessoal, o desenvolvimento das potencialidades
individuais e a busca da felicidade pessoal;
3. É a mais compatível com a
prosperidade material, pois há comprovada correlação entre liberdade e
crescimento econômico. Essas três convicções são passíveis de
demonstração teórica e verificação empírica. São, portanto, frutos da
razão e da evidência histórica, e não da fé.
A essa altura, faz-se necessário um
esclarecimento sobre a afirmação contida no parágrafo anterior de que “a
ordem liberal é, das organizações sociais alternativas, a mais
compatível com a condição humana”. O espaço é pequeno para tão grande
assunto, mas vamos tentar a empreitada, com o apoio do pensamento
liberal espanhol José Ortega Y Gasset, genial criador de frases, como
esta que vai nos ajudar: “A vida nos é dada, mas não nos é dada pronta”.
Dadas as circunstâncias de que nós, seres humanos, devemos buscar a nossa identidade, desenvolver as nossas vocações e potencialidades, e correr atrás da nossa felicidade, devemos passar da situação de súditos para a situação de senhores, de modo que possamos ter um ambiente compatível com a nossa necessidade
A primeira parte da frase é pura e
inexorável fatalidade para todos os animais, inclusive para o homem, mas
com a enorme diferença de que a vida também lhe é dada, mas não lhe é
dada pronta, conforme esclarece a segunda parte da frase. Todos os
animais, exceto o homem, são puro instinto e genética: tudo se passa
como se todos “soubessem” quem são, para que vieram, seu papel e
aparentemente aceitam a sina de estarem a serviço do todo, isto é, da
espécie. Se o mesmo ocorresse com a espécie humana, cada um de nós
estaria fatalmente a serviço do governo, supostamente representando a
totalidade dos indivíduos, e subordinados aos propósitos do governo, de
quem seríamos disciplinados súditos. Não é o caso: dadas as
circunstâncias de que nós, seres humanos, devemos buscar a nossa
identidade, desenvolver as nossas vocações e potencialidades, e correr
atrás da nossa felicidade, devemos passar da situação de súditos para a
situação de senhores, de modo que possamos ter um ambiente compatível
com a nossa necessidade de construirmos a parte da nossa vida que não
nos é dada, de acordo com nossos próprios critérios de felicidade. Em
síntese, nós, seres humanos, para quem “a vida nos é dada”, lutamos pela
conquista de um espaço de liberdade para a construção, com
autenticidade, daquilo que não está pronto. E esta é a tarefa que
podemos delegar ao governo: a criação de um espaço de autonomia para que
possamos buscar a nós mesmos e tratarmos de ser felizes à nossa
maneira, protegidos da ameaça de sermos meros instrumentos dos
propósitos de outras pessoas.
Falamos de liberdade várias vezes até aqui. De que liberdade estamos falando? A liberdade é um valor, e nessa condição pode ser objeto de uma infindável discussão metafísica. Mas podemos também tratá-la como fato, tornando-a objetiva: liberdade é ausência de coerção de indivíduos sobre indivíduos.
Portanto, estamos falando de um conceito objetivo de liberdade;
objetivo e relativo. Os liberais não tem por bandeira a liberdade
absoluta dos anarquistas. Edmond Burke soube colocar o problema em sua
própria perspectiva: “liberty too has to be limited, to be possessed”.
Até mesmo a liberdade, disse Burke, deve ser limitada para poder ser
usufruída. Limitar a liberdade equivale a enunciar o que pode e o que
não pode ser feito; equivale a definir normas gerais de justa conduta
que, por sua vez, levam à necessidade da existência de algum tipo de
autoridade acima de todos os indivíduos, responsável pelo eficaz
cumprimento de normas gerais de justa conduta universal. Mas não deixa
de estar sempre remoendo a consciência liberal o questionamento de
inspiração anarquista de Phillip Martin Koehne: “se nenhum de nós pode
ser confiado para governar a si mesmo, como pode qualquer um de nós ser
escolhido para administrar a vida dos outros?”
O liberal, na sua condição de anarquista frustrado, aceita as autoridades governamentais como freios à concentração de poderes que é uma geradora potencial de monopólio no mercado e tirania na política. Para os liberais, a liberdade absoluta é autofágica.
Ao contrário do anarquista que não
admite a existência de autoridades governamentais, o liberal, na sua
condição de anarquista frustrado, as aceita como freios à concentração
de poderes que é uma geradora potencial de monopólio no mercado e
tirania na política. Para os liberais, a liberdade absoluta é
autofágica. É mister limitá-la. Mas, ao aceitar a existência de governo,
que também é concentração de poder, o liberal se vê diante da
desconfortável e dificílima tarefa de conciliar a convivência da
liberdade pessoal com a presença de autoridades detentoras de poderes
especiais, como o do uso monopolístico da força. A ideia é intuitiva: um
economista liberal canadense que dirigia seu carro numa autoestrada em
direção a Vancouver, onde participaria de uma encontro periódico do
Fraser Institute, cruzou com um imponente caminhão, cujo para-choque
ostentava esta frase, fruto da sabedoria popular: “Cuidado! O governo é
perigoso e anda armado!”.
A solução prática para esse problema da convivência da liberdade com o governo está na ordem liberal,
que minimiza as tarefas e poderes do setor público e do processo
político, descentralizando-os tanto quanto possível (subsidiariedade); e
que depende principalmente de duas instituições, o Estado de Direito e a
economia de mercado.
O Estado de Direito é a solução
institucional liberal para a ameaça representada pela existência de
governo. No Estado de Direito, a autoridade das regras substitui a regra das autoridades;
o Estado de Direito é o império da lei, do constitucionalismo, da
igualdade de todos em face da lei (isonomia) e da eficácia do sistema
judiciário que a todos deve garantir o acesso aos tribunais para a
defesa de seus direitos, bem como a todos deve assegurar que os
transgressores das leis serão indicados, processados e, afinal,
condenados, se julgados culpados.
O Estado de Direito é a solução institucional liberal para a ameaça representada pela existência de governo. No Estado de Direito, a autoridade das regras substitui a regra das autoridades
O Estado de Direito e sua consequência
institucional, o constitucionalismo, visam a coibir os abusos dos
poderes públicos, entre os quais se incluem a discriminação e o
tratamento privilegiado. A Constituição Brasileira de 1988 acata o
Estado de Direito em seu artigo primeiro e, a partir desse ponto,
esmera-se em violar repetidas vezes o espírito do princípio da isonomia,
distribuindo privilégios e discriminando, criando pseudodireitos e
desastrosas obrigações ou impedimentos de elevadíssimo custo social,
além de atropelar grotescamente a lógica e o bom senso.
O Estado de Direito, numa ordem liberal,
é a mais importante das instituições, e é uma instituição que produz
frutos, entre os quais um se destaca, a economia de mercado. A economia
de mercado é decorrência lógica do Estado de Direito e, na realidade, é a
única forma de organização econômica inteiramente compatível com ele.
Mas o que é uma economia de mercado? É
um tipo de organização social para a solução de problemas econômicos que
pressupõe o império da lei, a eficácia dos direitos de propriedade, a
autonomia responsável dos agentes econômicos, a liberdade “de entrada”
no mercado, o funcionamento de um mecanismo de preços relativos (que são
a bússola dos agentes econômicos) e a limitação da iniciativa
governamental apenas à situações em que se verifiquem externalidades,
bens públicos e monopólios naturais. Os liberais têm consciência de que a
economia de mercado não é perfeita; sabem que tem falhas, mas estão
convencidos de que as autoridades públicos são ainda mais imperfeitas.
A ordem liberal se caracteriza, então, pela limitação do setor público e do processo político de decisões coletivas e pela descentralização dos poderes. […] Significa deixar o poder decisório com o agente mais próximo e mais diretamente interessado na solução dos problemas.
Além das instituições do Estado de
Direito e da economia de mercado, que tão bem caracterizam a ordem
liberal, pois ambos contribuem para o individualismo e a consequente
minimização do tamanho do Estado, cabe ao princípio da subsidiariedade
complementar a equação da ordem liberal, pois sua adoção leva à
descentralização dos poderes públicos e privados. A ordem liberal se
caracteriza, então, pela limitação do setor público e do processo
político de decisões coletivas e pela descentralização dos poderes.
Mas em que consiste o princípio da
subsidiariedade? Significa deixar o poder decisório com o agente mais
próximo e mais diretamente interessado na solução dos problemas. Isso
leva, na prática, a deixar com o indivíduo – e não com o setor público –
a solução dos problemas que ele possa resolver de maneira satisfatória.
Isto é, a aplicação do princípio da subsidiariedade leva ao
individualismo, e Adam Smith já nos mostrou em 1776 que a busca autônoma
e responsável dos interesses pessoais redunda em benefícios para toda a
comunidade. Leva também ao municipalismo e, num segundo tempo, ao
federalismo: apenas cabe aos estados confederados aquilo que os
municípios não possam fazer a contento, da mesma maneira que a União não
deve procurar fazer o que os estados podem realizar de maneira
adequada. Vão além as consequências da institucionalização da
subsidiariedade: voto distrital no processo político, pluralismo
sindical no mercado de trabalho e outros pluralismos, regime competitivo
na economia de mercado, multiplicidade de partidos políticos no mercado
político etc.
Sobre o Artigo: retirado do livro de crônicas Og Leme, um liberal, editado pelo Instituto Liberal em 2011.
Nota do blog: Recomendo essa
minha palestra também, justamente sobre a questão “o que é o
liberalismo”, que foi realizada no Fórum Liberdade e Democracia de Belo
Horizonte há alguns anos: https://youtu.be/AT2KYuvLDQI?t=18
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Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/mas-afinal-o-que-e-o-liberalismo-2/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino
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