José de Souza Martins*
Já foi o
tempo em que o Dia de Finados colocava a vida dos vivos entre parênteses. O
cotidiano era interrompido e na vida comum se abria um tempo excepcional e
sagrado para os mortos. As pessoas, quase sempre mulheres, reservavam já a
véspera, o Dia de Todos os Santos, para ir ao cemitério, limpar o túmulo da
família, dispensando carinho e respeito aos que se foram, preparando aquela
última habitação de parentes falecidos para receber as visitas do dia seguinte.
O Dia de Finados era o dia da memória, da lembrança e do reencontro. Os mortos
não morriam, descansavam.
Era e é o
dia de cobrir-lhes a tumba de flores e de velas propiciatórias, para atenuar a
escuridão e o odor da morte com os perfumes e a luz da vida. Para iluminar o
recanto de sombras de sua eternidade. Muitos dos visitantes permaneciam por lá
o dia inteiro, papeando com parentes e visitantes dos vizinhos de túmulo. Não
tem sido raro que parentes já não se encontrem senão nessas ocasiões.
Aqui como alhures é o mundo da cultura religiosa disseminada pelo catolicismo. O cineasta espanhol Pedro Almodóvar produziu um emblemático filme sobre o tema da morte, "Volver" (2006), que junta luto e comédia, como de modo geral ocorre também aqui. No Brasil, não são poucas as anedotas que tem como assunto as almas penadas, as dos que supostamente se foram e, no entanto, teimam em ficar. Esse é um mundo objetivamente próprio, com regras e tradições, o mundo da convivência entre vivos e mortos. O que de certo modo faz com que os mortos não morram, redivivos no afeto e no medo dos que ficaram, moradores da memória de cada um e de todos.
A morte ainda regula intensamente a vida dos vivos, mesmo que disso não se apercebam. Persistem regras relativas a atitudes em relação ao falecimento e ao corpo do defunto, que geram uma verdadeira e invisível arquitetura simbólica das casas e dos lugares. A mais forte é a da distribuição das camas no interior das moradias, os pés evitando a direção da porta, sobretudo a porta da rua.
É que a
casa brasileira, como mostrou Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), é uma casa
uterina, de modo que em seu interior os corpos dos vivos repousem na mesma
posição do nascimento, a cabeça voltada para a saída ou lateralmente a ela. A
porta é uma vagina simbólica. Os pés voltados para fora colocam o corpo na
posição da morte, que é de como se tira os mortos do recinto da morte para
levá-los ao cemitério. Dormir nessa posição é atrair a morte, que, mais do que
uma ocorrência, é uma entidade, a ceifadora, a que busca novos habitantes para
o mundo das sombras.
Um outro aspecto da cultura funerária brasileira é o do morrer. Não faz muito tempo, dizia-se em relação aos enfermos e moribundos quando morriam que "fulano deu o último suspiro", o momento da separação de corpo e alma. Mas o morrer era um processo socialmente complexo porque a pessoa que morria situava-se, e para muitos ainda se situa, no limiar entre a vida e a morte. Isso criava uma sociabilidade peculiar e transitória, a das regras de dois mundos opostos, o da vida e o da morte. Momento de grande perigo tanto para quem morria quanto para quem vivia. Momento do grande embate invisível entre Deus e o Diabo pela alma do que partia. Em termos puramente materiais, mesmo para os descrentes, tempo, que pode ser muito longo, em que quem está morrendo se socializa para a partida, para a despedida, para o desconhecido..
Um outro aspecto da cultura funerária brasileira é o do morrer. Não faz muito tempo, dizia-se em relação aos enfermos e moribundos quando morriam que "fulano deu o último suspiro", o momento da separação de corpo e alma. Mas o morrer era um processo socialmente complexo porque a pessoa que morria situava-se, e para muitos ainda se situa, no limiar entre a vida e a morte. Isso criava uma sociabilidade peculiar e transitória, a das regras de dois mundos opostos, o da vida e o da morte. Momento de grande perigo tanto para quem morria quanto para quem vivia. Momento do grande embate invisível entre Deus e o Diabo pela alma do que partia. Em termos puramente materiais, mesmo para os descrentes, tempo, que pode ser muito longo, em que quem está morrendo se socializa para a partida, para a despedida, para o desconhecido..
A verdade nua e crua é a de que morrer é muito complicado. Sobretudo nos dias de hoje em que a consciência social da morte está muito diluída, reduzida à concepção pobre de que a morte é um apagamento. Concepção autoindulgente e de conveniência que nos cega e nos dispensa das obrigações que a tradição prescreve para nos acalmar em face do que já foi chamado de tenebroso transe.
Mais do
que com o morrer, no geral as pessoas estão preocupadas com o doer. Só quando
se percebe que o morrer pode doer muito, dependendo do fator da morte, sempre
há quem console os outros: foi melhor assim; parou de sofrer. Mas, quem parou
de sofrer, o falecido ou quem sofria com seu sofrimento?
O grande
drama dos terminais e moribundos é o de que hoje poucos de nós têm tempo para o
morrer dos outros, mesmo o das pessoas muito próximas. O que no geral reveste a
morte de uma imensa solidão, a do adeus inconcluso e insuficiente. O grande
indicador de que chegamos à era da pós-modernidade é o de que a morte passou a
ser considerada por parâmetros de custo, do tempo que se perde com ela, de
quanto somos desviados de nosso trabalho e de nossa rotina para gastar nosso
tempo com a doença e o funeral até dos mais próximos. A morte toma tempo de
quem não está morrendo e ainda não morreu. Mas morrerá...
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* José de Souza
Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros
livros, autor de Fronteira A Degradação do Outro nos Confins do Humano
(Contexto).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5180605/morte-e-o-morrer 03/12/2017
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5180605/morte-e-o-morrer 03/12/2017
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