sexta-feira, 3 de novembro de 2017

A morte e o morrer


José de Souza Martins*
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Já foi o tempo em que o Dia de Finados colocava a vida dos vivos entre parênteses. O cotidiano era interrompido e na vida comum se abria um tempo excepcional e sagrado para os mortos. As pessoas, quase sempre mulheres, reservavam já a véspera, o Dia de Todos os Santos, para ir ao cemitério, limpar o túmulo da família, dispensando carinho e respeito aos que se foram, preparando aquela última habitação de parentes falecidos para receber as visitas do dia seguinte. O Dia de Finados era o dia da memória, da lembrança e do reencontro. Os mortos não morriam, descansavam.

Era e é o dia de cobrir-lhes a tumba de flores e de velas propiciatórias, para atenuar a escuridão e o odor da morte com os perfumes e a luz da vida. Para iluminar o recanto de sombras de sua eternidade. Muitos dos visitantes permaneciam por lá o dia inteiro, papeando com parentes e visitantes dos vizinhos de túmulo. Não tem sido raro que parentes já não se encontrem senão nessas ocasiões.

Aqui como alhures é o mundo da cultura religiosa disseminada pelo catolicismo. O cineasta espanhol Pedro Almodóvar produziu um emblemático filme sobre o tema da morte, "Volver" (2006), que junta luto e comédia, como de modo geral ocorre também aqui. No Brasil, não são poucas as anedotas que tem como assunto as almas penadas, as dos que supostamente se foram e, no entanto, teimam em ficar. Esse é um mundo objetivamente próprio, com regras e tradições, o mundo da convivência entre vivos e mortos. O que de certo modo faz com que os mortos não morram, redivivos no afeto e no medo dos que ficaram, moradores da memória de cada um e de todos.

A morte ainda regula intensamente a vida dos vivos, mesmo que disso não se apercebam. Persistem regras relativas a atitudes em relação ao falecimento e ao corpo do defunto, que geram uma verdadeira e invisível arquitetura simbólica das casas e dos lugares. A mais forte é a da distribuição das camas no interior das moradias, os pés evitando a direção da porta, sobretudo a porta da rua.

É que a casa brasileira, como mostrou Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), é uma casa uterina, de modo que em seu interior os corpos dos vivos repousem na mesma posição do nascimento, a cabeça voltada para a saída ou lateralmente a ela. A porta é uma vagina simbólica. Os pés voltados para fora colocam o corpo na posição da morte, que é de como se tira os mortos do recinto da morte para levá-los ao cemitério. Dormir nessa posição é atrair a morte, que, mais do que uma ocorrência, é uma entidade, a ceifadora, a que busca novos habitantes para o mundo das sombras.

Um outro aspecto da cultura funerária brasileira é o do morrer. Não faz muito tempo, dizia-se em relação aos enfermos e moribundos quando morriam que "fulano deu o último suspiro", o momento da separação de corpo e alma. Mas o morrer era um processo socialmente complexo porque a pessoa que morria situava-se, e para muitos ainda se situa, no limiar entre a vida e a morte. Isso criava uma sociabilidade peculiar e transitória, a das regras de dois mundos opostos, o da vida e o da morte. Momento de grande perigo tanto para quem morria quanto para quem vivia. Momento do grande embate invisível entre Deus e o Diabo pela alma do que partia. Em termos puramente materiais, mesmo para os descrentes, tempo, que pode ser muito longo, em que quem está morrendo se socializa para a partida, para a despedida, para o desconhecido..

A verdade nua e crua é a de que morrer é muito complicado. Sobretudo nos dias de hoje em que a consciência social da morte está muito diluída, reduzida à concepção pobre de que a morte é um apagamento. Concepção autoindulgente e de conveniência que nos cega e nos dispensa das obrigações que a tradição prescreve para nos acalmar em face do que já foi chamado de tenebroso transe.

Mais do que com o morrer, no geral as pessoas estão preocupadas com o doer. Só quando se percebe que o morrer pode doer muito, dependendo do fator da morte, sempre há quem console os outros: foi melhor assim; parou de sofrer. Mas, quem parou de sofrer, o falecido ou quem sofria com seu sofrimento?

O grande drama dos terminais e moribundos é o de que hoje poucos de nós têm tempo para o morrer dos outros, mesmo o das pessoas muito próximas. O que no geral reveste a morte de uma imensa solidão, a do adeus inconcluso e insuficiente. O grande indicador de que chegamos à era da pós-modernidade é o de que a morte passou a ser considerada por parâmetros de custo, do tempo que se perde com ela, de quanto somos desviados de nosso trabalho e de nossa rotina para gastar nosso tempo com a doença e o funeral até dos mais próximos. A morte toma tempo de quem não está morrendo e ainda não morreu. Mas morrerá...
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* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira – A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5180605/morte-e-o-morrer 03/12/2017
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