Marcia Tiburi *
A reflexão sobre a falta de fundamento proposta por Flusser em sua autobiografia filosófica chamada Bodenlos pode nos ajudar a pensar o que é o “fundamento” e o que
é o fundamentalismo hoje.
Experimento filosófico poliglota,
diálogo entre línguas em que criação e tradução acontecem ao mesmo
tempo, a obra de Flusser é o exercício das potências do pensamento na
matéria da língua vivida, ela mesma o chão da vasta reflexão do filósofo
tcheco e judeu que, por décadas, viveu no Brasil. É nesse espírito que
encontramos em sua filosofia uma exposição do sentido produtivo do que
ele chamou de “falta de fundamento”.
Bodenlos
é o nome de sua autobiografia filosófica publicada em 1992 logo após
sua morte. Nela, uma introdução traz o título “Atestado de falta de
fundamento” como se fosse um documento. Muito para além de um currículo,
de um documentário ou da descrição dos meros fatos da vida, o que
interessa a Flusser é a exposição da vida do pensamento e do diálogo
objetivo e subjetivo que ele teve com algumas pessoas.
Boiar
Em Flusser a falta de fundamento se
relaciona ao que chamamos de “absurdo”. A imagem de flores em um vaso é a
primeria metáfora que o filósofo usa para expor a sua questão. Além das
flores sem raiz, ele sugere os planetas que se movem sem significado em
torno do Sol. Estar boiando, diz Flusser, define o clima da falta de
fundamento no sentido de absurdo e falta de significado.
Para ele, as religiões são “métodos
de proporcionar fundamento”. A sua falta apavora e se pode recalcá-la.
Em outras palavras, podemos dizer que as religiões podem forçar a barra
produzindo uma ilusão fundamental. Para Flusser todos os nossos
problemas são, em última análise, problemas religiosos no sentido de que
procuramos solução religiosa, não a encontramos e seguimos procurando.
Nesse viver sem fundamento é que reside o verdadeiro clima da
religiosidade.
Ora, no clima da falta de fundamento
que constitui a vida, normal é buscar um lugar onde pôr os pés. Ficar
flutuando é vertiginoso e pode ser até mesmo perigoso. A não ser que
esse flutuar seja tratado filosoficamente. Boiar, nesse caso, é um modo
de ser razoável. Em termos simples, podemos dizer que saber boiar é o
que há de mais importante para não se ser devorado pelo fundamento. E,
não sabendo viver dentro dele, transformá-lo em abismo. Em termos
filosóficos, é preciso saber perguntar quando o fundamento se torna
abismo.
Se fundamento é aquilo que se busca, o
ponto de equilíbrio de uma postura, o fundamentalismo, no entanto, é a
deturpação dessa necessidade de equilíbrio. O que era a densidade da
base torna-se rigidez. A base que permitiria equilíbrio torna-se um
abismo vazio que parece suficiente ao sustento do que está acima dele.
Podemos contrapor a ideia de estar solto na água ou no ar, nessa
experiência que é viver sem fundamento em busca dele, ao estar preso a
um ponto fixo absoluto que não permite que nada se mova.
Ao fundamento como ponto de equilíbrio podemos dar o nome de razoabilidade, que é tudo o que nos falta em nosso momento atual.
O fundamentalismo em moda, esse
fundamentalismo que se tornou popular, é o efeito da má experiência com a
“falta de fundamento”, de um modo desesperado de viver a sua falta.
Podemos dar o nome de
neofundamentalismo a essa prática discursiva de falar por falar, sem
conhecimento de causa, de repetir clichês e toda sorte de discurso
pronto. “Copiar e colar” jargões e chavões se tornaram comuns em tempos
de hiperprodução e consumismo da linguagem e isso precisa ser superado
em nome do pensamento crítico, o único que é reflexivo.
Nos tempos da deturpação dos
fundamentos e da insuportabilidade da sua falta, devemos fazer como as
crianças que experimentam o antifundamentalismo fundamental, conquistar a
vertigem para aprender o equilíbrio.
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* Filósofa. Prof. Universitária. Escritora. Artista Plástica
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-antifundamentalismo/ 09/11/2017
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