Juremir Machado da Silva*
Quando tento me agarrar às nuvens para não cair, tenho a
sensação de flutuar com os pés enterrados no chão. Sei que é feito de
barro o sonho de todo surrealista. Nessas caminhadas pela cidade,
sentindo a mão da primavera me acariciar, eu me pergunto: o que é a
vida? Quem não faz isso? Quem não se perde em devaneios na fila do
banco? Uma das imagens que me dominam enquanto troco de calçada é a de
um estranho labirinto chamado existência. Um labirinto em linha reta.
Ontem, eu tinha 20 anos e queria saltar 40 casas no meu velho jogo de
Banco Imobiliário. Hoje, tenho 55 e me vejo pulando casas para recuperar
sonhos e a liberdade daqueles tempos de despreocupação.
O que eu pensava quando tinha 20 anos de idade? Que nada tinha, que
tudo desejava, que tudo teria. Eu era como o famoso Terceiro Estado
antes da Revolução Francesa de 1789. De resto, foi nessa época, nessa
juventude sem dinheiro e sem medo, que li pela primeira vez o brado do
padre Sieyès: “O que é o Terceiro Estado? – Tudo. O que tem sido ele,
até agora, na ordem política? – Nada. O que é que ele pede? – Ser alguma
coisa”. Eu pedia mais: queria ser tudo. Mas não tinha pressa. Era jovem
o suficiente para ter certezas plenas sobre o futuro. Se não era um
sans-culottes, com minhas duas calças jeans, sonhava em guilhotinar a
miséria do mundo. Como o Brasil eu era um país do futuro, sempre do
amanhã, um porvir radioso, feliz e quente.
Qual o meu estado na aurora da terceira idade? Estado de incerteza,
de reflexão e de desejos que se infiltram como uma nascente cristalina. O
que sou? Não direi “nada” para não plagiar Fernando Pessoa nem
dramatizar. Ponderadamente digo: algo. Sou alguma coisa, mas já não
tenho todos os sonhos do mundo e isso me deixa nu na esfera pública.
Quando foi que comecei a reduzir meus sonhos como se poupasse para o
passado? Ignoro. O que tenho sido ao longo do labirinto? Tudo. Em
imaginação. Nunca me furtei de delirar. Fui presidente do Brasil, prêmio
Nobel da literatura, herói de guerra, piloto de Fórmula 1 sem saber
dirigir, astronauta e poeta maldito. O que eu peço? Pouco.
O que é esse pouco? Tudo. Escreveu o poeta espanhol Antonio Machado:
“Luz do espírito, luz sagrada,/lanterna, tocha, estrela, sol…/Um homem
às cegas na estrada;/leva nas costas um farol”. Sim, quero luz, quero
sol, quero estrelas, quero tocha, quero ser meu farol na reta final, que
espero seja longa, do labirinto. Que pedaços perdi no caminho que se
faz caminhando já sem a rapidez de antes? Pedaços de fantasia, de crença
e de verdades. Anteontem eu debochava de tudo. Ontem eu me preservava.
Hoje eu ainda me arrisco. Faço definições: ciências humanas no Brasil: a
opinião de cada um nas regras da ABNT. Filosofia: aquilo que pensamos
sem escrever. Literatura: nossos melhores pensamentos antes da
transcrição para a página em branco.
Amanhã serei um grande silêncio ouvindo o vento bater portas em
taperas, casas onde morei e que agora me habitam como fantasmas alheios à
falta de convite. Conversam comigo. Vejo minha boca costurada, meus
lábios secos, meus olhos semicerrados fitando sílabas passando em câmera
lenta. Na caminhada aprendemos a calar. Há, por certo, aqueles que
perdem o senso e desatam a falar quando sentem que tudo já perderam na
travessia até então ignorada. Outros, porém, descobrem um pudor
inusitado diante da solidão imensa do tempo. Parecem dizer-se com
embaraço e temor: para que tanto barulho? Para que tantas palavras? Para
que tantos sinônimos? Para que tanta viagem?
No labirinto um homem perdeu a razão. Andava com um volumoso dicionário embaixo do braço. Aos que o interpelavam, ele explicava:
– Quero pronunciar todas as palavras antes de me calar para sempre.
Eu sou o homem comum no seu labirinto feito um general que perdeu a
guerra antes de chegar à frente de batalha, mas ganhou medalhas pela
persistência. Quem não é assim em algum momento? Todos os dias alguém
tenta encontrar a saída, abrir a porta, achar a chave, saltar o muro,
derrubar a cerca, pular pela janela lateral do quarto de dormir, furar o
bloqueio, tirar a grade, soltar o grito parado no ar, soprar as nuvens
para longe com hálito de pasta de dente, esquecer no bolso do casaco as
requisições para meia dúzia de exames médicos, um mais esquisito do que
outro, fingir que enfiar a cabeça na máquina é como se aconchegar no
travesseiro, correr alegre para o abraço.
Então subitamente há sol no labirinto. Sim, brilha o sol do
cotidiano, esse farol das maravilhosas pequenas alegrias, essa tocha que
ilumina o bom caminho, aquele que nos leva ao melhor de nós sem pedir
nada em troca, salvo a felicidade de existir, essa estrela sorridente no
café da manhã, síntese da vida como lanterna, luz sagrada e
transcendência. O caminhante deixa de fazer a caminhada enquanto tenta
alcançar o horizonte para se mover em espiral. Aprende que na escala do
universo tem a longevidade de uma borboleta.
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* Jornalista. Graduou-se em História (bacharelado e licenciatura) e em Jornalismo
pela PUCRS, onde também fez Especialização em Estilos Jornalísticos.
Passou pela Faculdade de Direito da UFRGS, onde também chegou a cursar
os créditos do mestrado em Antropologia. Obteve o Diploma de Estudos
Aprofundados e o Doutorado em Sociologia na Universidade Paris V,
Sorbonne, onde também fez pós-doutorado.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/11/10371/10371/
Imagem da Internet
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