José de Souza Martins*
Numa
sociedade em que um número significativo de pessoas conserva ou reivindica
privilégios próprios do chamado Antigo Regime, fica difícil convencer quem vive
do suor do próprio rosto de que a reformulação de direitos trabalhistas que os
limitam constitui justa medida de correção de anomalias sociais. Ou que a salvação
da economia, que carrega embutidas graves injustiças sociais, constitua o
presente de Papai Noel, de 2017, para aqueles que hoje vivem na incerteza da
busca de emprego.
O que é
bom para a economia e o lucro não é necessariamente bom para o cidadão. Sem o
justo equilíbrio entre a remuneração do capital e a remuneração do trabalho,
todos perdem. Entre nós, os direitos sociais tendem a ser a migalha que sobra
de privilégios que tem precedência em relação a eles.
Quando
uma ministra de Estado, cujos antepassados foram, provavelmente, escravos e se
considera escrava por ter-lhe a lei tolhido o direito de acumular vencimentos
que chegariam a R$ 60 mil por mês, não há como não pensar em quem ganha salário
mínimo, preto, pardo ou branco. Alguém que sequer pode recorrer aos tribunais
para defender-se da perversidade do ganho insuficiente para a sobrevivência
decente da família.
Quando membros do Judiciário reivindicam "ajuda" para mudar de casa ou para pagar a cara educação dos filhos, não há como não pensar em quem mal consegue morar ou naqueles cujos filhos carecem de uma educação que os emancipe do cativeiro de insuficiências que os atam ao pelourinho da inferioridade social.
Quando
membros do Legislativo, que ganham exageradamente bem, tem ainda o descabido
privilégio do confortável apartamento funcional, não há como não pensar nos
barracos das favelas e nos cortiços em que centenas de milhares de pessoas mal
sobrevivem. Quando vemos políticos de origem nobre e também os de origem pobre
agarrados à função eletiva, como se fosse ela um direito de nascença, não há
como não desanimar. Aqui, nem mesmo há diferença entre direita e esquerda no
apego aos privilégios do poder.
Tentemos
entender o que nos trouxe até aqui: o presidente do Conselho de Ministros do
Império, João Alfredo, do Partido Conservador, colocou diante da princesa
Isabel, no dia 13 de maio de 1888, para que a assinasse, a Lei nº 3.353, a Lei
Áurea, uma lei de apenas dois artigos, simples e diretos: "Art. 1º: É
declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2º: Revogam-se
as disposições em contrário". O poeta paulista Paulo Eiró, que morreu no
Hospício de Alienados da Várzea do Carmo, cujas ruínas ainda existem no parque
Dom Pedro II, deplorou que a proclamação da Independência tivesse sido um ato
incompleto: não proclamou o fim da escravidão. Já a proclamação da abolição da
escravatura não proclamou o fim dos privilégios estamentais dos bem-nascidos.
Ao contrário, a realidade peculiar do país estendeu-os aos malnascidos, mas
espertos. Quase tudo neste país é incompleto, inacabado, insuficiente.
Falta-nos, portanto, uma lei: "Art. 1º: Ficam abolidos todos os privilégios no Brasil. Art. 2º: A vida de todos os brasileiros será regida pelo Direito. Art. 3º: Todos os brasileiros são iguais perante a lei. Não haverá brasileiros mais iguais do que os outros. Art. 4º: Revogam-se já as disposições em contrário".
Falta-nos, portanto, uma lei: "Art. 1º: Ficam abolidos todos os privilégios no Brasil. Art. 2º: A vida de todos os brasileiros será regida pelo Direito. Art. 3º: Todos os brasileiros são iguais perante a lei. Não haverá brasileiros mais iguais do que os outros. Art. 4º: Revogam-se já as disposições em contrário".
A lei
ainda não existe porque somos um povo manso, orientado por uma concepção
carneiril da política e da sujeição a quem manda. Nossas lutas não são
políticas. São pré-políticas, como as define Eric Hobsbawm. Conseguimos gritar,
xingar, tomar as ruas, depredar, invadir, mas não conseguimos transformar e
superar, criar barreiras propriamente políticas e civilizadas às iniquidades
que nos vitimam, criar e valorizar instituições por meio das quais poderíamos
assegurar nossa representação política autêntica.
Temos o
direito de voto, mas não raramente votamos para que os votados não nos
representem, abdicamos da cidadania. Para que se representem a si mesmos, suas
famílias, suas corporações, suas religiões, e não os cidadãos. Reforçar o
caráter oligárquico do sistema para depois bajular os que o personificam é
sabidamente um resquício da escravidão e dos regimes de servidão a ela
associados.
Não estou
falando ainda da escandalosa corrupção política que destroçou as instituições,
que corrompeu o caráter não só de políticos, mas também de eleitores. Quem vota
em corrupto é tão corrupto quanto o votado porque legitima a desmoralização da
regra republicana do voto como ação de constituição da representação política.
Aqui, esse voto representa a renúncia ao direito de ser representado na
estrutura de poder da sociedade de direitos em nome do cabresto da sociedade de
privilégios.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira A Degradação do
Outro nos Confins do Humano (Contexto).-------------------
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5196341/privilegios-vs-direitos 17/11/2017
lúcido
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