Para o sociólogo e professor da USP Ricardo Mariano, o radicalismo no
discurso conservador das igrejas evangélicas nunca foi tão evidente.
Mariano é um estudioso do tema desde o início dos anos 90. Suas
pesquisas na área de sociologia da religião abarcam desde a demonização
pentecostal dos cultos afro-brasileiros até a reação dos evangélicos ao
Novo Código Civil. Ele percebe que o discurso moralista está ocupando a
mente da população e entrando na pauta dos debates de maneira decisiva
na próxima eleição presidencial. O evangélico conservador está cada vez
mais barulhento.
Mariano escreveu um livro fundamental para se entender religião no
país chamado Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no
Brasil (Edições Loyola), já na quinta edição, no qual fala especialmente
da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, e da
teologia da prosperidade, em que a igreja é intermediária de uma
barganha entre Deus e os homens pela bonança terrena e o futuro
celestial.
Mariano deu essa entrevista
para o blog sobre o avanço parlamentar e a mobilização política dos
pentecostais quando havia acabado de voltar do encontro anual da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(Anpocs), realizado na última semana de outubro em Caxambu (MG). O
evento contou com a participação de 1200 cientistas sociais que
trataram exaustivamente dos impasses atuais da democracia brasileira.
Foi marcado pela preocupação sobre os destinos do país e a crise na
pesquisa científica, abandonada e sem verbas.
A religião foi um dos assuntos em pauta. Mariano, que é
secretário geral da Anpocs, apresentou um estudo oportuno sobre a
expansão e o ativismo político dos grupos evangélicos conservadores no
país. Esses grupos se opõem à ampliação dos direitos civis de minorias
sexuais e querem impedir todo tipo de aborto, inclusive em casos de
estupro, risco de morte da mãe e fetos anencéfalos.
Eles têm crescido muito nos últimos tempos numa onda moralista e
cerceadora dos direitos individuais que se alastra por toda sociedade.
Embora não representem a totalidade dos 60 milhões de evangélicos
brasileiros, uma comunidade bastante heterogênea, eles apontam uma
tendência geral conservadora que pode ser verificada na população
religiosa e nos seus representantes parlamentares. “Nos legislativos
municipais, estaduais e federal, a maioria, mas não todos, tende a
sustentar projetos de lei de caráter conservador no plano moral
relativos à sexualidade e à família, por exemplo”, diz Mariano. “Propõem
projetos para tratar e reverter a homossexualidade e pretendem
discriminar casais de mesmo sexo.” Assuntos relativos à moralidade têm
sido um ponto de coesão para os evangélicos. A grande maioria da sua
bancada na Câmara, que hoje tem pelo menos 80 deputados, 15% da casa,
está de acordo com esses temas.
O que se percebe, segundo ele, é que a radicalização do discurso
religioso, em especial relacionado ao conservadorismo moral, pode dar
frutos e resultar em dividendos eleitorais a curto prazo. O deputado
Marco Feliciano, do PSC, por exemplo, conseguiu visibilidade inédita nos
tempos em que comandou a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara e expandiu o público de seu discurso hiperconservador. Conseguiu
deslanchar. Havia sido eleito com 200 mil votos, em 2010, e saltou para
400 mil, em 2014. “A cruzada moral é apresentada como trunfo da
representação política em defesa do evangelho e dos evangélicos”, afirma
Mariano. A fórmula funciona muito bem para eleições parlamentares, mas
aumenta a rejeição ao político e tira sua competitividade na disputa por
cargos majoritários, decididos em eleições com segundo turno. Jair
Bolsonaro, que já é candidato à presidência e tem uma agenda de direita
vai ter oportunidade de testar esses limites nas próximas eleições.
*
“Os evangélicos procuram instrumentalizar seu poder político
partidário, eleitoral e parlamentar para defender seus interesses
institucionais e corporativos, obter recursos públicos para suas obras
sociais, isenção do pagamento de taxas e cargos públicos.”
“Os evangélicos passaram a se incorporar em todos os setores, no
futebol e até mesmo no tráfico. Boa parte dos traficantes no RJ tem se
aproximado de igrejas pentecostais. Antes havia uma fronteira entre as
igrejas e o mundo do crime e essa fronteira desapareceu. Você vê a
molecada no tráfico dando dízimos ou promovendo shows gospel. E os
pastores dão essa abertura porque querem convertê-los.”
“O crescimento do pentecostalismo no Brasil e na América Latina
transformou o campo religioso brasileiro nas últimas décadas. Hoje são
mais de 60 milhões de evangélicos. Nas periferias das grandes e médias
cidades e, em especial, nas regiões metropolitanas é onde os
pentecostais mais crescem. Criou-se um cinturão evangélico nas
periferias, locais onde os sindicatos, partidos e poderes públicos não
chegam”.
“Caberá à população arcar com o custeio do que está deixando de ser
pago pelas igrejas em taxas de limpeza urbana. A dívida total é de 920
milhões, mas não é só das igrejas evangélicas.”
“A questão da laicidade, praticamente invisível até os anos 90,
emergiu com força à medida que os evangélicos ocuparam a política
partidária e eleitoral e os meios de comunicação de massa.”
“O fato é que o STF bancou o ensino religioso confessional. A meu
ver, essa decisão foi lamentável. Ainda que o ensino religioso seja
facultativo, na prática ele é obrigatório, porque as escolas não
oferecem outras opções aos estudantes.”
“Nos legislativos municipais, estaduais e federal, a maioria, mas não
todos, tendem a sustentar projetos de lei de caráter conservador no
plano moral relativos à sexualidade e à família, por exemplo.”
“Nos últimos 30 anos, quase triplicaram o tamanho de sua bancada. 15% dos deputados federais atualmente são evangélicos.”
“No momento, são cerca de 80 deputados federais atuando na Frente
Parlamentar Evangélica. A maior bancada é da Assembleia de Deus, seguida
pela da Igreja Universal e, por fim, a dos batistas. Em geral, são os
parlamentares vinculados à Assembleia de Deus os mais ativos ou os que
mais se destacam na promoção de pautas moralistas conservadoras no
Congresso Nacional.”
“Desde o início da redemocratização, todos os candidatos e partidos
de médio ou de grande porte negociam apoios e alianças com autoridades
evangélicas, sobretudo pentecostais, já que isso é pouco usual e
aceitável nas igrejas protestantes históricas.”
“A TV aberta contém 20% da programação religiosa. Grande parte dela é ocupada por evangélicos, sobretudo pela Igreja Universal.”
“Lula é o pré-candidato com maior apoio entre os evangélicos: com 32%
de intenção de voto nesse segmento religioso. Mas esse apoio é inferior
ao que ele obtém no restante do eleitorado, que é de 36%. Entre os
católicos, Lula alcança 40%.”
“Bolsonaro é um aliado antigo de líderes da frente parlamentar
evangélica, como Marco Feliciano, João Campos, entre outros. Ele tem se
esforçado em construir relações e alianças com dirigentes evangélicos na
tentativa de catapultar a sua eleição a presidente da República. Mas
candidaturas de centro direita podem inviabilizar completamente a
candidatura do Bolsonaro, que é visto também como um sujeito controverso
no meio evangélico.”
“Entre os partidos controlados por grupos evangélicos o PRB se
destaca pelo pragmatismo, ou pelo peemedebismo, isto é, opta por fazer
parte da base de apoio aos governos de plantão, seja de que partido for,
em troca de cargos. E o PSC assumiu perfil partidário de extrema
direita nos últimos anos.”
“Os evangélicos progressistas são minoritários e pouco visíveis dentro e fora do parlamento.”
“Deus prospera os seus leais servos, os cristãos, por meio da doação
de dízimos, de ofertas, que expressam a comprovação de sua fé. Eles
podem auferir prosperidade, felicidade, vitória em seus empreendimentos.
E a prosperidade não é de ordem só material, mas é a prosperidade de um
modo geral na vida.”
“Parte da população tem enorme dificuldade de lidar com as mudanças
comportamentais em fluxo nas últimas décadas, com a emergência de novos
arranjos familiares e das transformações nas relações de gênero, com a
visibilidade pública da união civil de pessoas do mesmo sexo, das novas
formas de afeto inclusive sexuais que escapam aos padrões familiar e
sexual heteronormativos hegemônicos. Muitos vêem tais mudanças como
indecência, falta de vergonha na cara, irrupção de nova Sodoma e
Gomorra, o fim dos tempos.”
*
Como foi a última reunião da Anpocs? Quais os temas que dominaram o encontro?
As atividades acadêmicas que abordaram fenômenos religiosos, como o
ativismo político de grupos evangélicos conservadores, ocuparam
importante espaço no Encontro da ANPOCS, mas não dominaram o encontro,
que contou com a participação de mais de 1.200 pesquisadores. Dada a
atual conjuntura sociopolítica e econômica, o objeto de destaque das
reflexões e dos debates foi a democracia brasileira e seus impasses, a
crise política, a polarização político-ideológica, os conflitos no
interior do judiciário e entre instituições jurídicas e políticas e o
cenário eleitoral de 2018.
E a corrupção?
Também foi assunto. Foram objeto de debate a crise da democracia, o
combate à corrupção e os embates políticos e judiciais em torno disso, a
crescente desconfiança da população nas instituições políticas, o
quadro de desemprego, endividamento, de agravamento da desigualdade, da
criminalidade, da precarização do trabalho e da flexibilização dos
direitos trabalhistas. Tal situação deu margem até para manifestações, a
partir de junho de 2013, de grupelhos propondo a volta dos militares ao
poder. O próprio Bolsonaro tem insuflado tal movimento, alardeando que
pretende governar com ministros militares.
O clima não está muito favorável mesmo.
O clima político atual, além de conflituoso, é de muita incerteza, de
insegurança, de intensa preocupação sobre o que vai ocorrer a curto e
médio prazos, seja na eleição presidencial no ano que vem, seja na
condução da política econômica e da dívida pública, seja nas áreas de
educação, saúde, segurança pública, previdência social, etc.
Você acha que a sociedade está guinando para a direita, que essa minoria está ganhando massa?
Temos um governo federal francamente de direita, impopular, com
exíguos 3% de aprovação, apoiado e, ao mesmo tempo, refém de uma maioria
parlamentar de perfil conservador, fisiológico e disposta a reverter
parte da legislação de defesa do meio ambiente, dos territórios
indígenas, dos direitos trabalhistas, dos direitos sociais. No extremo, a
bancada ruralista propôs a redefinição do trabalho escravo no país
visando a dificultar sua fiscalização e punição. Tendo em vista os
resultados nas eleições de 2016, pode-se dizer que parte do eleitorado
guinou para a direita, como comprova a baixa performance dos candidatos
do PT. Além disso, movimentos de direita, como MBL, entre outros,
ampliaram seu ativismo e sua visibilidade nas redes sociais.
Os políticos evangélicos estão desse lado mais conservador?
Claramente. Mas no que concerne a questões morais, de ordem
comportamental. Nos legislativos municipais, estaduais e federal, a
maioria, mas não todos, tendem a sustentar projetos de lei de caráter
conservador no plano moral relativos à sexualidade e à família, por
exemplo. Propõem projetos para tratar e reverter a homossexualidade.
Pretendem discriminar casais de mesmo sexo por meio do Estatuto da
Família. Querem impedir todo tipo de aborto, inclusive em casos de
estupro, risco de morte da mãe e fetos anencéfalos, através do Estatuto
do Nascituro.
São muito pragmáticos de um modo geral.
Eles procuram instrumentalizar seu poder político partidário,
eleitoral e parlamentar para defender seus interesses institucionais e
corporativos, obter recursos públicos para suas obras sociais, isenção
do pagamento de taxas, cargos públicos, etc. Recentemente, tentaram
obter perdão de dívidas previdenciárias para igrejas no Refis. Procuram
ocupar o espaço público com seus símbolos religiosos, construindo praças
da bíblia, criando o dia do evangélico e coisas do gênero, tendo por
referência a ação católica de colocar crucifixos em edificações
públicas, como tribunais e escolas e erguer estátuas de Cristo.
E a atuação partidária?
Entre os partidos controlados por grupos evangélicos o PRB se destaca
pelo pragmatismo, ou pelo peemedebismo, isto é, opta por fazer parte da
base de apoio aos governos de plantão, seja de que partido for, em
troca de cargos. O PRB sustentou os governos petistas de Lula e Dilma e
está apoiando o governo Temer, além dos governos paulistas tucanos. Os
parlamentares do PRB tendem a votar com os demais evangélicos em temas
de ordem moral. Mas eles, inclusive seus deputados que são pastores e
bispos, não encabeçam os projetos de lei de cunho moral, muito menos os
mais controversos. Já o PSC, sobretudo a partir de 2013, quando Marco
Feliciano presidiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, assumiu
publicamente uma orientação político-ideológica de direita no campo
econômico e superconservadora no plano moral. Pastor Everaldo,
presidente do PSC, como candidato à presidência da República, defendeu o
Estado mínimo, a privatização da Petrobras. O PSC assumiu perfil
partidário de extrema direita nos últimos anos. À medida que assumiu
perfil mais extremista, o PSC perdeu parlamentares entre as eleições de
2010 e 2014. Em geral, são os parlamentares vinculados à Assembleia de
Deus os mais ativos ou os que mais se destacam na promoção de pautas
moralistas conservadoras no Congresso Nacional. Caso dos deputados Marco
Feliciano, João Campos, Sóstenes Cavalcanti, Eduardo Bolsonaro,
Hidekazu Takayama. No Senado, Magno Malta, que é batista.
Quem compõe essa grande bancada evangélica?
No momento, são cerca de 80 deputados federais atuando na Frente
Parlamentar Evangélica. A maior bancada é da Assembleia de Deus, seguida
pela da Igreja Universal e, por fim, a dos batistas. Essas três igrejas
dispõem da maior proporção de parlamentares. Em sua maioria, os
deputados evangélicos atuam em partidos pequenos, como PRB, PSC, DEM e
em partidos ainda menores. Eles têm diminuta presença nos grandes
partidos, como PT, PSDB e PMDB. Com poucas exceções, estão imersos no
baixo clero.
E qual é o grau de coesão dos evangélicos?
Eles não formam um bloco coeso, uniforme e homogêneo. Estão divididos
em diversos partidos e igrejas distintos e concorrentes. Apresentam
coesão somente em torno de pautas específicas, sobretudo em questões de
ordem moral, envolvendo a sexualidade, a instituição familiar, os
costumes, as representações artísticas, as relações de gênero, o aborto,
a união civil de pessoas de mesmo sexo, etc. O moralismo de cunho
bíblico constitui forte fator de coesão desse grupo religioso e
político.
Mas não existem evangélicos progressistas?
Não são todos que apoiam tal agenda moral ou que sustentam esse
moralismo na arena pública. Os progressistas são minoritários e pouco
visíveis dentro e fora do parlamento. Eles defendem os direitos humanos,
minorias, a laicidade do Estado e da escola pública, políticas
redistributivas.
A Marina Silva está nesse grupo?
Sim. Ela defende intensamente a laicidade do Estado, até como forma
de se defender da acusações de que, se for eleita presidente, ela
discriminará outras religiões e favorecerá os evangélico. Defendeu a
laicidade em 2010 e em 2014. Ela é missionária da Assembleia de Deus.
Tem posições próprias em relação a aborto e união civil de pessoas do
mesmo sexo, mas defende que nessas questões mais controversas o ideal
seria a realização de plebiscitos e não a decisão do Congresso. Ela
tenta evitar um confronto direto seja com defensores da laicidade do
Estado, seja com feministas, grupos LGBT ou defensores de direitos
humanos. A saída pela via do plebiscito é uma saída em que a vontade do
povo se realiza independentemente das posições politicas-religiosas da
presidente.
Como funciona a teologia da prosperidade, que impulsiona muitos pentecostais em sua ascensão social?
Algumas igrejas pentecostais pregam essa teologia. Deus prospera os
seus leais servos, os cristãos, por meio da doação de dízimos, de
ofertas, que expressam a comprovação de sua fé. Eles podem auferir
prosperidade, felicidade, vitória em seus empreendimentos. E a
prosperidade não é de ordem só material, mas é a prosperidade de um modo
geral na vida. Essa é uma crença bastante controversa porque dentro do
próprio meio evangélico, critica-se essa espécie de barganha entre Deus e
os homens, em que as igrejas figuram como intermediários. É muito
distinto do protestantismo puritano dos séculos 16 e 17, que era muito
ascético. Eles estavam preocupados fundamentalmente com a salvação
celestial. O foco agora é o inverso. Eles não abandonaram evidentemente a
crença na salvação, mas a ênfase é mais materialista, voltada para a
felicidade terrena.
Que outras pautas promovem a coesão entre os evangélicos?
Outra pauta é a defesa da liberdade religiosa. Lideranças
pentecostais vivem alardeando que a liberdade religiosa deles está
sempre ameaçada. Eles se consideram discriminados e perseguidos
preferenciais dos governos petistas, de grupos feministas e LGBTs, ou
daqueles que nomeiam de gayzistas, esquerdopatas, bolivarianistas,
cristofóbicos. A terceira pauta que concorre para promover sua coesão é a
defesa de seus interesses corporativistas. Nas câmaras municipais,
muitos parlamentares evangélicos afora lutam para flexibilizar as regras
e a aplicação do código de edificações e das leis de silêncio ou ruído
em prol de suas igrejas, propõem e negociam projetos para isentá-las do
pagamento de taxas. No Congresso Nacional, desde a Constituinte, ocupam
em grande número a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e
Informática, a fim de defender seus interesses como concessionários de
inúmeras emissoras de rádio e TV.
As igrejas devem hoje mais de 900 milhões de reais em taxas.
As associações religiosas no país gozam de isenção tributária, não
pagam impostos. Contudo, são obrigadas a pagar taxas, como as de limpeza
urbana e as contribuições previdenciárias de seus funcionários. Em
muitas cidades, vereadores evangélicos conseguiram isentar as igrejas do
pagamento de taxas de limpeza urbana, entre outras. Caberá à população
arcar com o custeio do que está deixando de ser pago pelas igrejas. A
dívida total é de 920 milhões, mas não é só das igrejas evangélicas.
Como disse, deputados evangélicos tentaram obter perdão fiscal dessas
dívidas.
E as diferenças na base evangélica?
Na Câmara Federal, eles estão divididos em dezenas de partidos e
igrejas. Concorrem entre si, sustentam posições teológicas diferentes,
optam por apoiar distintos candidatos a eleições majoritárias.
Apresentam, portanto, uma série de divisões, clivagens, inclusive em
votações. Mesmo no impeachment, votação que promoveu enorme coesão
desses parlamentares, foram 89%. Onze por cento deles votaram contra o
impeachment. O consenso é praticamente impossível, e não só em matéria
política. Edir Macedo, por exemplo, já deu várias declarações públicas
em defesa do aborto.
Outro caso em que se percebe grande união foi na eleição do bispo Marcelo Crivella no Rio.
No Rio, cerca de 90% dos pentecostais, segundo os órgãos de pesquisa,
votaram em Crivella para prefeito. Ele conquistou grande parte do
eleitorado das regiões mais pobres. Mas venceu muito em função da
fragilidade da candidatura de seu adversário, Marcelo Freixo, do PSOL,
vinculado a um partido muito pequeno, e com uma trajetória política na
zona sul carioca, que sensibiliza só o público de classe média branca
universitária que forma uma base eleitoral muito restrita. Era um
candidato com uma pauta mais vinculada ao legislativo, sem bases
populares, sem apelo na periferia do Rio. Tinha uma boa atuação
parlamentar, mas pouco apelo eleitoral. Havia também um contexto de
extrema fragilidade da esquerda no Brasil. Tudo isso prejudicou a
candidatura do Freixo.
Seja como for dá para perceber uma enorme expansão política dos pentecostais.
O crescimento do pentecostalismo no Brasil e na América Latina
transformou o campo religioso brasileiro nas últimas décadas. Hoje são
mais de 60 milhões de evangélicos. Essa transformação se acentua e se
radicaliza a partir dos anos 80 e, nos últimos 40 anos, esse processo
avança célere. Nas periferias das grandes e médias cidades e, em
especial, nas regiões metropolitanas é onde os pentecostais mais
crescem. Criou-se um cinturão evangélico nas periferias, locais onde os
sindicatos, partidos e poderes públicos não chegam.
Eles se integraram totalmente na sociedade brasileira.
Uma coisa importante é que os evangélicos, sobretudo pentecostais,
eram vistos, até fim do século 20, como um segmento à parte na sociedade
brasileiro, isolado, sectário, e isso mudou. Eles ganharam enorme
visibilidade pública e deixaram de ser vistos como algo à parte,
isolado, sem relação com a cultura brasileira, que era católica. Eles
passaram a se incorporar em todos os setores, no futebol e até mesmo no
tráfico. Boa parte dos traficantes no RJ têm se aproximado dessa igreja.
Antes havia uma fronteira entre as igrejas pentecostais e o mundo do
crime e essa fronteira desapareceu. Você vê a molecada no tráfico dando
dízimos ou promovendo shows gospel. E os pastores dão essa abertura
porque querem convertê-los.
Eles avançam também nos meios de comunicação de massa.
Muito. A TV aberta contém 20% da programação religiosa. Grande parte
dela é ocupada por evangélicos, sobretudo pela Igreja Universal. Eles
compram os horários de programação ou as próprias emissoras. A Igreja
Internacional da Graça de Deus, de R.R. Soares, cunhado do Edir Macedo,
compra programação, mas também dispõe de canal a cabo. A Renascer dispõe
de canal a cabo. A Universal dispõe de TV aberta – a Record disputa a
segunda posição no mercado com o SBT. Além disso, eles dispõem de uma
imensa rede radiofônica e muitas portais na internet, editoras e bandas
gospel. Vendem milhões de bíblias e livros religiosos e de autoajuda.
Há uma estratégia bem definida de ocupação do espaço político.
Os pentecostais ingressaram na política partidária para valer na
Constituinte, período que coincide com sua ocupação dos meios de
comunicação de massa e com o boom pentecostal. Antes da Constituinte
havia apenas dois deputados pentecostais. Em 1986, eles elegeram 18, um
crescimento de 900% na sua representação parlamentar, 13 deles da
Assembleia de Deus. Foram pastores da Assembleia de Deus que
disseminaram o boato persecutório e conspiratório de que a Igreja
Católica pretendia retomar sua posição oficial junto ao Estado
brasileiro a partir da elaboração da nova carta magna. A partir daí,
substituíram o lema “crente não se mete em política” pelo “irmão vota em
irmão”. Na atual legislatura, passaram a dispor de cerca de 80
deputados federais e três senadores, um dos quais se tornou prefeito do
Rio de Janeiro. Então, nos últimos 30 anos, quase triplicaram o tamanho
de sua bancada. 15% dos deputados federais atualmente são evangélicos.
O caso Crivella mostra que, em certas situações, eles podem apoiar maciçamente um candidato.
Podem, mas, desde 1989 nunca deram apoio maciço, uniforme, a um único
candidato. Naquela eleição, no primeiro turno, eles se dividiram entre
os diferentes candidatos. Só no segundo turno, quando restaram apenas
Collor e Lula, lideranças pentecostais apoiaram em peso a candidatura
do caçador de marajás. Na ocasião, difundiram o boato persecutório de
que a eleição de Lula estabeleceria o comunismo no Brasil, comunismo
atípico, pois associado ao catolicismo de esquerda, mas que iria impor
sérios obstáculos à sua liberdade religiosa. Diziam que os evangélicos
seriam perseguidos, seus pastores iriam para o paredón, seriam
presos, torturados, suas igrejas seriam transformadas em galpões,
supermercados. Esse tipo de boato persecutório foi muito forte durante o
segundo turno da eleição presidencial de 1989.
Tanto na Constituinte como na primeira eleição pós ditadura militar,
boatos persecutórios e conspiratórios foram fundamentais na
arregimentação e mobilização política e eleitoral deles. Há pelo menos
três décadas são experts em fazer uso das “fake news” com fins políticos
e eleitorais.
Esse sentimento persecutório é característico dos políticos evangélicos?
Isso tem ocorrido em todas as eleições desde o início da
redemocratização. Candidatos evangélicos a deputados federal, estadual, a
vereador, a senador e mesmo a cargos majoritários, como o Crivella, têm
insistido que os evangélicos são perseguidos, discriminados, e que o
principal recurso de que dispõem para assegurar sua liberdade religiosa e
defender a família, consistem em eleger seus irmãos de fé para
protegê-los no parlamento de seus inimigos esquerdopatas.
O Bolsonaro exerce atração entre os evangélicos. Ele pode aglutinar essas forças?
Os evangélicos são minoritários no Brasil, têm 32% da população,
segundo o Datafolha. São muitos, mas são minoria. Eles não têm como
eleger um presidente, evangélico ou não, somente com seus votos. E Jair
Bolsonaro não demonstra por enquanto a capacidade de aglutiná-los.
Bolsonaro não é evangélico. É casado com uma evangélica e tem filhos
evangélicos, como Eduardo Bolsonaro, batista, que lidera o Escola sem
partido. Ele foi batizado em Israel, em 2016, pelo pastor Everaldo e
divulgou as imagens do batismo nas redes sociais para tentar ampliar seu
eleitorado nesse meio religioso. Bolsonaro é um aliado antigo de
líderes da frente parlamentar evangélica, como Marco Feliciano, João
Campos, entre outros. Ele tem se esforçado em construir relações e
alianças com dirigentes evangélicos na tentativa de catapultar a sua
eleição a presidente da República. No momento, ele tem apoio eleitoral
entre os evangélicos superior ao que dispõe no conjunto do eleitorado,
21% contra 16%, respectivamente. Da mesma forma, ele é menos rejeitado
pelos evangélicos (27%) que no total do eleitorado (33%).
O Lula é exatamente o contrário.
Lula é o pré-candidato com maior apoio entre os evangélicos: com 32%
de intenção de voto nesse segmento religioso. Mas esse apoio é inferior
ao que ele obtém no restante do eleitorado, que é de 36%. Entre os
católicos, Lula alcança 40%. Além disso, ele tem maior rejeição entre os
evangélicos (46%). No eleitorado, a rejeição é de 42%. Bolsonaro e
Marina Silva, missionária da Assembleia de Deus, dispõem de maior apoio
entre os evangélicos do que no total do eleitorado.
Você não acredita que Bolsonaro tenha grande futuro?
Candidaturas de centro direita podem inviabilizar completamente a
candidatura do Bolsonaro, que é visto também como um sujeito controverso
no meio evangélico. Líderes denominacionais e parlamentares, como
Malafaia e Feliciano, também são controversos em seu meio religioso. São
criticados e contestados, por várias razões. Bolsonaro mais ainda.
Feliciano não representa 60 milhões de fiéis, de forma alguma. Nem
Malafaia, nem Edir Macedo. São figuras polêmicas, controversas no meio
evangélico, que, como disse, é plural, muito diversificado internamente.
Bolsonaro, porém, pode se beneficiar desse discurso em torno da
restauração da ordem, da moral, anticorrupção, antipolítica, da
formação de um governo forte com suporte militar para avançar em parte
do eleitorado evangélico, sobretudo pentecostal. Talvez por conta disso,
Bolsonaro disponha, nesse momento, da intenção de apoio de um quinto
dos evangélicos.
Tem uma pauta de governo forte para as próximas eleições.
É uma pauta que se aproxima de parte da pauta política dos
evangélicos, sobretudo no que se refere à demanda para que os poderes
públicos assegurem a moralidade cristã no ordenamento jurídico do país.
Parte da população tem enorme dificuldade de lidar com as mudanças
comportamentais em fluxo nas últimas décadas, com a emergência de novos
arranjos familiares e das transformações nas relações de gênero, com a
visibilidade pública da união civil de pessoas do mesmo sexo, das novas
formas de afeto inclusive sexuais que escapam aos padrões familiar e
sexual heteronormativos hegemônicos. Muitos vêem tais mudanças como
indecência, falta de vergonha na cara, irrupção de nova Sodoma e
Gomorra, o fim dos tempos. O discurso hipermoralista de Bolsonaro e de
vários deputados evangélicos joga lenha nessa fogueira e apregoa a
discriminação estatal a minorias sexuais.
Ser hipermoralista é uma vantagem nesse negócio?
A cruzada moral é apresentada como trunfo da representação política
em defesa do evangelho e dos evangélicos. Confere visibilidade e dá
retorno eleitoral, ao menos para candidatos ao legislativo. Feliciano,
ao presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em 2013, foi
acusado de fundamentalista, intolerante, fanático pela grande imprensa,
por inúmeros oponentes políticos e em manifestações públicas. O que
aconteceu? Ele dobrou sua votação, passando de 200 mil votos em 2010
para 400 mil, em 2014.
Radicalizou e levou.
Mostrar-se radical, radicalizar o conservadorismo moral ou a defesa
corporativista em prol de suas igrejas pode resultar em dividendos
eleitorais. E é isso que muitos deles buscam, a fim de obter maior
visibilidade pública, escapar da obscuridade do baixo clero, sedimentar e
estender seu eleitorado. Radicalizar a defesa de uma pauta extremamente
conservadora e controversa pode torná-los expoentes de determinada
causa. Tal estratégia de construção da identidade política por meio do
ativismo radical em defesa de pautas controversas é que ela,
praticamente, inviabiliza a eleição para os cargos majoritários,
sobretudo em eleições decididas em segundo turno, já que tende a
resultar em elevados índices de rejeição.
Como estamos evoluindo na questão da laicidade do Estado?
A questão da laicidade, praticamente invisível até os anos 90,
emergiu com força à medida que os evangélicos ocuparam a política
partidária e eleitoral e os meios de comunicação de massa. Até então, os
crucifixos católicos estavam (e continuaram) presentes em escolas
públicas, em casas legislativas, em tribunais de Justiça. Mas ninguém
reclamava de laicidade. Não era questionada. A ocupação católica do
espaço público estava naturalizada, em função de sua hegemonia religiosa
e da incipiente diversidade religiosa. Os evangélicos passaram a
questionar os privilégios católicos. Em seguida, políticos evangélicos
passaram a se envolver em uma série de conflitos e acirrados debates
públicos, provocando a reação de defensores de direitos humanos,
organizações feministas, LGBTs. Associações de ateus passaram a
questionar a presença de símbolos religiosos em edificações públicas e
no espaço público. O avanço do pluralismo religioso, do pluralismo
cultural e da diversificação das formas de viver e de concepções de bem
comum resultou numa série de conflitos em torno da laicidade do Estado,
da escola pública, do ensino religioso, etc. Os conflitos se
intensificaram. Lutam pela definição da laicidade, pela secularização da
política partidária e eleitoral, pelo restabelecimento, nos moldes do
liberalismo político clássico, das fronteiras entre Estado e igrejas,
política e religião, público e privado.
Como costuma ser essa relação entre Estado e igreja?
O Estado brasileiro se tornou laico oficialmente com o advento da
República. Na Constituição de 1934, ocorreram diversos retrocessos. A
Igreja Católica, seu poder religioso e político renovado e a Liga
Eleitoral Católica conseguiram reverter certos aspectos da laicidade
estabelecidos em 1889. A Constituição brasileira de 1988 manteve o
Estado laico e a separação republicana entre religião e Estado. Nossa
constituição, desde 1934, prevê também a colaboração recíproca entre
igreja e estado em prol do interesse coletivo. É a questão, por exemplo,
da assistência social. O governo Collor, com seu projeto econômico
neoliberal, passou a apelar para a participação de setores da sociedade
civil na resolução de problemas sociais. Abriu-se mais espaço para a
atuação assistencial das igrejas em parceria com os poderes públicos.
Isso avançou nos governos seguintes até se tornar frequente moeda de
troca eleitoral.
Seja como for, o voto evangélico se tornou fundamental para ganhar uma eleição.
Desde o início da redemocratização, todos os candidatos e partidos de
médio ou de grande porte negociam apoios e alianças com autoridades
evangélicas, sobretudo pentecostais, já que isso é pouco usual e
aceitável nas igrejas protestantes históricas. Em 2006, a campanha da
candidatura Lula estabeleceu como uma de suas prioridades a conquista do
voto evangélico. Entre outras coisas, Lula prometeu a ampliação das
parcerias do governo federal com as igrejas, como forma de tentar obter
apoio e votos desses religiosos.
A laicidade é um assunto quente?
Quentíssimo. E esquentou mais ainda com todas as controvérsias
públicas ocorridas em torno dos direitos humanos. O debate sobre a
criminalização da homofobia e o aborto tomou de assalto a disputa
eleitoral para a presidência em 2010. Mesmo ano em que o III Programa
Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo governo Lula, enfrentou
acirrada oposição católica e evangélica. Muitos líderes e políticos
evangélicos se opuseram à candidatura da Dilma, o que a forçou a recuar
afirmando que não iria sancionar nenhuma lei que pudesse prejudicar a
liberdade religiosa dos evangélicos. A partir dos conflitos travados na
Comissão de Direitos Humanos e Minorias em 2013, evangélicos se
afastaram do governo Dilma. Não à toa, 89% dos parlamentares evangélicos
votaram a favor do impeachment. Na Câmara dos Deputados, tais conflitos
resultaram em impasses. Nem defensores dos direitos humanos e nem a
bancada cristã conseguiram fazer avançar suas propostas e seus projetos
de lei no ordenamento legal. Representantes de minorias sexuais
decidiram recorrer ao STF.
Por quê?
O STF aprovou, em 2011, a união civil de pessoas de mesmo sexo. Logo
em seguida, aprovou o aborto de anencéfalos. Isso gerou enorme revolta
entre deputados evangélicos, que propuseram projetos de lei prevendo o
impeachment de ministros do STF que usurparem poderes do legislativo e
do executivo e que igrejas de caráter nacional possam propor ao STF Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Por outro lado, gerou
expectativas positivas em seus adversários quanto ao maior progressismo
do STF comparado ao conservadorismo do Congresso. Contudo, após a
decisão do STF a favor do ensino religioso confessional, tais
expectativas, provavelmente, retrocederam.
O STF deu uma guinada conservadora?
Por certo, tornou-se mais arriscado recorrer ao STF para defender a
laicidade do Estado. A votação foi apertada, seis ministros de um lado,
cinco do outro. O STF aprovou a disciplina de ensino religioso
facultativo, mas na modalidade confessional, que estava prevista na
concordata entre o Estado brasileiro e Santa Sé. Um dos 20 artigos
desse acordo propunha a confessionalização do ensino religioso. O
governo Lula deu de bandeja esse acordo para a Igreja Católica, que foi
aprovado a toque de caixa pelo Congresso Nacional, a despeito de
inúmeras manifestações públicas que o questionaram.
Isso é um erro, um retrocesso?
O fato é que o STF bancou o ensino religioso confessional. A meu ver,
essa decisão foi lamentável. Ainda que o ensino religioso seja
facultativo, na prática ele é obrigatório, porque as escolas não
oferecem outras opções aos estudantes. Os pais desconhecem que seja uma
disciplina facultativa. Os que conhecem e não querem que seus filhos
cursem ensino religioso na modalidade confessional não dispõem de
disciplina alternativa para seus filhos. Os colégios não oferecem
opções. Os alunos são colocados em uma salinha qualquer ou no pátio. E
ficam sob o risco de sofrer bullying, assédio, discriminação dos colegas
e dos próprios professores. Isso pode colocar muitos alunos em situação
difícil. Alunos de minorias religiosas podem vir a sofrer ainda mais
nas mãos de professores incautos, dispostos a utilizar a sala de aula
como escola dominical.
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Reportagem por Morris Kachani
Fonte: http://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/o-barulho-dos-evangelicos/ 13/11/2017
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