Aval para o primeiro remédio com sensor que rastreia informações dentro do paciente representa um grande avanço na medicina, mas levanta questões éticas
17 nov 2017
A era da pílula digital
começou. Na segunda-feira 13, a agência reguladora de remédios dos
Estados Unidos, a FDA, aprovou o uso de um comprimido que leva embutido
um sensor capaz de informar aos médicos se e quando o paciente tomou o
medicamento. O chip tem o tamanho de um grão de areia. É feito de
magnésio, cobre e silício, minerais comumente encontrados nos
alimentos. Ele começa a funcionar entre trinta minutos e duas horas após
a ingestão e, depois disso, é naturalmente absorvido pelo organismo,
sem provocar efeito tóxico algum.
Desenvolvida
pela Proteus Digital Health, empresa americana especializada em
produtos tecnológicos para a área de saúde, em parceria com o
laboratório japonês Otsuka, a novidade com ares de ficção científica é a
versão moderna de um dos antipsicóticos mais consumidos do mundo, o
aripiprazol (cujo nome comercial é Abilify), indicado para
esquizofrenia, mas também usado nos casos de depressão severa e
transtorno bipolar.
O mecanismo do Abilify MyCite, eis o nome do “robozinho”, é ao mesmo
tempo extraordinariamente simples e espetacularmente engenhoso (veja a
ilustração na pág. ao lado). Sua grande vantagem é permitir ao médico
controlar os horários exatos em que o remédio foi tomado e a dose
administrada. Na medicina, e em especial na psiquiatria, o controle
rigoroso da ingestão dos medicamentos é fundamental, sobretudo no caso
de pacientes muitas vezes arredios. O portador de esquizofrenia é
refratário a tratamentos e tem dificuldade extrema para manter a terapia
durante longo tempo. Dos 21 milhões de portadores da doença no mundo
(no Brasil são 2 milhões), apenas três em cada dez aderem aos
tratamentos. Isso ocorre pelo conjunto de sintomas característicos da
condição — alucinações, surtos de desconfiança ou ideia fixa de não
apresentar a patologia. O paciente pode, portanto, estar certo de ter
tomado a medicação, sem tê-lo feito. Ou, então, achar que não precisa
dela. A postura já seria danosa em qualquer tipo de afecção. Mas, no
caso de doenças psiquiátricas como a esquizofrenia, o risco da não
adesão tende a ampliar o descontrole dos sintomas. O Abilify
convencional foi um dos primeiros antipsicóticos de uso contínuo e com
reduzidos efeitos colaterais. Ele age na dopamina, um neurotransmissor
que tem ação desregulada no portador de doenças psiquiátricas. Sua
principal ação é melhorar os sintomas maníaco-depressivos.
Afinal, até onde vai o direito de alguém, mesmo um médico ou um familiar, de ter acesso a informações tão íntimas
de modo tão invasivo?
A pílula digital é um extraordinário passo de um movimento que, nos
últimos anos, pôs a medicina em outro patamar, na antessala de um
novíssimo capítulo. Vive-se no mundo do big data, termo que designa a
capacidade tecnológica de capturar, organizar e interpretar
automaticamente uma enormidade de dados, num dos mais interessantes
saltos permitidos pela internet. Ganham-se tempo e dinheiro com a
vastidão de informações coletadas em bancos de dados de hospitais e
centros de pesquisa a partir das condições de saúde de milhões de
pessoas. Estima-se que, se os médicos tivessem acesso às informações de
todos os doentes do planeta, seria possível reduzir em 20% a mortalidade
mundial. Uma das mais recentes e impactantes conquistas ocorreu com o
programa Watson Health, lançado em 2015 pela IBM. O sistema de
inteligência artificial, alimentado pelos servidores da empresa
americana, já agrupa grande parte dos dados medicinais do planeta para
facilitar o trabalho dos profissionais e acelerar as pesquisas (leia mais).
Não há risco de fake news, como acontece em outros setores da
informação compartilhada. Em Genebra, há outro polo espetacular, o
centro de pesquisa Campus Biotech, referência em biotecnologia, que usa o
big data para levantamentos na área de epidemiologia e saúde.
Remédios como a pílula inteligente podem servir de ferramenta de
controle para evitar um dos maiores nós da medicina atual: o desperdício
de medicamentos. A cada ano, no sistema de saúde dos Estados Unidos,
jogam-se fora cerca de 750 bilhões de dólares (o equivalente a 2,4
trilhões de reais) com receitas que não são seguidas fielmente, fraudes,
serviços desnecessários, entre outros. No Brasil, esse dado nunca foi
levantado. O Abilify MyCite surge, portanto, também como atalho
econômico. Ele foi o primeiro de sua família a ter o aval da FDA, mas
existem outros na fila. Atualmente, há uma dezena de sensores
semelhantes acoplados a dispositivos sendo desenvolvidos nos Estados
Unidos e na Europa. As doenças avaliadas são dos mais variados tipos,
como hepatite, problemas cardíacos, derrame e diabetes. A tecnologia da
pílula inteligente poderá também ser usada no monitoramento de pacientes
que abusam de remédios, como analgésicos e ansiolíticos. O campo é
amplo.
E, como ocorreu, ocorre e ocorrerá com todas as revoluções
tecnológicas, ao anúncio das maravilhas apresentadas, abre-se imensa
discussão ética. A decisão de usar um recurso de rastreamento interno do
corpo humano envolve questões morais delicadas. Evidentemente, o uso do
remédio com o chip espião só acontecerá com o consentimento do
paciente. Ainda assim, apesar dessa certeza, uma pergunta se impõe: até
onde vai o direito de alguém, mesmo um médico ou um familiar, de ter
acesso a informações tão íntimas de modo tão invasivo? Ressaltem-se,
ainda, a fragilidade e a vulnerabilidade de uma pessoa doente, ansiosa
por cura. São dilemas de cunho ético inescapáveis na era da internet, da
informação democratizada, da facilidade de acesso a quase tudo e a
quase todos.
Instado sobre a possibilidade de o comprimido inteligente ferir as
liberdades individuais, no caso de utilização indevida das informações
médicas, o diretor executivo do laboratório Otsuka, Kabir Nath, vai
direto ao ponto: “Acima de tudo, deve-se valorizar a relação com o
médico”.
A pílula com o sensor terá venda controlada. Já se estuda a
possibilidade de torná-la compulsória, em casos específicos, desde que o
paciente e corpos médicos concordem — e nessas situações haveria
determinação judicial. Por enquanto, será vetada para crianças e idosos,
uma vez que são pacientes mais vulneráveis. Chegará às prateleiras
somente em meados de 2018. Não se sabe quando será lançada no Brasil. Há
uma certeza: ela representa, além do sucesso científico, uma mudança de
comportamento. Um grãozinho de tecnologia afeito a transformar o modo
como lidamos com a saúde. “Abre um imenso caminho para desvendarmos
doenças dramáticas como a esquizofrenia”, diz Acioly Lacerda, professor
do departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo e
associado da Universidade de Pittsburgh, nos EUA. Afinal, o chip
fornecerá, com extrema precisão, informações às quais o médico terá
acesso e que poderão ajudá-lo a chegar a conclusões inovadoras.
O anúncio da FDA celebra um ano luminoso para a evolução da
medicina. A pílula inteligente é o segundo grande avanço deste ano na
farmacologia. Em setembro, a FDA aprovou o Car-T, uma revolução na
oncologia, a primeira terapia celular totalmente individual. São tempos
de mudança.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557 pg. 68 a 70.
Fonte: http://veja.abril.com.br/revista-veja/a-pilula-inteligente/
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