Noeli Tejera Lisbôa*
Clarice Lispector, que morreu há 40
anos, em 9 de dezembro de 1977 (um dia antes de completar 57 anos), usou uma
escritura própria para subverter a linguagem
Quando o nazismo dominou a Europa, as
universidades do continente e, em especial, as alemãs, não só não ofereceram
resistência à barbárie como, com frequência, a acolheram. A cultura continuou a
ser ministrada aos alunos como atividade humanizadora, embora, sabidamente, um
número considerável de oficiais nazistas era amante de Wagner, Goethe e outros.
Conforme o crítico literário George Steiner, a
visão de cultura como força humanizadora fica irremediavelmente abalada ao
sabermos que uma pessoa podia ler Goethe ou Rilke enquanto ouvia Bach ou
Schubert, à noite, e cumprir a rotina de trabalho em Auschwitz pela manhã:
"A linguagem perdeu a capacidade de expressar a verdade" (de
Linguagem e Silêncio).
Esse desgaste da linguagem se reproduziu em todo
o mundo, seja pela sua banalização pelos meios de comunicação de massa, seja
pelo uso distorcido que dela fizeram os regimes totalitários. No Brasil dos
anos 1960 e 70, a Operação Limpeza (para o extermínio dos guerrilheiros do
Araguaia), a Operação Bandeirantes, para o centro de tortura do exército, e
outras coisas dessa ordem tornaram-se comuns.
Em decorrência do esgotamento dos sentidos, o
silêncio assumiu importância como força literária, como o que questiona a
própria capacidade de dizer da linguagem, como espécie de resistência a sua
banalização. Esse questionamento está na gênese da escritura de Clarice
Lispector.
A língua é fascista, diz Roland Barthes em A
Aula. O fascismo, ele acrescenta, não é impedir de dizer - é obrigar a dizer. E
a língua tem uma estrutura que nos obriga a dizer de determinado modo. Sendo o
sujeito constituído pela linguagem, onde estaria o espaço de resistência, ou de
transgressão? Na crítica à linguagem - esta é a resposta de Barthes. É ao
professar que nenhuma linguagem é inocente, diz o pensador, que a literatura é
revolucionária. É, portanto, ao fazer a crítica da linguagem que a literatura
se torna escritura.
Essa passagem da escrita para a escritura é
exatamente o que Clarice Lispector faz em sua obra. Por meio da transgressão
das regras gramaticais de sintaxe, paragrafação e, especialmente, a partir de
uma pontuação inusitada, Clarice nos leva a um estranhamento que coloca em
xeque a própria estrutura da língua. E, ao questionar a linguagem, coloca em
xeque também a visão do papel transformador da literatura como representação do
mundo.
"(não me corrija). A pontuação é a
respiração da frase, e minha frase respira assim." Com este recado ao
linotipista, em crônica publicada no Jornal do Brasil em 1968, Clarice
justifica uma das principais peculiaridades de sua escrita: a pontuação. Transgredindo
regras as mais ortodoxas, ela inicia um romance (Uma Aprendizagem ou O Livro
dos Prazeres) com vírgula, e o acaba com dois pontos. Em Água Viva, utiliza
maiúsculas no meio da frase, em locais inusitados como no uso de pronomes,
altera a posição dos parágrafos, inicia parágrafos com minúsculas, interrompe
parágrafos no meio da frase e da linha, sem ponto final. Em Perto do Coração
Selvagem, coloca reticências em títulos. Inicia e encerra A Paixão Segundo GH
com seis travessões. Enfim, rompe de forma gritante a normatização gramatical,
tornando evidente a participação da pontuação na constituição do sentido.
Numa crítica contundente e, ao mesmo tempo,
sensível à ideologia, cujo trabalho é a simulação de um sentido único, por meio
de uma crítica à própria linguagem, lugar privilegiado de materialização desta,
Clarice promove uma renovação da língua ao expandir seus espaços de movência
dos sentidos até o ponto em que esta toca no real do discurso, a saber, o
silêncio (entendendo o real, aqui, como o termo utilizado nos estudos
psicanalíticos como um fenômeno imanente à representação e impossível de
simbolizar). Desse modo, ao invés de fechar os sentidos, movimento próprio do
totalitarismo e dos meios de comunicação de massa, lança-os inteiramente em aberto
para o leitor, exigindo a participação deste na sua constituição. Faz aí, nesse
uso inusitado da pontuação, aquilo que Barthes chama de crítica da linguagem.
Clarice promove a única possibilidade de
transgressão da língua, que é a transgressão de sua própria estrutura interna,
a sintaxe. Rompe, assim, com aquilo que Barthes define como o poder intimidador
da estrutura linguística, desfazendo a evidência do sentido e demonstrando que
todo dizer está imerso num contínuo discursivo. Promovendo a descontinuidade do
discurso, ela se interrompe, indaga, se contradiz, ou seja, quebra exatamente
com aquilo que seria a própria característica definidora do texto: a unidade
textual. A história da humanidade, diz o psicanalista Contardo Calligaris,
poderia ser vista como um longo discurso contínuo no qual nós interferimos em
determinados pontos. Ou, como diz Clarice, quase ao final de Água Viva: "O
que te escrevo é um ?isto?. Não vai parar: continua".
Nesse sentido, o trabalho sobre o real é
revolucionário por si só, pois é ali, digamos, que encontramos as bordas da
linguagem, e é ali, também, que encontramos o que do humano não pode ser
simbolizado, que não está atravessado pela interpretação e, portanto, não
sofreu ainda determinação ideológica. Esse trabalho é desenvolvido por meio da
expansão dos espaços de silêncio constituintes das palavras, ou seja, do real
do discurso, conforme noção formulada por Eni Orlandi em As Formas do Silêncio:
"O silêncio é o real do discurso". E, ao contrário de ser uma manifestação
exitosa da escrita, é exatamente no fracasso da linguagem, como bem demonstrou
Clarice, que encontramos o indizível: "O indizível só me poderá ser dado
através do fracasso de minha linguagem" (em A Paixão Segundo GH).
É ali, nas brechas da linguagem, onde deparamos
com o silêncio, como expressão do indizível, que somos impelidos a um
desacomodamento da nossa relação com a linguagem e, em consequência, com a
nossa compreensão do mundo.
·
Jornalista, mestre em Teorias do Texto e do
Discurso pela UFRGS
Fonte impressa: Cad. DOC/Literatura, 25 e 26 de novembro de 2017 – p. 16
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