Paulo Roberto Pires*
Do pós-guerra ao Twitter, anedotas e diagnósticos sobre a tragédia do debate intelectual contemporâneo
“Lacrar é preciso, debater não é preciso”.
#vdd #fato #ficadica #prontofalei
#vdd #fato #ficadica #prontofalei
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Método que orienta estratégias de ação direta no
imediatismo das redes ditas sociais, a razão lacradora não vem de hoje.
Volta e meia dá o ar de sua graça, parecendo realizar a utopia
reacionária de um mundo sem esquerda ou direita, não mais dividido entre
progressistas e conservadores — todos aplainados na tábula rasa da
agressividade superficial como método. Pois a razão lacradora desconhece
sinalização ideológica: em sua lógica só há lacradores e lacrados, que
trocam de posição ao sabor de movimentos impetuosos. A autocracia
tuiteira, por exemplo, prefere lacrar a governar e, quando lacra, é
lacrada por quem pensa a ela se opor. Vozes empoderadas lacram forte,
lacram alto, até que são lacradas e voltam a lacrar mais forte, mais
alto. Quem lacra, lacra alguém ou alguma coisa. E costuma passar ao
largo do essencial.
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Ronald Russel Wallace de Chevalier, o Roniquito, foi
caso raro de lacrador recreativo, lacrador-arte, que lacra pelo prazer
de lacrar. Numa noite perdida no Antonio’s, o personagem-símbolo do
folclore boêmio carioca dos anos 1960 interpela o pobre Antonio
Callado:
“Callado, você conhece o Faulkner?”
“Conheço, Roniquito.”
“E diante do Faulkner, você não se acha um merda?”
“Acho, Roniquito.”
“E quem é você pra achar isso?”
“Conheço, Roniquito.”
“E diante do Faulkner, você não se acha um merda?”
“Acho, Roniquito.”
“E quem é você pra achar isso?”
#roniquito #lacrou #callado #fail
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Iluminista como um miliciano, o lacrador primeiro
bate, depois pergunta — isso quando pergunta. Quem lacra sempre vence,
mesmo que seja derrotado. Já quem é lacrado nem sempre perde — a
extensão da derrota depende da estatura do vencedor. O lacrador é um
boxeador improvável, quicando sozinho num ringue e acreditando que é
campeão em tudo, sobre todos, sempre por nocaute. No fundo é um coração
simples, que se contenta com pouquíssimo.
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Aos 31 anos, James Baldwin escreveu em Notas de um filho da terra:
“O preço que um negro paga para aprender a se exprimir é constatar, no
final das contas, que não há nada a ser expresso”. Argumentava que
conquistar a voz não bastava; era preciso se apropriar de Shakespeare,
da língua inglesa, transformar por dentro a cultura que fez dos negros
“bastardos do Ocidente”. Eldridge Cleaver, líder dos Panteras Negras,
achava-o no mínimo condescendente: “Há na obra de James Baldwin o mais
cruel, total e agonizante ódio pelos negros, a começar por ele mesmo, e o
mais vergonhoso, fanático, adulador e obsequioso amor pelos brancos que
se pode encontrar nos escritos de qualquer escritor negro americano
digno de nota em nossa época”.
#cleaver #lacrou #baldwin #fail
#cleaver #lacrou #baldwin #fail
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A razão lacradora parece rigorosa, mas coleciona
vitórias de Pirro. Quando, na refrega, o lacrador prevalece, parte para
nova lacração. Ao lacrado resta o silêncio, que é objetivo último da
lacração, mas, também, sua frustração e agonia. Por isso é preciso
eleger o próximo lacrado. Incansável e nômade, a razão lacradora é
extenuante.
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Entre o final de 1945 e o início de 1946, Karl
Jaspers proferiu quatro palestras na universidade de Heidelberg sobre a
culpa nacional no pós-guerra. Advertia aos exaltados: “Uma postura que
silencia, orgulhosa, por um breve momento pode ser uma máscara
justificada, atrás da qual se busca respirar e recobrar a consciência.
Mas ela se transformará em autoengano e em astúcia diante do outro se
for permitido esconder-se, renitente, em si mesmo, se ela impedir o
esclarecimento para escapar da compungência da realidade”, escreveu na
introdução de A questão da culpa — A Alemanha e o nazismo.
#jaspers #antilacrador
#jaspers #antilacrador
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Um dos piores efeitos da razão lacradora é fazer com
que se valorize aquela que se pretende seu contraponto, uma razão
supostamente consensual, leniente e frouxa que tem sido invocada como
remédio para embates mais exaltados. Há sempre um intelectual sem
posição, um isp, para lamentar enfrentamentos vigorosos como uma
viuvinha suspirosa. É um apologista do debate pingue-pongue (por um
lado, por outro lado) que também não dá em nada, mas dá pinta de
conversa inteligente.
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Ao visitar o Brasil, em 1960, Jean-Paul Sartre
declarou, peremptório: “O marxismo é inultrapassável”. Nelson Rodrigues,
reacionário desde criancinha, nos tempos da Aldeia Campista, replicou:
“Esse ‘marxismo inultrapassável’ é uma opinião de torcedor do
Bonsucesso”.
#sartre #lacrou #nelson #lacrou #sartre #fail
#sartre #lacrou #nelson #lacrou #sartre #fail
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O textão é um arremedo do manifesto. No universo do
Zucka, em que ele entra com o livro e a gente com a cara, todo mundo tem
direito a quinze minutos de ativismo — direito conquistado com o suor
advindo do trabalho não remunerado, em tempo integral, como produtor de
“conteúdo”. É a oportunidade de virar um Zola de chanchada e sair por aí
apontando o dedinho para todo mundo e para ninguém: “Eu acuso!” .
Curtiu?
No dia 17 de abril de 1969, Theodor Adorno daria uma
aula sobre a relação entre teoria e práxis na Universidade de
Frankfurt. Acusado de covarde pelos estudantes, amotinados contra o
capitalismo e tudo o que ali estava, foi impedido de falar. Na sala
ocupada, alunas caminhavam de topless pelo tablado. “Justo
comigo, que sempre me voltei contra toda sorte de repressão erótica e
contra tabus sexuais!”, diria ele à revista Der Spiegel.
“Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas
de hippies! Achei isso abominável. O efeito hilariante que se consegue
com isso no fundo não passava da reação do burguesão, com seu riso
néscio, quando vê uma garota com os seios nus.” A entrevista, publicada
em 6 de maio, foi a última que concedeu. O curso não seria retomado:
Adorno morreu em agosto daquele ano.
#estudantada #lacrou #adorno #fail #adorno #rip
#estudantada #lacrou #adorno #fail #adorno #rip
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A razão lacradora é o espírito do nosso tempo. Se
mantido o virtuosismo com que é aplicada, em pouco tempo seremos todos
imbatíveis. E, quem sabe, em 2022, à sombra das lacrações em flor, a
confirmaremos no poder por mais quatro anos. Pois lacrar é só o que eles
precisam. E é tudo o que podem.
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* Jornalista. Prof. Universitário de comunicação.
Fonte: https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/critica-cultural/a-critica-da-razao-lacradora#.XOcQvygwRSY.twitter
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Adorei o texto!
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