Jurandir Renovato*
para Evaldo Piolli
Era uma
vez uma bala perdida, mas tão perdida que vivia triste de dar pena. Sentia-se
perdida não só na acepção comum atribuída a qualquer projétil desgarrado que,
ao desviar-se do seu alvo, vai ao encontro do que não devia nem estava
previsto. Eis aí justamente o seu dilema e a sua perdição. Pois até mesmo uma
bala perdida sempre acaba encontrando alguma coisa pela frente. Um braço, uma
cabeça, até uma bunda serve. É o seu destino e o seu objetivo no mundo, ainda
que tortos.
Nossa bala perdida, porém, não encontrara nada, por isso achava-se
perdida também no sentido existencial da palavra. E assim, indiferente a toda
essa confusão semântica, vagava pelo mundo remoendo dia e noite o momento
fatídico no qual havia se extraviado do tiroteio e pelo qual se perdera de si
mesma.
Lembrava como se fosse ontem. Havia uma rua larga que dava, de um lado,
para uma biblioteca de pé direito tão alto quanto o preço dos produtos do supermercado
rutilante do outro lado dela. Os primeiros tiros, claro, partiram do
supermercado, contra uma viatura estacionada no sentido oposto. Disparada logo
no início do confronto, a bala (que ainda não estava perdida) sentiu um arrepio
agradável quando seu corpo, enfim despido do cartucho, foi arremessado na
direção de um guarda franzino agachado perto da viatura. De repente algo deu
errado. Sua pele de chumbo fundido raspou contra o asfalto quente e, após
ricochetear sobre uma superfície macia, aparentemente de lata, tomou o rumo do
prédio atrás do policial.
Como um raio, entrou por um vão da ampla janela e atravessou a sala
cheia de mesas e cadeiras e estantes. Passou rente à orelha esquerda de um
rapaz que lia atentamente (quer dizer, tentava ler) os Prolegômenos a toda
metafísica futura, de Immanuel Kant. Era um livro indicado por sua
professora do cursinho como uma introdução ao pensamento do filósofo alemão, e
que ele imaginou ser algo como um daqueles volumes pequenos da coleção
Primeiros Passos, pois ele sabia que ela sabia que ele só lia livros de bolso,
melhor ainda se fossem do Olavo de Carvalho, esse, sim, um crânio, do qual ele
entendia quase tudo, principalmente os palavrões, mas – faça-me o favor –
aquele tijolo tinha mais de oitocentas páginas e ele não conseguia entender nem
o título! Quando a bibliotecária de lindos olhos azuis colocou o livro sobre
sua mesa, só aí o rapaz se deu conta de que: 1) a professora tinha zoado com a
cara dele; e 2) agora era tarde demais.
A bala perdida zuniu na sua orelha no momento em que tentava decifrar
pela vigésima vez o primeiro parágrafo do prefácio – e ele nem percebeu ter se
safado por um triz. Ela passou tão perto a ponto de levantar algumas mechas de
seu cabelo, e invadiu o estreito corredor repleto de estantes abarrotadas de
livros de todos os tipos e cores e formatos e títulos e temas.
A bala perdida sentiu-se levemente enjoada diante do peso de tanta
informação e conhecimento e, traindo a natureza invariavelmente retilínea de
seu trajeto, passou a dar voltas por entre as inúmeras prateleiras feito um
inseto. (A bibliotecária de olhos azuis pensaria exatamente isso anos depois,
que nunca tinha visto uma mosca tão rápida e estranha quanto aquela do dia do
assalto ao supermercado.)
Tudo começou ali. Como se aos poucos fosse esgotando o seu impulso vital
de bala perdida, aquele elã explosivo que a motivava a seguir no encalço de uma
vítima aleatória; e assim, aninhada entre os livros daquela biblioteca,
mergulhou numa tristeza profunda.
Se houvesse no mundo um psicanalista de balas perdidas, decerto cravaria
se tratar de um caso agudo de crise de identidade. E mesmo sob o risco de
despertar um monstro adormecido, faria todo o possível, esse hipotético
psicanalista, para recuperar a autoestima de sua paciente, trazendo-a de volta
à sua belicosa condição natural. Talvez subitamente descruzasse as pernas, ou
pusesse a mão no queixo, ou retirasse os óculos, ou tudo isso junto, e depois
dissesse “hum… veja bem”, que é o modo como os psicanalistas gostam de iniciar uma
consulta.
Então diria, de um modo jovial, que o cerne do transtorno estava tipo na
maneira como se estabelecem redes de relações com o outro, as quais vão definir
a sua individualidade, ou seja, o seu eu enquanto sujeito no mundo. No caso de
uma bala perdida, qualquer uma, o comportamento desviante é tipo uma forma de
atestar sua impaciência frente ao destino que se impõe a ela diante das
diferenças. Trocando em miúdos, é tipo uma negação de si mesma, no caso
particular da nossa bala perdida, uma dupla negação. Por isso será preciso
reconstruir a personagem bala perdida desde o momento de encontro com a
primeira negação, em que se subscreve um desvio natural, até chegar ao da
segunda negação, onde se dá a ruptura com sua natureza desviante (ao desviar-se
do desvio) e portanto de produção de conflito. É tipo isso.
Mas eis que na sala esteja um líder sindical, no seu horário de folga,
pesquisando para sua dissertação de mestrado (sempre atrasada) sobre a
influência do relógio de ponto na construção do mito do herói nacional, e ele,
não se contendo, interrompa o psicanalista, afirmando ser tudo uma grande
baboseira, que a questão é dialética, companheiro!
Uma abordagem sociológica de fato colocaria a situação em outros termos,
temos de concordar com ele; isso se houvesse uma sociedade de balas perdidas a
ser abordada, não é mesmo, companheiro? Mas vamos supor que sim, que haja uma
sociedade desse tipo. Tudo aqui é suposição, inclusive ele próprio. Então o que
ocorre é um deslocamento no plano identitário diante de um sistema cultural
opressivo. Não se vendo como parte integrante desse sistema e para se manter no
controle de si mesmo, o indivíduo subverte o status quo.
Nesse sentido tornar-se bala perdida seria uma forma de resistência a
uma realidade desde sempre fadada a ruir. É virar as costas à falsa
objetividade de uma sociedade decadente, bem como às suas regras de boa
conduta; é se negar a compactuar com uma moral por trás da qual se escondem o
preconceito e a intolerância; e assim, ao não escolher um alvo específico e
portanto podendo atingir qualquer um indistintamente e sem nenhuma
discriminação, a bala perdida assume os riscos de um verdadeiro ato
revolucionário.
Um ato revolucionário, vejam só! O sindicalista estaria exultante. Até
se lembrar de nossa bala perdida e de sua incapacidade de aceitar sua índole
transformadora. O problema, ele pensaria, é o peleguismo; o peleguismo é
contrarrevolucionário.
Um filósofo existencialista que casualmente passasse por ali a caminho
da copiadora e se detivesse por um momento a ouvir a conversa, acharia
interessante a ideia de ato revolucionário colocado nesse contexto, e até
concordaria com o sindicalista não fosse o fato de que para haver uma ação
revolucionária seria preciso haver também a vontade do ato, no mínimo, a
consciência dele. Uma bala perdida, no entanto, não é produto de uma ação
deliberada, mas de um erro de cálculo, de um extravio, de uma imprecisão; ela
não tem um propósito definido, não tem uma causa, um objetivo; não é fruto do
ódio, nem do rancor, mas do acaso, por isso ela está condenada a uma eterna
liberdade sem sentido. A consciência dessa condição absurda gera angústia. A
bala perdida que se desvia de seu desvio natural é um ser angustiado por ter
adquirido consciência.
E antes que aparecesse por ali outro sabichão hipotético a refletir,
quem sabe, sobre a natureza do Bem e do Mal, talvez um padre que estivesse ali
reforçando o seu latim, ou um esotérico a empunhar o último livro do Paulo
Coelho, esgotada diante de tanta suposição, a bala perdida deu o fora dali. Só
bem mais tarde notariam que o objeto de suas reflexões não estava mais onde
supunham estar.
Ela foi até o alto de uma ponte sobre um rio poluído e se atirou no
vácuo. O vento muito forte mudou seu curso em direção da ciclofaixa, a cem
metros dali, e a bala perdida suicida acabou atingindo a cabeça de um professor
de literatura que pedalava calmamente sua bike a caminho da faculdade de
letras. Ele estava usando capacete apropriado, mas o impacto foi tão forte que
destruiu o capacete e tudo o que havia dentro dele, inclusive os planos para a
aula de poesia parnasiana daquela manhã. Alguns alunos foram para casa mais
cedo, outros seguiram para a biblioteca.
Moral da história (ao estilo determinista-dialético)
O fato de sua cabeça nunca ter pensado sobre um determinado assunto não
impede que o assunto caia sobre sua cabeça num dia não determinado.
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* É jornalista e editor executivo da “Revista USP”
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